Silvério, o soldado que aprendeu falar… “baralho”!

Silvério era um soldado moreno claro, estatura mediana, fisionomia agradável – apesar de pouco sorridente – e sempre amigo de todos. Era um daqueles sujeitos “de bem com a vida”! Nas interlocuções com os colegas sempre tinha uma ‘tirada’ engraçada, que virava piada. Era visto também como sujeito ligeiramente ‘destrambelhado’, ou, um ‘meninão’! E por isso mesmo não era levado muito à sério pelos colegas. Mas era sem dúvida, um bom companheiro, daqueles que, com certeza não deixaria um companheiro no mato sem cachorro! Seu pensamento nem sempre ordenado e sua língua sem freios, às vezes o colocava em saia justa.

O fato mais marcante protagonizado pelo soldado Silvério na nossa vida de caserna, naquele inesquecível ano de 77, aconteceu no início de uma tarde quente de fim de primavera…

Raspava 13:00h. A maioria dos 73 soldados já estavam sob a cobertura e adjacências da Bateria Comando se preparando para entrar em forma. Dali a instantes o cabo-de-dia iria apresentar os soldados ao sargento, que por sua vez apresentaria ao comandante Vargas, para o início do expediente da tarde. Silvério, que estivera tirando uma siesta no alojamento, foi um dos últimos a descer para a formalidade cotidiana. E desceu de má vontade, sonolento, parecendo estar de ressaca… No momento em que apareceu na porta do prédio rente à cobertura, enfadado por ter que mais uma vez entrar em forma e repetir toda aquela rotina que já durava quase um ano, o soldado soltou um sonoro impropério:

 

– Ô “caraaaaaaiiiiio”… Já está na hora de entrar em forma de novo!

 

Sua voz rasgada e ainda sonolenta soou alto ao pé do prédio da nossa bateria e entrou pela janela do segundo pavimento do prédio vizinho, onde o sisudo Capitão Meyer, comandante do NPOR, ‘caxias’ que era, já havia começado a instrução aos seus alunos!

O rechonchudo capitão – que dez mais tarde, já Ten. Cel. viria a ser comandante do 14º GAC – debruçou seu corpanzil na janela emoldurada de azul, encheu o peito e perguntou:

 

– Quem foi que gritou “caraio” aí?

 

O estrondo de uma granada não teria causado tamanho impacto sobre aqueles jovens soldados! Depois do estrondo veio o silencio ensurdecedor. Apoiado sobre os braços em curva, ocupando todo o parapeito da janela, o capitão aguardava a resposta!

Em pé, sentados ou encostados nas colunas sob a cobertura, nós soldados mal respirávamos!

Deu ruim!

Se o dono do “caraio” não se apresentasse, toda a bateria pagaria o pato!

O preço mais barato para aquele tipo de comportamento seria pernoite para a bateria inteira no final de semana!

Tensão total.

Ninguém tinha coragem de abrir a boca e caguetar o soldado 367…

E ele, o soldado vacilão, dono do “caraio”, se apresentaria… ou não?

O silencio sepulcral agigantara ainda mais a figura opulenta do capitão ocupando todo o espaço da janela de batentes azuis a poucos metros da nossa cobertura. Foi ele mesmo quem cortou o silencio…

 

– E então… O ‘boca suja’ não vai se apresentar?…

 

Nesse instante um bater de coturnos cortou o silencio. Sem olhar para ele, percebemos que Silvério juntara os calcanhares. Em seguida, ouvimos suas mãos espalmadas baterem em perfeita sincronia às suas coxas. No gesto seguinte ele virou-se de frente para a janela do capitão, em ‘posição de sentido’, levantou a cabeça com galhardia – como deve se portar um soldado, mesmo quando comete um vacilo – e respondeu alto e bom som:

 

– Fui eu capitão!

 

Alívio geral de todos nós soldados da BC. Ainda assim continuamos tensos, esperando a sentença do capitão.

Neste momento aconteceu o fato mais marcante que presenciei em toda minha passagem pelo exército! Talvez desconcertado com a resposta, com a coragem, ou quem sabe com a honradez e lealdade do soldado Silvério, o severo capitão engoliu em seco. Por um instante ficou sem palavras! Mas, não deixou a peteca cair! Ainda com os braços fortes curvados, apoiados no parapeito da janela, encheu o peito e disparou:

 

– Não é “caraio” que se fala não… é “Ca-ra-lho”!

 

Dito isso, virou as costas, saiu da janela e voltou para o interior da sala, como se nada tivesse acontecido!

Silvério, continuou mais alguns segundos em posição de sentido, de frente para o prédio do NPOR, custando acreditar que seu vacilo havia ficado tão barato!

No minuto seguinte o capitão Vargas, tão sisudo e bravo quanto o capitão Meyer, atravessou a rua, se aproximou e assumiu a bateria… sem entender por que seus soldados estavam tão calados!

O difícil para nós soldados da BC, foi esperar o fim do expediente para dar gargalhadas do colega Silvério…

Desde que demos baixa do exército, nunca mais vi o inesquecível soldado 367, de Cambui. Mas temos certeza: naquele dia ele aprendeu a falar … “baralho”!

 

Cão Peregrino…

“Tu te tornas eternamente responsável por aquele que cativas”!

                                                                     Antoine de Saint Exupéry

Passava pouco de dez da noite quando nos despedimos do recepcionista da pousada. Ajeitamos a mochila nas costas, abotoamos os agasalhos, checamos os cajadinhos de bambu e reiniciamos a caminhada. Tínhamos mais de 60 quilômetros de trilhas e estradas até chegar ao nosso destino. Dois minutos depois viramos a esquina e entramos na avenida principal da pequenina e aconchegante cidadezinha serrana. A pracinha ainda estava movimentada. Apesar do friozinho suave de fim de inverno no alto da serra, idosos ou casais de namorados curtiam a prosa ou o affair nos banquinhos duros em frente a igreja bucolicamente iluminada. Diga-se de passagem, a passagem pela avenida central da simpática cidadezinha com cara de europeia, em qualquer época do ano, é de encher os olhos! Sempre muito colorida, com muito movimento de turistas, de romeiros, muita vida pulsando… – No começo sul da avenida tem uma minúscula padaria que faz o melhor misto quente da região… Nem mesmo a carranca do dono – que mantém um olho no caixa e outro na clientela, para evitar o cano – afugenta os romeiros que param ali para tomar o tradicional ‘pingado’ pelando o céu da boca! Santo Antonio do Pinhal é um divisor geográfico e de sentimentos antagônicos! Quem volta de Aparecida ou de Ubatuba, quando passa por ali, embora ainda esteja há quinze quilômetros da divisa, começa a sentir os ares do Sul de Minas. Quem vai à pé para Aparecida, ao passar por Santo Antônio na parte baixa do cume da serra, sente que está mais perto da Mãezinha! Quatro quilômetros adiante, dos pés da gigante imagem branca de N.S. Auxiliadora, os olhos dos romeiros, já cansados, se perderão na imensidão do Vale do Paraíba. A partir de Santo Antônio do Pinhal, nossa viagem seria marcante. Já havíamos percorrido dois terços do nosso trajeto. No entanto, a partir dali nosso grupo de seis se tornaria sete peregrinos… Ganhamos um novo companheiro de viagem!

Ele estava brincando com outros quatro ou cinco amigos no jardim da pracinha da igreja matriz. Ao nos ver passar, talvez atraídos pelo cheiro do lanche que fizéramos minutos antes na pousada, se aproximaram e puxaram prosa. Entramos na conversa. Perguntaram de onde vínhamos, para onde íamos!… Contamos e, por educação ou por troça, convidamos todos a nos seguir. Os mais distraídos, ou preguiçosos – ou ateus! – ignoraram o convite e se afastaram, voltaram para a pracinha iluminada da igreja. Um deles, no entanto, aceitou o convite… e nos acompanhou! Não sabíamos até onde ele iria, mas esticamos a prosa, estreitamos a amizade, perguntamos da família dele, falamos das cidades por onde passamos… e o novo companheiro de caminhada nos seguiu altaneiro, belo e faceiro, sempre respondendo… ora com um sorriso com a língua de fora, ora com um abano de rabo!

Quando saímos da claridade amarela das lâmpadas no final da avenida, e a escuridão da noite inundou a estradinha apertada, circundada por frondosos pinheiros, pinos e eucaliptos, pensamos que ele desistiria… Mas o sétimo peregrino continuou resoluto a caminhada. Ora atrás de nós, ora ao nosso lado, seguia em silencio, mas sempre respondia nossos afagos verbais com um abano de rabo.

Será que ele nos acompanharia até a Basílica?

Ou estaria apenas fazendo sua caminhada diária – fora de hora – como dezenas de pessoas costumam fazer naquele glamuroso e fresco trecho de serra?

Ou seria um espião do “Conselho dos Peregrinos”, disfarçado, testando a fidelidade dos romeiros, para ver se a gente não pegaria carona para encurtar a caminhada?

Parece que era mesmo apenas um cão sem dono, carente de companhia, feliz por fazer novos amigos!  A nova amizade, no entanto, exigia sacrifícios!

O primeiro obstáculo surgiu quatro quilômetros depois da pracinha, no final da subida da serpenteante estradinha, ao chegar à Estação Lefreve. Os portões da bucólica estação estavam fechados! Como era nosso atalho para descer a serra, buscamos uma solução ‘à lá molecagem’!… Galgamos a cerca de tela, pulamos para o lado de dentro, soltamos o trinco fincado no chão, e aluímos um pouco as duas folhas dos portões para que o nosso novo companheiro passasse! A estação estava sombria, fria e deserta. Cinquenta metros adiante, dos pés da imagem alva da santa que guarda o vale, descansamos nossos olhos nas milhares de luzes amarelas, brilhantes, piscantes e dançantes no imenso Vale do Paraíba. Acostumado a dormir ao relento e ver, toda noite, as luzes piscando no céu, no alto, nosso amigo ficou encantado ao ver pela primeira vez, as luzes piscando lá embaixo. Ficou alguns segundos imóvel, à nossa frente, contemplando toda aquela imensidão estrelada. “O céu deve estar de cabeça para baixo”, deve ter pensado!

A descida da serra pelos trilhos da linha férrea, sob a luz tênue e amarelada das lanternas, não foi fácil para nenhum de nós, afinal, os espaços entre os dormentes, colocados para suportar as pesadas barras de ferro, não tinham compromisso com peregrinos, muito menos peregrinos de quatro patas! Dois quilômetros abaixo, deixamos os trilhos da estrada férrea e tomamos a trilha de terra que nos levaria à Piracuama, na baixada.

Da soturna estação Eugênio Lefreve até a charmosa Vila Piracuama, o sétimo peregrino teve um motivo à mais para nos acompanhar… Segurança! Nenhum de nós, nem ele, se arriscaria a ficar naquele trecho deserto e escuro cercado de mata, no início da madrugada! Agora, no entanto, em um trecho ‘urbanizado’ e parcialmente iluminado, depois de mais de dez quilômetros de caminhada no escuro, pensamos que nosso amigo desistiria. Mas ele continuou decidido e satisfeito com os novos amigos. Depois de uns minutos sentados ou deitados na grama úmida e macia defronte as chácaras que enfeitam a vila, nosso peregrino arriscou-se até a caminhar alegremente na nossa frente!

Já estávamos há várias horas desfrutando da companhia do novo romeiro… Era hora de batizá-lo! O primeiro nome sugerido foi aceito por unanimidade pelo grupo… “Peregrino”! O próprio concordou com o novo nome com três gestos: um sorriso com a língua dançando nos lábios, um murchar de orelhas e um balançar de rabo!

Peregrino era um cão de porte médio. Era malhado – pintas grandes – de branco e marrom. Tinha alguns ferimentos na pele – e certamente também na alma – por conta das lutas pela sobrevivência com outros da sua espécie depois do abandono material. Todos os ferimentos já cicatrizados. O calejado cão aparentava estar descendo a serra da vida, ou seja, uns oito ou nove anos para quem viveria cerca de 12 anos. Era um cão forte fisicamente e resolvido psicologicamente… O abandono dos seus antigos donos, não deixaram traumas. Tanto que ele aceitou o pedaço mordido de sanduiche, confiou nos nossos singelos afagos, e se deixou cativar.

Os primeiros frutos da amizade dos seis peregrinos com o peregrino de quatro patas apareceram no trecho seguinte. Um ano antes eu havia passado por ali mais ou menos naquele horário, eu, Deus e meu cajado de bambu (ver “Peregrino Solitário”, publicado aqui no face no dia 17 de janeiro). Naquela ocasião, dezenas de cães latiam e saiam à beira da estrada para avisar quem mandava por ali. Desta vez, talvez os mesmos cães, latiam, mas não saiam dos seus quintais. Nenhum deles queria encrenca com o nosso Peregrino malhado marrom!

O sol forte da manhã veio nos encontrar antes da ponte do Rio Paraíba. O pequeno trecho de pouco mais de trinta quilômetros havia nos consumido toda a madrugada. Depois de um lauto café da manhã na primeira padaria que encontramos, e uma parada mais longa para recuperar as energias, viramos à esquerda e atravessamos a cidade. Quando saímos do outro lado, no trevo de Roseira, o sol já ia alto… e o Peregrino mais lento!

“Caminhar de Pouso Alegre à Aparecida a partir do mês de agosto é um comportamento humano que precisa ser estudado”, diriam os navegantes de WhatsApp hoje em dia. O sol de fim de inverno, com intensidade de verão nos trópicos, cobra mais dívidas do que o romeiro deve! O calor à margem da rodovia, a menos de um quilometro do Rio Paraíba, reduz muito o ritmo da caminhada. Qualquer sombra que surja à margem da via convida o romeiro a fazer uma parada… e torna a viagem cada vez mais lenta. E cansativa. É preciso ter um motivo para seguir em frente. Cada um ali tinha seus motivos… inclusive o Peregrino malhado. Ele havia feito apenas um terço da caminhada, no entanto, era o que mais mostrava os sinais do cansaço. Mas não pedia colo! Desde a saída de Pinda ele assumira o último posto da fila no acostamento quente e barulhento da estrada… sem reclamar. Uma caminhada dessas, de cento e cinquenta quilômetros, nos aproxima um tanto de Deus… E nos aproxima também das pessoas que caminham com a gente. Sentimos as alegrias e as dores dos nossos companheiros de caminhada. É como uma família, unida, somos todos irmãos – no meu caso mais do que isso. Meus dois filhos mais velhos caminhavam ao meu lado! Peregrino malhado agora fazia parte da família…Era nosso irmãozinho de quatro patas! Por isso, quando a distância entre nós aumentava, nós segurávamos os passos e esperávamos por ele… e o incentivávamos a prosseguir. Se estava difícil para um dos companheiros – marinheiro de primeira viagem – para o cão peregrino estava ainda mais.

Quando entramos em Moreira Cesar, achamos que perderíamos nosso amigo. A distância entre nós havia aumentado! Ele estava há mais de cem metros lá atrás… e vinha passo-a-passo! Devagar quase parando! Paramos na primeira lanchonete que avistamos e esperamos por ele. Quando chegou, uma eternidade depois, uma tigela improvisada com agua gelada esperava por ele na porta. Peregrino, no entanto, não teve forças sequer para beber. Deitou-se ao lado da tigela, fechou os olhos, estendeu meio metro de língua na calçada e ali ficou. Seu ‘arf, arf, arf’ descompassado podia ser ouvido do outro lado da rodovia! Aos poucos seu coração foi retomando o ritmo normal. Mas continuou deitado, imóvel, de olhos fechados, com a língua estendida na calçada!

Depois de meia hora sentados na porta da lanchonete, levantamos, ajeitamos as mochilas nas costas e retomamos a caminhada. Faltavam menos de vinte km para chegar ao destino, mas seriam os vinte quilômetros mais longos de nossas vidas! O copo havia esfriado… mas não havia descansado! Doía tudo. Doíam os tornozelos, os joelhos, o quadril, os braços … queimavam as solas dos pés. Só não doía um órgão do corpo: o coração! Ou seria a alma? Neste momento aconteceu o inusitado! Acordamos nosso amigo e avisamos que íamos partir… Mas ele não se moveu. Tocamos nele, falamos com ele…

– Vamos garoto, agora é o último trecho!

Mas Peregrino Malhado não se mexeu. Esticado no chão rústico da porta da lanchonete, suas costelas magras subiam e desciam suavemente… Estava respirando, estava vivo. Acordou, abriu os olhos castanhos, nos localizou, mas continuou imóvel. Quando demos os primeiros passos para nos afastar, Peregrino fez um pequeno movimento com a cabeça, sem tira-la do chão, para nos acompanhar. Acho que ele quis dizer:

– Vamos descansar mais um pouco… esperar o sol baixar…

Este foi um dos momentos mais marcantes da nossa caminhada naquele ano. Nosso amigo queria seguir conosco. Ele havia sido cativado… e nos cativara! Mas não tinha forças para seguir! Fomos nos afastando lentamente, olhando para trás, deixando palavras de incentivo. E o cão malhado continuava imóvel esticado na calçada, com a cabeça pregada ao chão… e os olhos tristes pregados em nós, afastando!…

Depois de mais de quarenta quilômetros de caminhada, de companhia, de convívio, de alegres conversas, será que nosso companheiro canino desistiria da caminhada? Seria assim, silenciosa, melancólica, no meio do nada a nossa despedida?

Continuamos lentamente a caminhada à margem da rodovia em direção à Aparecida, batendo distraidamente nosso cajadinho de bambu na areia da calçada que corta a cidadezinha de Moreira Cesar… A cada momento um de nós olhava para trás na esperança de ver nosso amigo com as quatro patas calejadas, no chão, trotando atrás de nós… Mas ele continuava lá, estendido na porta da lanchonete. Já não era mais possível ver seus olhos… Mas seus olhos castanhos nos viam! Antes que virássemos a curva e saíssemos do seu raio de visão, Peregrino levantou-se, com dificuldade, aprumou-se e reiniciou a caminhada. A princípio bem devagar, trôpego, até desatar as juntas. Em seguida passou a um trotinho lento. Não queria perder os amigos. Esqueceu até de beber a água… Ou talvez não tenha tido forças! Esperamos que ele se aproximasse… Chegou sorrindo amarelo, pedindo desculpas por ter demorado tanto a retomar a caminhada. Tivemos que improvisar nova tigela com água… e dividir com ele nosso lanche! Mas multiplicamos nossa alegria…

A partir dali a caminhada ficou mais lenta. O calor escaldante da tarde, as retas intermináveis, as dores ressuscitadas – um dos companheiros tinha bolhas e calos saltando fora do tênis! Tudo convidava a andar mais devagar. Cada sombra de arvore, cada barzinho copo sujo que surgia lentamente na beira da estrada, eram como oásis e convidavam para uma parada. Peregrino, sempre sorridente, com a língua dançando na boca aberta, respondia aos afagos verbais, agradecia e se estendia arfante aos nossos pés.

O sol dava seu último aceno no cume da Serra da Mantiqueira, por sobre Campos do Jordão, quando entramos no estacionamento da Basílica de Aparecida. Poucos metros depois, nas torneiras comunitárias, tiramos o suor do rosto e subimos a rampa… Missão cumprida! Nossa Senhora havia nos acompanhado durante toda a viagem… e em vários momentos havia nos carregado no colo… Faltava agora apenas o diálogo final!

Diante da imagem, na sala de visitas da nossa Mãezinha, nossos rostos molharam de novo! Desta vez não era de suor… Eram lágrimas de emoção. Lágrimas da alma! Pacientemente a Mãezinha ouviu a história de cada peregrino, de cada filho… E afagou cada um de nós!… E curou cada ferida!

Agora, o coração pulsava mais forte. Renovado. Cheio de esperança. O corpo não doía mais…

Peregrino, aos nossos pés, seguia os ritos, em silencio… e sorria de boca aberta, com a língua para fora, feliz. A qualquer afago, respondia também com o rabo.

Fim da história do Peregrino Malhado?

Não.

A saga do nosso amigo de quatro patas teria mais alguns capítulos…

Início de agosto, meio de semana… A capital nacional da fé estava vazia de romeiros. Ruas, ladeiras, lojas … apenas alguns ‘gatos pingados’… E raríssimos cães com seus novos donos! Escolhemos aleatoriamente um hotelzinho ao lado da Basílica Velha. Sobradinho antigo e acanhado encimado por lojas. Fomos ‘quase’ todos muito bem recebidos, quase … O porteiro que aliciava clientes na porta ao pé da escada, disse que não havia vaga para peregrinos de quatro patas! Nossa despedida, depois de quase 24 horas de fiel companhia, aconteceu ali na porta do hotelzinho de pernoites. Subimos para dormir no surrado quartinho… E Peregrino Malhado sob um banco qualquer do jardim!

Na manhã seguinte, quando atravessávamos o jardim da velha pracinha da Matriz em direção à gigantesca passarela que nos levaria à missa das 10:00h na Basílica, reencontramos nosso amigo. Peregrino estava brincado no meio do jardim. Quando nos viu passar, correu imediatamente em nossa direção, sorrindo, cabeça erguida, boca aberta… Queria saber como passamos a noite! Queria contar como fora sua noite debaixo do banco do jardim! Pelo jeito não guardara nenhuma mágoa da nossa ingratidão! Nem foi preciso convidá-lo para a missa. Seguiu-nos alegremente pela passarela e entrou educadamente na igreja. Apesar de ter entrado respeitosamente na Basílica, Peregrino Malhado não seguiu os ritos da celebração. Aliás, ele nem assistiu a missa! Tão logo nos sentamos num dos tantos bancos vazios próximo ao altar, Peregrino deitou-se debaixo do banco aos nossos pés e entregou-se às caricias de Morfeu… Dormiu durante toda a missa! Nunca soubemos qual era sua verdadeira religião.

O momento mais marcante, mais difícil da nossa caminhada de três dias aconteceria duas horas depois da missa, na estação rodoviária de Aparecida… Na despedida do nosso fiel amigo. Sentados nos bancos lisos e duros da plataforma de embarque, relembrávamos alguns trechos da caminhada. Deitado sobre as quatro patas, à nossa frente, Peregrino participava da conversa. Com a cabeça encostada ao chão e os olhos bem abertos, ele mais ouvia do que falava. Embota tenha visto que compramos apenas seis passagens, ele ainda não tinha certeza se viajaria conosco ou não. Mas já deixava transparecer no olhar a dor da separação! O rabo, quando abanava, era um abano discreto, sem energia, sem convicção. Seu sorriso era meio amarelo, carregado de incerteza. Quando nosso Mercedes encostou na plataforma, entramos na fila de embarque… nós sete. Peregrino educadamente seguiu no fim da fila, passo a passo, enquanto o cobrador conferia cada passagem. Quando o último de nós subiu a escadinha do Mercedes, Peregrino tentou fazer o mesmo… chegou a subir o primeiro degrau… Mas foi barrado pelo cobrador! Tentamos argumentar, nos propusemos a pagar sua passagem… Mas o cobrador foi insensível… e usou o sapato preto surrado e lustrado na barra da calça azul de tergal para impedir o embarque do nosso amigo. Peregrino, certamente acostumado a sentir a rudeza daqueles bicos de botina ao longo da vida, não insistiu. Afastou-se da porta do Mercedes, mas ficou por ali, correndo para lá e para cá ao lado do ônibus, como um cachorro caído de mudança, procurando seus donos, até que nos achou na janela do ônibus! Sentou-se nas patas traseiras e ficou ali diante da janela, conversando agitado conosco, com um palmo de língua molhada dançando de um lado a outro da boca, tentando encontrar uma saída… ou uma entrada no ônibus! Ou, quem sabe, tentando aceitar a separação. Quando o mercedão da Pássaro Marrom partiu, Peregrino nos acompanhou desnorteado por alguns metros, até que desistiu, parou de correr, saiu do meio da rua onde corria perigo, deu voltas inquieto em volta de si mesmo e dos carros estacionados … Desesperado! Se usasse as mãos como nós humanos, certamente colocaria as duas na cabeça e perguntaria a si mesmo:

– “E agora? Como faço para acompanhar vocês? O que será de mim sem vocês?”

Ao virar a primeira esquina, da janela do Mercedes, avistamos nosso amigo voltar lentamente para a estação rodoviária, quem sabe acreditando que aquilo tudo fora uma pegadinha, uma brincadeira de mau gosto, e que o ônibus daria a volta no quarteirão e voltaríamos lá para buscá-lo!

Não.

Não voltamos para buscá-lo. Não voltamos para trazer nosso amigo no ônibus… Mas trouxemos na memória, no coração!

Esse fato aconteceu no início de agosto de 2002. Naquela ocasião eu já havia lido e relido o “Pequeno Príncipe”. Conhecia de cor e salteado a clássica citação filosófica de Antoine de Saint Exupéry…

 

“Tu te tornas eternamente responsável por aquele que cativas”!

     Talvez por isso, vinte anos depois, o Peregrino Malhado ainda continue vivo em minha memória!

     

 

Meu berço…

Na última vez que visitei minha terra, parei o carro na beira da estrada (canto do mato), subi no estribo da caminhonete, olhei para a ‘vargem do coqueiro’, e fiquei por longos minutos viajando no tempo… dando vida às lembranças!

Se você aproximar a imagem ou aguçar a vista, verá bem no centro da foto na parte de baixo uma moita de bananeira. Ela já estava lá, entre o fundo da cozinha e o açude, quando eu nasci … Comi banana prata dessa moita durante anos. Não exatamente a mesma bananeira, pois ao produzir o cacho ela morre e nascem outros brotos. Mas é a mesma moita de banana prata que meu pai plantou no início dos anos 50. Apesar do tempo, do abandono, ela continua lá, há mais de 50 anos… talvez esperando a minha volta!

Tudo estava como antes…

Era final de tarde de outono…

As janelas pardas de madeira da casa pintada com tabatinga misturada com estrume verde de vaca malhada, coberta de telhas de bica cinza envelhecidas pelo tempo, estavam abertas.

Meia dúzia de meninas brincavam no pastinho verde de capim quicuio aparados pelos dentes afiados da cabrita “Menina”.

As meninas maiorzinhas jogavam peteca. As outras menores corriam em volta delas tentando atrapalhar a brincadeira.

Um garoto franzino de cabelos lisos cortado na cuia, entremeio às meninas, brincava com as mais novas.

O menino franzino com o topetinho na testa, era eu!… Com meus inocentes cinco anos de idade!

Londres, nosso cachorro policial caramelo de porte médio, corria de um lado a outro, olhando para cima, tentando pegar a peteca.

A mais velha das meninas, talvez 11 anos, debruçada no parapeito da janela do quarto, tinha um olho nos irmãos brincando e outro na irmã caçulinha dormindo no berço atrás dela.

Na sombra da casa à um metro do chão, dezenas de galinhas e frangos liderados pelo garboso galo carijó de espora torta, ciscavam um capão de guanxuma em busca de minhocas, ou bicavam os brotos tenros do capim.

Uma porca com as ‘mamicas’ flácidas e vazias, seguida por uma interminável fileira de leitõezinhos cariocas, passou na frente da casa reclamando de fome.

No pastinho, atrás do único e grande cupim cinza, a alva cabrita ‘Menina’, deitada, remoía o capim fresco e macio que havia engolido minutos antes. Seu mojo inchado, carecia de ordenha!

Ao seu lado o bodinho alvo como ela, com uma estrela parda na testa, tentava sugar suas tetas inchadas de leite branco como as nuvens varridas lentamente pelo vento da tarde!

A chaminé da cozinha soltava um quase imperceptível canudo de fumaça de lenha seca…

Por cima da copa de um manacá explodindo em flores roxas, quase à altura da janela da cozinha, vislumbrei a silhueta da minha mãe cozinhando o jantar…

O sol amarelo e preguiçoso deu seu último aceno e se recolheu lá longe, atrás do alto do pasto do Zé Gominho.

Neste momento as meninas pararam de jogar peteca e voltaram a atenção para o portão de duas táboas num canto do pastinho cercado de gargatá…

Um homem alto, forte, loiro, de olhos verdes bem claros, passou pelo portão…

Vestia calça caqui de brim grosseiro, camisa xadrez clara, chapéu de palha amassado… Terra e poeira vermelha de mandiocal subiam pelos seus pés descalços até o joelho da calça.

Trazia no ombro uma enxada carcomida pela terra e pelo desgaste do amolamento diário na pedra.

Era meu pai!…

As meninas maiores correram ao seu encontro, receberam afagos na cabeça e voltaram a brincar.

Eu fui por último… e acompanhei meu pai, sentindo o cheiro do seu suor, até a beira do paiol onde ele guardava a enxada.

Minha mãe percebeu sua chegada, foi até a janela e trocaram um aceno mudo…

 

Do estribo da caminhonete parada na estrada no “canto do mato”, vi meu pai jogar milho para as galinhas no terreiro – elas eram as primeiras a ser cuidadas, pois em poucos minutos subiriam no puleiro no mirrado sassafrás branco ao lado do paiol para se entregar aos afagos de Morfeu…

A porca de terceira cria recebeu seu jantar – uma mistura de massa de mandioca com farelo de milho – em um cocho dentro do chiqueiro perto do rego d’água. Depois de comer empurrando os leitõezinhos com o focinho para o lado, deitou-se sob o assoalho da casa e estendeu a fileira de tetas cor de rosa aos filhotinhos famintos.

Menina foi a última a receber atenção. Primeiro a ordenha. Em poucos minutos a espuma branca do leite quente transbordou do pequeno balde… Quase dois litros de leite gordo para alimentar a grande prole na manhã seguinte – Já éramos oito irmãozinhos imberbes!

Depois de cercar o bodinho branco com estrela parda na testa sob o assoalho do paiol, meu pai sentou-se na escadinha da porta da cozinha, debulhou duas espigas de milho e serviu os graúdos grãos cor de pinhão na boca de Menina.

– “A água já está na bacia. Vem lavar que a janta está pronta” – ouvi minha mãe dizer.

Depois de jantar sentado na taipa do fogão de lenha, meu pai se levantou, atravessou a cozinha, a sala de dentro, a sala de fora – tudo quase sem moveis – e sentou-se no degrau do meio da escadinha da porta, de frente para o extenso terreiro de terra batida, para descansar as pernas, respirar o ar fresco do outono e atualizar os acontecimentos do dia ao lado da filharada…

A lua cheia já mostrava as sobrancelhas por cima do bambuzeiro na divisa do Zelino quando meu pai me pediu um tição de fogo. Um minuto depois ele soltou a primeira baforada de fumaça do seu cigarro de palha. E o cheiro gostoso do fumo de rolo, levado pela brisa mansa e fresca da noite, se espalhou pelo terreiro…

Era outono de 64… ou quem sabe, 65!

Cinco anos depois, o êxodo rural poria fim àquela rotina singela da roça… e nos levaria para a cidade!

 

Peregrino solitário…

Cento e sessenta quilômetros de solidão, sol, chuva, dores e medo… em busca de paz!

(Imagem ilustrativa)

O homem alto, forte, de meia idade, estava caminhando há pouco mais de quatro horas, sem parar. O sol de meados de primavera castigava as costas, os cabelos por baixo do boné… Os pés pareciam arder em fogo. As pernas agradeceriam se parassem de se mover e esticassem, de preferência com os pés para cima. Já havia experimentado vários tipos de pisos na caminhada. Nos primeiros dez ou doze quilômetros pisara no asfalto morno e duro, porém plano. Outros dez quilômetros andara no cascalho duro, irregular, às vezes escorregadio… Às vezes pisava sem querer em uma saliência ou protuberância da estrada cascalhada e sentia o pedregulho penetrar na sola do pé como se estivesse descalço! Agora andava por uma estradinha vicinal de terra arenosa, macia, desviando das poças d’água ou do barro… – Havia chovido a noite toda e naquele trecho plano de estrada deserta a água ainda não havia secado. Tinha que dosar as energias pois a caminhada estava apenas no começo… e já sentia o cansaço. Precisava parar. Mas não adiantaria parar debaixo do sol escaldante da manhã, sem um local onde pudesse ao menos sentar-se. De repente, além da curva, surgiu uma capelinha na beira da estrada. Aprumou o corpo e firmou o passo. O sol já ia alto, ainda assim a torre da capelinha propiciava uma aconchegante sombra. Sentou-se na sombra. Retirou o tênis, as meias. Afagou os pés. Que alívio! Suas mãos nunca foram tão macias! Usou a mochila que levava nas costas como travesseiro e estendeu o corpo no cimento rústico da porta da capelinha. Mudou de ideia, inverteu… colocou a mochila debaixo das panturrilhas!… assim poderia manter os pés acima do nível do corpo. Saboreou o prazer de descansar as pernas, os pés, o corpo suado e dolorido, mesmo no cimento duro da porta da igreja. Ironia ou coincidência: À caminho do Santuário de Aparecida, a primeira parada do peregrino para descansar e refletir, foi justamente na sombra mansa e acolhedora de uma capelinha! O destino estava longe dali, muito longe. Não precisava e nem podia correr. Podia descansar uns quinze ou vinte minutos. Fechou os olhos e olhou para trás, para o caminho que percorrera até chegar ali.

O peregrino solitário fora muitas vezes à ‘Casa da Mãezinha’. De carro ou de ônibus, em romaria. Mas a pé era a primeira vez. Sozinho era a primeira vez. Sempre quisera fazer essa caminhada. Conhecia amigos que faziam, mas a oportunidade nunca chegava. Agora chegou. E chegou como necessidade. Precisava ir à Aparecida… precisava buscar algumas respostas! Passara o dia inteiro anterior pensando naquela viagem… até que decidiu pegar a estrada. As cinco da tarde entrou no gabinete do chefe e disse que precisaria se ausentar do trabalho por três ou quatro dias… Precisava fazer essa viagem. Sairia nessa mesma noite. O pedido foi tão contundente que o chefe nem objetou! Simplesmente disse: “pode ir”. Descontaria aqueles dias de ausência nas férias seguintes. Saiu do gabinete, pegou o carro, foi até um bambuzeiro na beira da estrada na entrada do Cajuru e cortou um bambu de cana-da-índia. Aquele pequeno cajado verde seria sua arma e sua única companhia na viagem! Foi para casa e preparou a mochila: um par de chinelos, três mudas de roupas, um lanche para o primeiro trecho, uma garrafa d’água, alimentou o espírito e esperou a hora da partida. Sairia às dez da noite… Ouvira dizer que os romeiros caminhavam quase sempre à noite e descansavam durante o dia. Às oito da noite São Pedro abriu as torneiras… e esqueceu de fechar! Às dez horas chovia forte em toda a cidade. Mudança de plano. “Vou esperar a chuva passar e saio à meia noite”, pensou. À meia noite a chuva continuava a cair, intensa. “E agora?”, perguntou-se. O bom senso sugeriu adiar. Foi dormir… mas manteve acordada a decisão de fazer a viagem. As seis da manhã em ponto fechou o portão de casa atrás de si e pegou a estrada. Ainda chovia fino, mas eram as primeiras “chuvas de verão”… não durariam muito. Atravessou decidido a cidade, entrou na estrada cascalhada em direção à Cachoeira de Minas e seguiu resoluto em frente. Naquele momento da vida tinha muitas perguntas a fazer… Precisava de respostas!

A primeira resposta ‘chegou à cavalo’… Na verdade chegou puxada por um cavalo! Os leves solavancos dos latões de leite vazios sobre a carroça puxada por um cavalo tordilho passando defronte a capelinha despertaram o peregrino. Sucumbido às poucas horas dormidas durante a noite e ao cansaço da caminhada de pouco mais de vinte quilômetros, o peregrino havia dormido no chão duro da porta da capelinha. Pouco mais de quinze minutos haviam se passado. Despertou sem susto com o breve rumor da carroça. Apesar do pequeno cochilo, acordou ligeiramente renovado! Espreguiçou-se, calçou as meias, o tênis, levantou-se, tomou mais um gole de água, jogou a mochila nas costas e retomou a longa caminhada pela estradinha estreita e deserta. Logo adiante chegou ao pé de um morro que parecia não ter fim. “Parece tão longo e íngreme… será que leva ao céu?”, pensou. Chegou ofegante ao topo. De lá avistou as fraldas de Conceição dos Ouros. Apesar de ser morro abaixo, os santos não ajudaram. A descida foi lenta e cautelosa… quase interminável!

Um homem caminhando, ainda que sozinho e numa hora impropria, com uma mochila nas costas e um cajado na mão, não precisa de palavras para dizer aonde está indo! Sua figura já diz o seu destino. Na entrada da cidade dois homens que trabalhavam numa obra aprumaram o corpo para saudar o peregrino.

– “… indo para Aparecida?”, perguntou o pedreiro.

A um aceno do homem de boné, mochila e cajado, o servente emendou:

– “Nossa Senhora te acompanhe!”

Poucos metros adiante, numa esquina, uma singela padaria. Comeu seu salgado predileto: coxinha! trocou a garrafinha d’água vazia por uma cheia e seguiu viagem. Cortou o centro da cidade. Olhou para a igreja de N.S. da Conceição, de portas fechadas, e sem parar fez uma breve prece silenciosa. Poucos minutos depois passou pelos quebra-molas do outro lado da cidade e se viu novamente sozinho da estrada quase deserta. Eram quase duas da tarde quando entrou na lanchonete Peixe-boi… Não tinha fome, mas tinha muita sede. Não tinha pressa, mas não queria perder tempo. Dentre tantas lembranças, pessoas, fatos, imagens que desfilavam na sua mente, sempre surgia a imponente basílica… as vezes deserta como já vira algumas vezes, às vezes lotada, de um jeito ou de outro carregada de energias, de sonhos, de santidade… As vezes a basílica parecia tão distante, às vezes tão próxima! Se fechasse os olhos e tornasse a abri-los parecia que no próximo passo já pisaria nos seus degraus. Precisava chegar ali… Seu espírito não descansaria enquanto não subisse aqueles degraus, enquanto não pousasse seus olhos marejados na imagem da Santa!

O calor causticante do meio da tarde de outubro judiava. Os pés pegavam fogo. Algumas bolhas nos dedos já haviam estourado. As virilhas dentro da calça folgada de moletom ardiam… Faltavam cerca de cinco quilômetros para chegar à Paraisópolis, menos de um terço da caminhada. Antes de começar a última subida parou para recompor as energias. Deitou-se na grama verde e tenra na sombra dos ciprestes… apoiou as pernas na mochila… no minuto seguinte estava dormindo. A proximidade da pista, a um metro do acostamento, não permitiu um sono sereno como o da porta da capelinha deserta. Despertou dez minutos depois com a buzina de um caminhão. Retomou a caminhada. Subiu o morro e desceu já no perímetro urbano de “Ventania”. Apesar do cansaço, dos calos e assaduras, estava bem-disposto e decidido a caminhar. Fechando os olhos se via dobrando a serra a sessenta quilômetros dali, descendo a serra, virando no trevo de Pinda… Dali por diante seria caminho desconhecido. Mas era o caminho que o levaria ao seu destino. Apesar das dores do corpo, sentia-se animado para aliviar as dores da alma. Olhou no relógio. O sol de outubro reluzia baixo por entre os galhos dos eucaliptos na beira da estrada… faltavam alguns minutos para cinco da tarde. Havia planejado dormir umas horas em Paraisópolis. Mudou de ideia.

– “Ainda está cedo. Vou passar reto… vou seguir até São Bento… Consigo chegar lá pouco depois das oito da noite, assim fico perto da metade do caminho”, pensou o peregrino. E começou a fazer as intermináveis curvas que antecedem Paraíso até que… sentiu uma leve vertigem!

– “Deve ser o cansaço e o sono”, concluiu o peregrino piscando com energia os olhos e sacudindo a cabeça.

Continuou a caminhada solitária. Alguns metros adiante uma cortina negra e disforme desfilou na sua frente… Abriu bem os olhos… as curvas da estrada e os carros se misturaram… o chão sumiu!… O alambrado de uma casa na beira da pista evitou que ele se estatelasse no chão. Sentiu que ia desmaiar. Sentou-se ali mesmo. Estendeu o corpo no cimento morno da calçada ao lado de um portão. Dessa vez usou o alambrado para apoiar os pés e manter as pernas para cima, e a mochila como travesseiro. Só então se lembrou de que a última coisa sólida que havia mastigado fora uma coxinha na padaria de esquina em Conceição dos Ouros, no final da manhã. Enquanto pensava no ‘descuido’, uma senhorinha, moradora da casa em frente, a qual vira a inusitada cena, chegou indagando e oferecendo ajuda.

– “Estou caminhando desde cedo quase sem parar… deve ser o cansaço”, explicou o peregrino, ainda de costas com as pernas apoiadas no alambrado. “Mas aceito um copo d’água”, completou.

O segundo salgado do dia deglutiu duzentos metros adiante, na pequena padaria depois da curva da igreja, antes do posto do Pituta. Recuperou parte das energias, mas refez os planos. Aliás, voltou ao plano original. Às seis da tarde entrou no hotel Central na praça de Paraisópolis. Precisava chegar ao seu destino, mas para isso precisava descansar para repor as energias. Tinha que dormir! E dormiu mesmo, antes da hora. Mal entrou no quartinho simples lá no fundo, longe da rua, colocou a mochila sobre uma cadeira, retirou o tênis e a meia, soltou o corpo fatigado sobre a cama e… apagou! Acordou duas horas depois, sacudido por pernilongos que entravam pela janela aberta!

Depois de um demorado e lento banho, atravessou a praça São José e foi jantar no restaurante do outro lado. Eram oito e meia da noite. Foi sua primeira refeição do dia. De volta ao velho hotel pediu ao septuagenário recepcionista, magrinho e grisalho, para acordá-lo à meia noite. Saciada a fome do corpo, faltava agora saciar a fome da alma. Isso, no entanto não o impediu de dormir. Estendido de costas na singela cama sem desfazer, com as pernas e os braços abertos, não precisou da ajuda dos ‘carneirinhos’… antes mesmo de terminar o tete-a-tete com a Mãezinha, já estava nos braços de Morfeu!

Não ouviu as doze badaladas do sino da matriz de São João a poucos metros do hotel. Mas despertou com o ritmado ‘toc toc toc’ na porta do quarto. O recepcionista de cabelos lisos e escorridos foi tão pontual quanto Alfred ou o Big Ben numa noite de inverno. Antes de o ponteiro escorregar para meia noite e um, ele estava batendo à porta. Vestir e se preparar para sair foi fácil e rápido. Bastou vestir uma camiseta limpa, a calça de moletom surrada, calçar o tênis e jogar a mochila nas costas. Ao calçar o tênis sentiu que o pé direito estava ligeiramente apertado. Só então percebeu que o tornozelo estava começando a inchar. Isso, no entanto não o impediria de retomar a caminhada rumo à Aparecida. Comeu metade de um pão da tarde, uma chávena de café e dirigiu-se à portaria. O recepcionista magrinho e calado cochilava num sofá velho diante de uma tv sonolenta. Saiu à porta. Antes de pôr os pés na rua olhou à sua volta. Dois ou três cachorros de rua cochilavam no jardim próximo aos trailers de lanches. Lá no fundo, um quarteirão depois da igreja, dois homens e uma moto parada. Um montado nela, o outro ao lado. Pareciam estar conspirando contra ele. Era por ali que ele teria que passar. Sentiu medo. A cidade estava deserta. Um vento suave sacudia levemente as arvores sombrias do jardim. Parecia uma cidade fantasma! Pela primeira vez na viagem sentiu medo. Observou o corpo… os pés estavam doloridos… as juntas das pernas doíam aos primeiros movimentos… as virilhas, embora arranhadas, não reclamavam desde que não fossem tocadas. Teve dúvidas se deveria continuar. Sabia que não desistiria da viagem… tinha de fazê-la, mas talvez devesse esperar o amanhecer! Estacado na porta do hotel, pensou… pensou, pensou, tornou a olhar para a direção dos rapazes da moto. Ainda estavam lá. Parecia que o estavam esperando… Repensou. Voltou para o quarto. Tirou apenas a mochila e deitou-se de costas na cama. Desta vez não adormeceu. Pensava nos motivos que o trouxera até ali. Nos motivos que o levariam até a casa da Mãezinha. Precisava continuar. Precisava buscar respostas. Além do mais, desistir seria uma derrota, um fracasso … não poderia olhar para si. Levantou-se. Andou pelo minúsculo e singelo quartinho. Havia caminhado menos de cinquenta quilômetros… Teria que caminhar ainda mais de cem! Agora, além das dores do corpo teria que enfrentar também as dores do medo, da incerteza, da serra fria e deserta durante toda a madrugada. Orou e pediu luz… pediu luz para a Mãezinha. Afinal, era para ‘vê-la’ de perto, para conversar ‘pessoalmente’ com ela que estava caminhando! Decidiu. Colocou a mochila nas costas e foi para porta novamente. A tv da recepção estava em silencio. A poltrona do velhinho magricela estava vazia. Abriu a porta e tornou a perscrutar a praça da matriz. A moto e os dois homens não estavam mais lá atrás da igreja. Só os cães de rua cochilavam em rosquinha na beira do jardim. Era uma hora da manhã. Puxou a porta atrás de si e reiniciou a caminhada. Resoluto, mas lento, pois as juntas da cintura para baixo precisariam de alguns minutos para aquecer e desatar.

Os primeiros minutos de caminhada renderam. Como não tinha com quem dividir o espaço da longa rua de traçado e piso irregular da centenária cidade, o peregrino podia andar pelo meio da rua, onde o piso maltratava menos a planta dos pés. Assim, debaixo das luzes amarelas e bucólicas da madrugada, ele chegou rapidamente à saída da cidade. A partir do trevo, seriam apenas ele, seus medos, e as sombras da madrugada. Para testar sua coragem o vento, muito comum naquele trecho nas escarpas da serra da Mantiqueira, resolveu sacudir a ponta dos ciprestes na beira da estrada. Nada que uma Ave Maria não pudesse resolver…

Apesar de ser início de outubro… e de primavera, a madrugada estava fria, escura e silenciosa. Podia-se ouvir o farfalhar das folhas das arvores com o balanço do vento, o coaxar de um sapo num brejo qualquer e até a sinfonia dos grilos na beira da estrada. De vez em quando a escuridão era inundada pelos faróis de um carro que passava rompendo também o silencio. Foi num desses momentos que a coragem e a fé do peregrino foram colocadas à prova. Acompanhando as luzes vermelhas de um carro que passava, a poucos metros à sua frente o peregrino avistou um vulto na beira da estrada. Podia ser um toco de arvore, uma pedra ou até mesmo um arbusto… mas o vulto tinha olhos! Olhos que brilharam por alguns segundos diante dos faróis do carro, que logo sumiu na curva deixando um breu atrás de si. Suspense! Apreensão! Medo! O peregrino solitário estacou!

– “E agora? O que será aquilo? É um animal, com certeza! Um cavalo, uma vaca? Não. É muito pequeno para ser um inofensivo cavalo ou uma fugidia vaca em busca de capim fresco. Um cachorro, uma paca, um tatu, um ouriço? Não. É muito grande para ser um bicho desses. Mas então que bicho será? Uma onça? Um lobo?”, perguntou a si mesmo o peregrino, conferindo o tamanho e o peso do cajado de bambu verde que levava. Contra um cachorro de pequeno porte o cajadinho seria útil… No entanto, contra garras e dentes afiados de uma onça parda ou um lobo, o porretinho não faria nem cócegas!

Estacado na beira da estrada a poucos metros do vulto de olhos brilhantes, o peregrino viveu seu pior momento da caminhada solitária. Por alguns instantes esqueceu as dores nas pernas, as dores nas virilhas, as dores nas juntas das pernas, o cansaço… esqueceu até os motivos que o colocaram na estrada. Nada disso teria importância se tivesse que lutar com uma onça parda usando apenas um cajadinho de bambu verde de pouco mais de um metro. Tinha uma segunda opção… voltar de fasto, lentamente, até sumir na curva, torcendo para o bicho não tivesse sentido seu cheiro, e voltar para Paraisópolis! Descartou imediatamente a opção! Não viera até ali para desistir! Além do mais, podia ser mesmo apenas uma pedra grande desgarrada do barranco acima da estrada. E os olhos brilhantes? Poderiam ter sido colocados ali na pedra pelo cansaço, pelo medo, pela insegurança… pela falta de fé!

– “É isso mesmo! Onde está minha fé? Minha confiança na proteção divina! Que tipo de peregrino sou eu que tem medo de uma suposta oncinha na beira da estrada”, perguntou a si mesmo o peregrino, apertando com força a medalhinha prateada que levava pendente do cordão de ouro junto ao peito. Retirou a medalhinha de dentro da camiseta suada, levou aos lábios, deu-lhe um beijo, apertou firme, tornou a guardá-la, chamou todos os anjos de plantão e seguiu em frente.

A curta conversa silenciosa com a Mãezinha no meio da madrugada não passou de um monólogo… não teve resposta. Mas o peregrino sentiu confiança. Até porque, não tinha opção. Mas tomou algumas cautelas. Até então caminhava – erradamente – à direita da estrada. A partir desse momento, atravessou a pista e seguiu pela esquerda, assim passaria a dez metros mais longe do inimigo. Parou de apoiar o cajado no chão ou de brandi-lo, e retomou a caminhada solitária, resoluto, tentando parecer invisível. À medida que se aproximava do vulto, mais se encolhia! Parecia que todo seu corpo se resumia a seu coração… o qual tentava saltar do peito! Os poucos mais de cem metros que o separavam do vulto foram percorridos em menos de três minutos, mas pareceram uma eternidade! Nesse ínterim, desde que o último carro passara inundando a estrada de claridade, os olhos foram se acostumando com a escuridão da madrugada. Ainda assim não era possível distinguir o vulto feroz. E o vulto continuava lá, indefinido, sem brilho, amedrontador … imóvel! Alguns metros depois da passagem incólume pelo ‘felino’, com o coração batendo ainda a cento e vinte por minuto, surgiu na curva o clarão dos faróis de um carro. Sem parar de caminhar o peregrino ficou olhando para trás, na tentativa de identificar o perigo do qual escapara. Quando o carro passou por ele o peregrino conseguiu, enfim, distingui-lo. O ‘vulto da madrugada’ era uma… vaca malhada! A pacata ruminante com certeza havia se empanturrado de capim tenro na beira da estrada e resolvera se deitar ali mesmo, para ruminar… e assustar peregrinos solitários!

O alívio deu novas energias ao peregrino. Mesmo cansado e cheio de perrengues, ele apertou o passo. Duas horas depois avistou as primeiras luzes de São Bento do Sapucaí. Ao se aproximar do primeiro pontilhão de acesso à cidade da Pedra do Bau, foi surpreendido por uma algazarra… de pássaros! Eram garças. Numa restinga de Pinus à direita do pontilhão havia centenas delas dormindo. Passava pouco de cinco da manhã. A algazarra das garças era porque o céu, ainda cinza e carrancudo, dava os primeiros sinais do novo dia! Era hora de alçar novos voos e procurar comida nas margens do rio Sapucaí Mirim. Do acesso norte até a entrada principal de São Bento são pouco mais de mil e quinhentos metros. No entanto, quando o peregrino chegou ali, o dia já havia mostrado suas cores. Cores turvas, cores que prenunciavam chuva. Naquele trecho de serra seria uma manhã ao menos emburrada! Foi ali na entrada da cidade, na grama esmeralda verde e fofa que o peregrino jogou seu corpo. Era a cama ideal. Até porque, com o medo do ‘vulto da madrugada’ e os dezessete quilômetros que separam o Hotel Central de Paraisópolis dali, ele havia esgotado todas suas forças. Teria que tirar os pés do chão por alguns minutos… ou então pegar o Mercedes da Gardênia e voltar para casa. Dormiu na grama úmida pelo sereno. Dormiu estendido de costas cerca de quinze minutos. E não dormiu mais porque o corpo esfriou… e no bonito canteiro de grama do trevo de São Bento do Sapucaí, embora macio, não havia cobertores!

Parou, deitou, descansou, dormiu e… se arrependeu! Não era apenas a temperatura da serra que baixara. O corpo havia esfriado. Ao se levantar para retomar a caminhada o peregrino se deu conta de que estava travado! A vontade, o propósito o impulsionava para frente… mas as pernas não obedeciam. E se obedeciam, reclamavam. Reclamavam muito. Doíam desde a ponta do pé até as juntas do quadril. Doía o corpo todo. O lado direito um pouco mais. Só não doía o coração… Só não fraquejava a vontade de chegar à Basílica. E o peregrino seguiu… apoiado no seu cajado de cana da índia cortado no final da tarde de segunda-feira, na entrada do Cajuru, há oitenta quilômetros dali. De um trevo ao outro de São Bento, cerca de um quilometro, o peregrino não andou… arrastou-se à margem da via, com as pernas abertas, até o corpo se aquecer. Estava ficando cada vez mais difícil… e era só metade do caminho! À medida em que foi se aquecendo as pernas foram desatando. O movimento de pessoas chegando à cidade ou saindo dela para trabalhar ou simplesmente cruzando a estrada, o chilrear dos pássaros, o cacarejo de galinhas e o mugido do gado nas proximidades da estrada ajudaram a distrair o peregrino. Quando se deu conta, a cidade e uma extensa e leve subida haviam ficado para trás. Ainda no município de São Bento parou novamente para dar novo descanso às pernas. Deitou-se com as pernas suspensas e acabou cochilando por cerca de cinco minutos. Sua cama desta vez foi uma gigantesca pedra plana à margem esquerda da estrada ao pé de um barranco. Teve o cuidado de não parar muito tempo para não esfriar demais o corpo, mesmo que o descanso não fosse satisfatório. No futuro passaria por ali dezenas de vezes e se lembraria deste fato. A partir de então o ritmo da caminhada tornou-se mais lento… e sonolento! Em determinado trecho da estrada se pegou dormindo. Estava descendo um leve declive próximo ao Posto Barracão quando uma buzina zuniu nos seus ouvidos. Despertou a tempo de ver um caminhão baú passar muito perto. Olhou para a frente e não viu mais o posto. Olhou para trás e lá estava ele… Constatou então que havia caminhado mais de cem metros dormindo. E era uma curva! O susto afugentou o sono. Poucos metros adiante retornou ao Estado de Minas e cruzou a velha Sapucaí Mirim cercada de serras, onde tomou café da manhã. Estava num dos trechos mais bonitos da viagem, cercado de matas por todo lado e alguns riachos que desaguavam no infante Rio Sapucaí Mirim. Apesar de belo, fresco e romântico, o trecho era também o mais perigoso! A estrada é estreita, cheia de curvas e sem acostamento! Quando sentou-se diante da tv para assistir ao seu programa esportivo favorito – que começa às 12:40h – no primeiro restaurante que avistou em Santo Antônio do Pinhal, o apresentador já estava se despedindo. Completamente ignorante das necessidades nutricionais de situações como essa, comeu macarronada, o que deixou a caminhada inicialmente ainda mais lenta. Demorou bem mais de uma hora para romper os quatro quilômetros serra acima até a Estação Lefreve. O sol escaldante de outubro, que o acompanhara durante a leve subida, deu uma trégua… e o peregrino solitário jogou seu corpo cansado aos pés da gigante imagem de N.S. Auxiliadora. Sob a proteção da santa que, emoldurada na cor da pureza contempla o imponente Vale do Paraíba, peregrino solitário mais uma vez se entregou às caricias de Morfeu.

“Pra descer todo santo ajuda”. Ainda bem que o velho ditado é verdadeiro, pois o peregrino solitário precisaria de ajuda. Apesar de estar devidamente alimentado e parcialmente descansado, as dores do corpo haviam aumentado. As virilhas ardiam e provocavam careta cada vez que uma perna tocava na outra. Os calos nos dedos e plantas dos pés também ardiam. O tornozelo direito parecia dois. O pé direito quase não entrava mais no tênis… Os oito quilômetros de serra abaixo em intermináveis curvas precisaram de mais de duas horas para serem arrastados. Passava de cinco da tarde quando o peregrino sentou-se na varanda do posto da PRE, a poucos metros do trevo de Pinda. O céu estava turvo. O tempo prometia chuva. A partir dali seria caminho desconhecido. Todas as vezes que descera a serra até então, seguira direto para Tremembé ou Taubaté. No entanto sabia, por mapa, que a estrada à esquerda o levaria ao seu destino. Só não sabia quantos passos ainda teria que dar. O primeiro foi perguntar ao soldado na ponta da varanda, embora a resposta não interferisse na sua obstinação.

– “Sabe a distância daqui à Aparecida?” – perguntou.

Encostado na coluna no canto da varanda do posto policial, o soldado jovem, alto, dentro de uma farda chumbo muito justa realçando o corpo atlético, demorou mais de dez segundos para desviar o olhar do celular e olhar para ele. Olhou, mas nada disse. Voltou os olhos para o celular e continuou mudo por mais alguns segundos até que…

– “Daqui a dez minutos passa aqui um ônibus que vai para Aparecida”! – disse finalmente o policial, com indiferença e desdém. E continuou a viajar no celular.

Agora foi o peregrino que demorou alguns segundos para processar a resposta. Sentiu um ligeiro calor subir ao rosto. Teve um breve ímpeto de responder à altura do pouco caso do policial, ou ao menos algo do tipo:

– “Eu gosto de caminhar! Só queria saber a distancia…”.

O ímpeto, no entanto, durou um segundo ou dois. O peregrino solitário já estava entrando naquela idade em que dá prazer ouvir o silencio falar por mil palavras. Naquela idade em que é prazeroso ver a pessoa mastigar e engolir sozinha a própria arrogância. Além do mais, nada do que dissesse ou ouvisse do jovem e arrogante policial iria somar alguma coisa à conjuntura. Nada iria estreitar aquela empatia natimorta. Fechou o olhar no teto da varanda e olhou para a imponente Basílica de tijolos à vista que o esperava no dia seguinte. Chegaria lá de qualquer maneira, mais cedo ou mais tarde, sem precisar da informação do agente da lei. Ao sentir um leve torpor, sentou-se. Não queria dormir um minuto sequer ali no posto policial. Corria o risco de ser enxotado. Levantou-se e retomou a caminhada, lentamente, com as pernas abertas, parecendo um sapo atropelado, sob o olhar confuso do policial que permanecia encostado na coluna do posto com o celular na mão. Minutos depois virou à esquerda no trevo, deixou a movimentada estrada que descia de Campos do Jordão e seguiu pela estradinha estreita e deserta, desconhecida. Raspava seis da tarde de início de primavera, mas o céu estava da cor da farda do policial… mais escuro que do que sua educação.

Na sua cidade o peregrino conhecia um grupo de romeiros que todo ano fazia aquele trajeto. Sabia, portanto, que naquele trecho, entre o pé da serra e a cidade de Pinda, na baixada, havia uma pousada defronte uma igrejinha. Pretendia parar ali para refazer as energias. O ponteiro da hora se aproximava do número oito no relógio quando avistou as primeiras luzes da pequena vila. Pelo que contavam os romeiros seus conterrâneos, era ali a pousada. Bem na hora. A chuva, que desde as cinco da tarde prometia cair, finalmente cumpriu a promessa, mas felizmente caiu à prestação. Permitiu que o peregrino chegasse à pousada.

A “Pousada dos Romeiros”, no bairro Bom Sucesso, em frente a igrejinha de Santa Rita, é só um arremedo de pousada. A pequena e simplória casa composta de uma sala, dois banheiros com chuveiros e vários quartos pequenos, cercada de alambrado na beira da estrada, pelada por dentro e por fora, é só isso mesmo, mais nada, ou quase. Na sala tem um sofá velho com a napa rasgada e o estofado furado! É o quanto basta. O romeiro que levar colchão e cansaço poderá dormir abrigado do vento ou da chuva. Comida e bebida têm no botequinho do outro lado da rua. Na porta da velha pousada o romeiro que chega encontra um aviso: “A chave fica no bar em frente”. Foi lá que, em meio à balburdia de torcedores que assistiam um jogo de futebol do campeonato brasileiro, o peregrino solitário jantou pão com mortadela, pagou adiantado os cinco reais pela “diária”, pegou a chave e foi dormir. Antes de pegar no sono teve que travar duas batalhas: uma com os ratos que dormiam no estofado furado do sofá e outra com os pernilongos que desceram das paredes em busca de sangue doce e fresco. Expulsou todos eles. Os ratos, covardes por natureza, não voltaram. Já os pernilongos, inteligentes e dissimulados, se esquivavam dos tapas e se afastavam, mas voltavam de mansinho, uns em silencio e outros, por vingança, tocando pagode nos seus ouvidos. Para dormir precisou cobrir a cabeça. Teve a seu favor dois grandes aliados: o cansaço de dezenove horas de caminhada desde a praça São José em Paraisópolis e a chuva que batia suavemente no telhado sem forro da velha pousada. Tão logo o peregrino se recolheu depois da ‘lauta’ refeição de pão com mortadela no barzinho, São Pedro abriu de vez as comportas.

À meia noite em ponto o peregrino solitário foi sacudido pelo silencio da noite. Acordou lentamente, calmamente, ligeiramente desnorteado… Demorou para perceber se de fato estava acordado ou se estava sonhando… se estava vivo! Sim, havia acordado e estava vivo. A madeira dura e seca do sofá velho espremendo seu quadril disse exatamente onde ele estava. Consultou o relógio… Meia noite. Havia parado de chover. Silencio total no botequinho em frente a pousada. Era o momento de recomeçar a caminhada. Foi rápido… não precisou refazer a cama e nem arrumar a mala. Bastou jogar a mochila nas costas, apagar a luz e fechar a porta. A chave ficou do lado de dentro da fechadura. No minuto seguinte já estava na estrada. Fez o sinal da cruz, pediu proteção à Santa Rita defronte sua igrejinha e saiu caminhando, lentamente, com as pernas afastadas uma da outra, apoiado no pequeno cajado de bambu. À medida que foi se afastando da pequena vila marginal da estrada, as casas foram raleando. Mesmo assim, ao longo de quase todo o percurso dali até a cidade havia casas… e seus vigias. Fiéis vigias, desconfiados vigias, valentes vigias, barulhentos vigias. Todos avisando que estavam atentos, e ameaçando morder suas canelas – ou panturrilhas – se ele se aproximasse. Nunca o peregrino havia ouvido tanto latido de cachorro. Os mais estridentes e valentes não se contentavam em latir intramuros… saiam à estrada para impor seu território. Em um poste ao lado do cruzamento da linha férrea havia uma plaquinha com os dizeres: “Caminho da Fé”.

– Deve passar muitos romeiros por aqui durante a madrugada… como os moradores conseguem dormir com seus cães latindo desse jeito? – perguntou o peregrino ao seu mudo cajado de bambu.

A retomada da caminhada de um peregrino depois de apenas algumas horas de descanso, tempo insuficiente para curar as feridas, é sempre lenta. Só deslancha um tempo depois, quando o corpo aquece. Mas, depois que a dores se vão, o cansaço vem… e a caminhada volta a ser lenta, e demorada. Os doze quilômetros que separam Bom Sucesso de Pinda ficaram mais longos. Eram mais de três da manhã quando o peregrino cruzou o Rio Paraíba do Sul. Parou sobre a ponte e ficou por breves minutos contemplando as sombras e ouvindo o leve murmúrio das águas batendo nas pilastras lá embaixo. Pensamentos sombrios sobrevoaram sua mente. Bastaria soltar o corpo do parapeito!… Daria descanso ao corpo… e a alma! Quais teorias a polícia alimentaria quando encontrassem seu corpo boiando rio abaixo dias depois? Acidente? Assassinato? Suicídio? Desviou os olhos das águas sombrias lá embaixo. O peregrino solitário era um contador de histórias… “A minha história eu mesmo vou contar”, disse ele para o rio, e acabou de atravessar a ponte! Duzentos metros adiante, à esquerda da avenida dividida por um canteiro salpicado de palmeiras, havia um campo de futebol Society circundado por bancos de alvenaria. Um destes banco serviu de cama para o peregrino. Usando como sempre a mochila como travesseiro, estendeu-se no cimento duro. No minuto seguinte estava dormindo na beira do campo deserto. Não dormiu mais porque o frio, acentuado pela proximidade do rio, não deixou. Levantou ainda mais lento e seguiu em frente. Estava tão dolorido e sonolento que não percebeu a plaquinha pregada no poste na esquina da padaria – ainda fechada – poucos metros adiante. “Aparecida” indicava a plaquinha. Vinte minutos depois se viu no centro da cidade silenciosa. Seguia por uma avenida deserta até que, na esquina do quarteirão da frente percebeu uma confusão. Na porta do que parecia ser um barzinho, ou quem sabe um trailer de lanches, várias pessoas trocavam socos e pontapés! Podia ser uma briga, podia ser um assalto… E agora? Enquanto pensava no que fazer, de repente, do nada, brotou uma farmácia 24horas à sua esquerda. Entrou rapidamente e fingiu comprar alguma coisa. De fato, precisava de água. Por entre os galhos das arvores de uma pequena pracinha pode ver que o conflito no quarteirão adiante continuava. Pagou a garrafinha d’água, saiu pela porta lateral e se afastou dali o mais rápido que pode. Por alguns minutos esqueceu as dores nas virilhas, nas juntas, os calos dos pés! Seguiu rumo norte por dois ou três quarteirões e quando se sentiu em segurança, virou à direita e rumou para o leste. Um tempo depois avistou a saída da cidade. Desta vez, numa esquina, viu a plaquinha indicando “Aparecida”. Era por ali que deveria ter vindo, pensou. Perdera mais de meia hora andando a esmo pelo centro de Pinda, aumentando o cansaço, as dores e… passando medo!

Mas nem tudo eram dores e cansaço na caminhada. Era prazeroso testar os limites, sentir a satisfação de superar desafios. A solidão servia para refletir sobre os erros e acertos do passado… e havia a melhor parte: curtir a viagem propriamente dita. Havia muita coisa interessante à margem da via; as pessoas com suas características, comportamentos e culturas de cada lugar; animais agrupados ou dispersos nos pastos e a própria natureza que, sozinha, já proporcionava um espetáculo! Ver o sol se despedir, e a noite cair mansamente até dominar o céu. Sentir a brisa fresca e o sereno suave da noite. Ouvir o canto dos pássaros ou o silencio deles à noite! Enfim… viajar à pé tem uma série de vantagens impossíveis de serem percebidas quando se viaja de carro. Viajar de carro e curtir a natureza em volta é como o garoto gaguinho que tenta mostrar o submarino aos pais… Diz ele: “Olha lá o su… su… su… su… suuu… miuuu!!!

De carro, um percurso de cem metros se percorre em menos de trinta segundos… Se alguém te mostra um colorido tucano que passa batendo asas no céu, quando você olha, ele já passou! A pé, a mesma distância precisa de ao menos três minutos para ser percorrida. Se você ouve o canto de um Bem-te-vi, sem interromper a caminhada você o localiza no topo de um jacarandá ou de um cedro na beira do pasto, curte sua música até o fim e no final da curva pode vê-lo cruzar a estrada para cantar em outros prados. Esse contato real com a vida, usando as energias do próprio corpo para se locomover, era como balsamo para as dores, e enchia a alma do peregrino.

Quando o peregrino passou solitário pelo primeiro posto de combustíveis à esquerda da via, deixando o perímetro urbano de Pinda, a madrugada colocou no céu os primeiros sinais de palidez, indicando que iria desmaiar e sair de cena… dar lugar a um novo dia. Não demorou os primeiros raios do sol surgiram por entre os eucaliptos na beira da estrada. Surgiram tímidos, ressabiados, como quem pede licença para entrar na nossa casa. Mas não tardou se revelou ardido, quente, implacável … um visitante quase cruel! Faltavam ainda quase vinte quilômetros para chegar ao seu destino. Por conta dos perrengues, seriam os vinte quilômetros mais lentos da caminhada do peregrino. Depois do café na pequena Moreira Cesar, já com o sol escaldante, a primeira parada foi – que ironia! – na sombra suave de uma capelinha na beira da estrada, logo depois da histórica figueira velha. Dali até o trevo de Roseira, o peregrino estenderia seu corpo ao longo da via em qualquer espaço que não atrapalhasse o transito de veículos. Gramados, canteiros de trevinhos, beiras de pasto… qualquer lugar virava cama para o peregrino! Sentava, deitava e se passasse de cinco minutos, dormia. A mente estava sã, intacta, cada vez mais saudável, mas o corpo estava depauperado! A partir do trevinho a caminhada ficou ainda mais difícil, mais cansativa, mais dolorida. O corpo exigia descanso. O descanso, no entanto, estava longe, a nove quilômetros dali… nos bancos duros e lisos, porém frescos da suntuosa Basílica. O sol que no dia anterior havia percorrido o espaço entre nuvens, agora dominava o céu, brilhava como nunca. Brilhava e aquecia, e sufocava, e queimava… O asfalto parecia tremer de tão quente, parecia que iria derreter. O capim e os pequenos arbustos na beira da estrada pareciam estar cozinhando. Debaixo do sol escaldante de outubro o peregrino solitário caminhava trôpego apoiado no cajadinho de bambu. Às vezes parecia que iria se desmanchar, se esbodegar no chão… Às vezes parecia dormente, parecia que iria levitar! Dali a uma ou duas semanas, talvez, ao sentar-se na sombra da mangueira para recordar sozinho a viagem iria reclamar para Deus:

“Nem sei como consegui fazer aquele último trajeto… As dores no corpo eram tantas… Pedi tanto Seu apoio e o Senhor não apareceu! Era tanto cansaço que acho que dormi, desmaiei, perdi os sentidos… quando percebi estava entrando na Basílica”.

Uma leve brisa irá farfalhar as folhas da mangueira para dizer:

“… Neste momento, meu filho… eu te carreguei no colo”!

Sim. Muitas vezes durante a caminhada solitária o peregrino foi carregado no colo!

Mas foram seus pés feridos e cansados que subiram as escadas da Basílica de Aparecida no final da manhã daquela quinta-feira. Subiram lentamente, mas resolutos. Quase não sentiam dores. Agora quem estava inebriado, afogados, eram seus olhos… pareciam uma represa prestes a se romper! Era exatamente meio-dia quando ele parou diante da imagem de Nossa Senhora. A represa se rompeu! Uma cachoeira desceu dos seus olhos. Não sabe quanto tempo ficou assim, parado, olhando para a Santa… chorando! Os olhos estavam ali, grudados na imagem, mas viajavam ao passado. Ao passado distante. Ao passado recente. Ao passado das últimas cinquenta e quatro horas desde que saíra de casa na manhã de terça-feira debaixo de uma chuva fina. Sentiu os ligeiros esbarrões de romeiros que passavam ao seu lado, mas continuou ali, contemplando a Mãezinha. Passara frio, fome, sede, calor, medos, dores … para chegar ali! Ficou assim uma eternidade, em silencio olhando para Mãezinha. Aos poucos as lágrimas foram secando… e um sorriso sereno veio iluminar seu rosto.

Três horas depois embarcou no Mercedes da Pássaro Marrom e dobrou a serra da Mantiqueira. Até então nunca havia percebido o quanto era confortável uma poltrona de ônibus! Alimentado, limpo – de corpo e alma – e sem precisar mover as pernas e os pés e sem esfregar as virilhas feridas uma na outra, entregou-se às caricias de Morfeu. Acordou em Itajubá para trocar o Pássaro Marrom pelo Gardênia.

     Enquanto esperava o ônibus no terminal rodoviário, peregrino – agora não mais solitário – se pôs a pensar sobre os motivos daquela viagem insólita! Só então se deu conta de que percorrera todo aquele caminho, a pé, sozinho, sem conforto, sem apoio, em buscas de respostas para as dúvidas que o afligiam, mas… Sequer fizera as perguntas! No entanto, sentia-se leve, sereno, tranquilo, como se não tivesse mais dúvidas!

Ao longo da caminhada, o tempo todo a Mãezinha esteve ao lado do peregrino solitário, afagou seus cabelos, beijou-lhe a testa, secou suas lágrimas. Durante aqueles cento e cinquenta quilômetros, quando a fé foi colocada em xeque, seu Filho amparou o peregrino. Quando suas forças se esvaíram, seu Filho carregou o peregrino no colo… – ele não percebeu!

Quando finalmente chegou ao destino, cansado, ferido, emocionado bastou olhar nos olhos da mãezinha para esquecer tudo. Estava feliz por estar ali, diante da mãezinha. Esqueceu o que fora fazer ali… esqueceu de fazer as perguntas… apenas chorou! Deixou as lágrimas lavarem seu rosto, sua alma… Sentiu o olhar suave da Mãe e, sem perceber sentiu a leveza do corpo, a leveza do ser… Ah, seus problemas eram tão pequenos diante do amor filial da mãezinha!

Não se lembrou das perguntas que faria, das respostas que fora buscar… Mas encontrou algo muito maior… Paz!

Paz para encarar os desafios, para esclarecer as dúvidas… e superar os obstáculos que o atormentavam!

Em paz, percebeu então que… As respostas foram dadas a cada passo, ao longo da caminhada!

 

Uma semana depois conseguiu calçar o sapato no pé direito…

Ernane Wood está de volta…

Ele e o sócio Mauricio reabriram a banca “Central” na Galeria Portal

“Não é a mesma coisa, pois estamos afastados da rua. Mas é o que dá para fazer. Trinta e oito anos trabalhando na mesma banca, no mesmo lugar… é a única coisa que eu sei fazer. E não dá para ficar parado”, diz Ernane, mais conhecido do que nota de dez na cidade.

Era eu ainda um garoto branquelo de calça curta quando passei pela primeira vez na Pç. Senador José Bento em Pouso Alegre e lá já estava a “Banca Central”! Era bem menor, proporcional ao tamanho da cidade que em 1969 tinha cerca de 40 mil habitantes. O dono era o Sr. Dirceu! Sujeito magro, miúdo, cabelos já grisalhos, lisos e bem cortados. Vestia-se com elegância, calça e camisa social. Entre uma tragada e outra do seu inseparável cigarro Minister, conversava com a clientela e com todos que passavam entre a banca e as “Casas Pernambucanas”. Nos anos seguintes, ainda molecão de cabelos compridos, entreguei muitos botijões de gás na sua casa na Rua das Papoulas no Jardim Yara e vinha cobrar a ‘notinha’ na banca. Tempos depois, quando Dirceu morreu, seu filho Juarez tentou tocar a banca, mas a profissão de funileiro falou mais alto.

Foi assim que Ernane Faria Wood assumiu a Banca Central e tocou o comercio de beira de calçada, com o sócio Mauricio, por mais de três décadas… e viu outras bancas de calçada surgirem pela cidade.

Em 2004, quando lancei meu jornal impresso FOLHA de Pouso Alegre, a cidade tinha 13 bancas de jornais. Seis delas num raio de menos de cem metros, no coração de Pouso Alegre. A mais antiga era a do Ernane na praça Senador José Bento. Ainda na praça, na outra extremidade, ficava a banca da Rita e logo adiante atrás da catedral, a banca da Ligia. Mais acima em frente a antiga Caixa ficava a banca do Sergio. No inicio da Duque de Caxias uma de cada lado: Saulo à direita e Toninho à esquerda. A banca do Chico reinou durante décadas no final da Dr. Lisboa em frente o Bradesco. Na Vicente Simões havia duas bancas, a do Carlinhos em frente o Alvoradão e outra na pracinha do Semáforo do Santa Lucia. Madalena tocou sua banca durante um tempo na porta da Univas. Defronte o Posto Pantanal havia a banca do Fernando. Rubens Gomes vendeu milhares de Figurinhas da Copa na sua banca na porta da Medicina.  Cristina, minha ex-colega do ensino fundamental, tem sua banca no interior do Baronesa. O velho Claret – e depois Andreia – vendia de tudo e um pouco mais numa banca no terminal rodoviário.

As bancas nasceram para atender a demanda das pessoas que liam “jornais e revistas”. Sim, houve um tempo em que as pessoas liam jornais e revistas impressas, rsrsrsrs! Com isso s bancas viviam abarrotadas de revistas semanais tais como IstoÉ, Exame, Veja, Placar, Contigo, Tititi, Caras, e outras de vida efêmera…

Havia também os jornais diários, de circulação nacional: Estado de Minas, Folha de São Paulo, O Globo… e os jornais semanais de Pouso Alegre. Na década de 90, a cidade teve oito jornais circulando regularmente – escrevi notícias policiais e esportivas em quatro deles (Sul das Geraes, Jornal do Estado, Diário de Pouso Alegre e Folha do Vale). Hoje apenas dois, tropegamente, conseguem sobreviver!

Com a mudança de habito do brasileiro e consequente decadência dos jornais e revistas, os comerciantes migraram para outros produtos. Visando a própria sobrevivência e as necessidades da clientela, hoje as bancas de jornais e revistas vendem brinquedos, souvenirs, isqueiros, recarga de celular, cigarros, ‘zona azul’ (quando funciona), chaveiros, posters do Galo campeão, rsrsrsrs, games, de quatro em quatro anos Figurinhas da Copa, bolinhas de gude, máscaras contra covid, balas, chicletes, e se um ribeirão passasse perto venderia também varas, anzóis e minhoca para pescar!

Vende até livros!

Em 2014, quando lancei meu primeiro livro, espalhei “Meninos que vi crescer” por todas as bancas da cidade. Ano passado “Quem matou o suicida” também foi parar nas gôndolas das bancas.

“Quem matou o suicida” e “Meninos que vi crescer” estão na Banca Central, na galeria Portal, ao lado do Teatro Municipal.

O golpe de misericórdia nas “bancas de jornais & revistas” de Pouso Alegre, foi dado pela prefeitura em meados deste ano. A pretexto de ‘revitalizar’ o centro a cidade, as bancas estão sendo retiradas, fechadas. A própria prefeitura se encarregou de ‘guinchar’ as bancas, como vimos nas imagens que circularam pela internet. Sergio, Rita, Carlinhos, Ernane se aposentaram ‘compulsoriamente’ … sem proventos. Perderam o ganha-pão…

Um destes comerciantes há anos entrincheirado na sua banca no centro, desesperado com o fim do seu ganha-pão, esteve muito perto do fim da vida!

Ernane deu a volta por cima. Depois de quase três meses sem trabalho e sem ver a cor do dim-dim que pingava todo dia, desde que sua banca foi fechada, ele o sócio Mauricio enfim reabriram a tradicional Banca Central. Desde o ultimo final de semana eles estão atendendo a clientela na Galeria Portal, na Dr. Lisboa.

“Não é a mesma coisa, pois estamos afastados da rua. Mas é o que dá para fazer. Trinta e oito anos trabalhando na mesma banca, no mesmo lugar… é a única coisa que eu sei fazer. E não dá para ficar parado”, diz Ernane, mais conhecido do que nota de dez na cidade.

Para atrair novamente a clientela, Ernane passa boa parte do dia na porta da galeria, ao lado do Teatro Municipal.

Boa sorte Ernane e Mauricio… Boa sorte órfãos de Bancas de Jornais & Revistas.

A Vendinha do “Vilino”

Deixou ‘rastros’ na minha terra.

Nasceu pequenina – uma porta e duas janelinhas – na beira da estrada. Viveu mais de quatro décadas… e morreu pequenina, na beira da estrada, com uma porta e duas janelinhas! Mas deixou histórias para contar…
Ao longo de mais de quarenta anos a vendinha do Vilino mudou três vezes de endereço, mas sempre na beira da estrada principal do bairro dos Coutinhos. A primeira foi construída entre a casa da “Lôrdes” e a casa do “Câindo”. Casinha de madeira com uma janelinha lateral, para que o vendeiro pudesse ver de longe quem se aproximava pela estrada poeirenta, outra janelinha para olhar quem passava em frente, e uma portinha no centro. No seu interior cabiam seis ou sete pessoas sentadas nos dois bancos, um grande e outro pequeno.
Ali se vendia pão com mortadela, guaraná Tubaína, paçoquinha, pirulitos e bala Chita de várias cores. O produto mais vendido, no entanto, razão de ser das vendinhas de roça, era… suco de gerereba! Tatuzinho, democrata, Moreninha, Amélia… de garrafa ou de garrafão. Por isso mesmo a vendinha não era socialmente bem-vista. Seus frequentadores ou eram jovens pouco afeitos às responsabilidades do dia seguinte, ou pouco afeitos aos hábitos caseiros. Ou então eram cidadãos menos sisudos, mais liberais…
Os conservadores não punham os pés na vendinha nem para buscar remédios! Se precisassem passar defronte a vendinha durante a noite, passavam do outro lado da estrada. Se por acaso estivessem usando lanterna, tocha de bambu ou tição de fogo para iluminar a estrada, apagavam, para não serem vistos e não ter que cumprimentar quem estivesse na janelinha da venda.
Além do secular suco de gerereba, descoberto casualmente pelos escravos de engenho séculos antes, a vendinha vendia também vinho suave e a tradicional loira gelada. A energia elétrica só chegaria ao bairro uma década e meia depois. Por isso, a cerveja era mantida em uma caixa de isopor em meio às pedras de gelo. O doce guaraná Tubaína e outros refrigerantes eram mantidos em contato com a terra, num buraco feito no barranco do lado de dentro da vendinha. Luz? Lampião à querosene!
Com raras exceções, a vendinha do Vilino foi um divisor social! Seus frequentadores quase sempre trabalhavam de camaradas para terceiros … Por isso mesmo, os conservadores, geralmente patrões, quando precisavam de um camarada para o dia seguinte, para a colheita ou plantio, para roçar pasto, para mutirão, etc… buscavam empregados – desocupados ou descompromissados – na vendinha do Vilino. A vendinha, única no bairro, era ‘ponto de encontro’ dos homens… servia de ‘agência’ de empregos. Servia também para se negociar excedente de produção agrícola, animais…
A segunda vendinha foi construída na curva da Porteira do Buraco, encostada no barranco da estrada, ao pé do terreno do ‘Tio Lilo’, duzentos metros distante da primeira. A venda cresceu. Ali cabiam sentadas encostadas na parede, quase dez pessoas. Por isso ganhou mais duas janelinhas, uma de frente para a estrada e outra na lateral. Alguns frequentadores vinham do bairro vizinho, o Canta Galo. Aos domingos, o entorno da vendinha ao pé do campo de futebol, fervia de gente. Ao lado da vendinha havia um banquinho – uma única tábua de madeira apoiada em três tocos fincados no chão – para acolher os frequentadores durante o dia. À noite não tinha utilidade, pois as pessoas não podiam ‘pegar’ sereno…
Quase tudo que vendia na sua pequenina vendinha, Vilino trazia do Bar do Nezinho em Congonhal. Inicialmente na garupa da sua bicicleta e depois no bagageiro do ônibus da Gardenia até o ‘ponto’ na beira do asfalto.
A terceira vendinha nasceu da necessidade de ‘barrar a concorrência’, já que estava localizada na beira do campo de futebol! Para isso Vilino comprou um bico de terreno do pretenso concorrente, a poucos metros da segunda, mais perto do ribeirão. Essa foi feita de alvenaria e abrigava até uma mesa de bilhar.
Vilino, desde pequeno trabalhava na roça. Por isso, excetuando os sábados e domingos, a vendinha abria sempre no finalzinho da tarde ou no crepúsculo, e fechava por volta de nove da noite. A rotina cansou o vendeiro. Depois de quase uma década na dupla atividade laborativa, Vilino vendeu a terceira vendinha para o “Tonho Dorvá”… e foi trabalhar na cidade.
A história da Vendinha do Vilino, no entanto, não se restringe à necessidade de ampliar a fonte de renda ou ao mero tino comercial. Vilino, que não se tem notícia de que tenha ostentado um único diploma escolar, era homem culto, politizado e bem informado. Ouvia diariamente, no seu radinho à pilha, “A Voz do Brasil” – programa popularmente tachado de enfadonho, no entanto mais barato, mais informativo e mais honesto do que qualquer outro programa radiofônico e ou televisivo hoje em dia.
Vilino era uma daquelas pessoas à frente do seu tempo. Ele queria propiciar informação às pessoas… ele queria estar em contato com as pessoas, ainda que fosse na sua singela vendinha de beira de estrada. Por isso, pouco tempo depois, retomou a antiga rotina. Agora, casado com ‘Marirene’, construiu sua vendinha no terreno do sogro Ovidio, na mesma curva da Porteira do Buraco, no lado oposto às duas vendinhas anteriores. Essa também, como mostram as fotos que ilustram essa crônica, era tão pequenina quanto as duas primeiras. Também tinha uma porta e duas janelinhas. E Vilino voltou a estreitar o convívio com os moradores do bairro… quase todos conterrâneos e parentes.
Da leitura dessa crônica se depreende que Vilino era um desses baixinhos tagarelas que vivem roubando a cena com causos pitorescos, piadas e palavrórios acima de cem decibéis … Ledo engano! Vilino era alto, forte, moreno e… calado. Roubava a cena sim, pois quando falava, todos se calavam para escutá-lo. Era o típico mineiro, daqueles que observam muito, que escutam muito, e só falam quando tem certeza… e só falam o suficiente!
Nos seus mais de quarenta anos de vendeiro, Vilino atendeu muitos clientes com garrucha de dois canos na algibeira; com faca na cinta; presenciou muito pé de briga; muita discussão, mas nenhuma delas passou das vias de fato. Quando ele intervia… os ânimos serenavam!
Durante décadas a pequenina Vendinha do Vilino viu na sua janelinha, nos seus banquinhos de madeira, homens sisudos… e homens hilários! Ouviu muitos casos… e causos! Ouviu muito riso… e também choro! Ouviu estórias… e histórias! Viu muitos meninos crescerem… e algumas pessoas partirem!
Avelino Augusto Coutinho, o ‘nosso’ Vilino, tocou sua vendinha de 1969 a 2011. Há poucos meses, aos 81 anos, ele voltou para os braços do Criador… Deixando rastros na minha terra!

Pouso Alegre, meio século…

… De aventuras e historias!

Cheguei a Pouso Alegre em 1969, ainda menino, de calça curta e pés no chão, com a franjinha do cabelo castanho caído na testa… Saí em 2020, com uma vasta cabeleira branca! Cresci com a cidade, nas ruas da cidade, vendo as ruas e avenidas invadindo pastos e fazendas e a população aumentando de 39 mil para 155 mil habitantes. Foram 51 anos de histórias, muitas histórias!

Dormi nas caixas de maçã, mas vivi os “Anos 70, a década de ouro da humanidade; nadei nos “Ribeirões da minha infância”; fiz bullying com o Rabo Verde; desvendei “O Mistério do Corpo Seco; fugi da guasca do lendário “Zorro da Zona Boemia”; contei “A verdadeira História do Beco do Crime”; fiz o velório do famigerado “Fernando da Gata”; fui vítima d“Os Fantasmas do Velho Hotel da Silvestre Ferraz; perdi o medo do velho Aterrado”… e pulei da velha ponte nas enchentes do Rio Mandu.

Estas histórias, vividas no último meio século, ou investigadas, estão nos meus livros “Meninos que vi crescer” e “Quem matou o suicida”.

“O velho Aterrado… E eu”, está no meu primeiro livro lançado em 2014.

“A primeira vez que atravessei a ponte sobre o velho e piscoso Mandu e adentrei o velho Aterrado, foi montado numa bicicleta Monark azul-escuro. Levava na frente da reforçada bicicleta de carga um botijão de gás. Até então eu só conhecia o lado norte do rio, aonde ia com o pai de uns amigos meus pescar mandis, piabas, tabaranas e lambaris debaixo da ponte do velho Mandu, onde hoje passa a polemica e bela avenida Perimetral.

Na ocasião o bairro já havia sido batizado com o nome do santo, mas continuava sendo chamado pelo apelido de nascença: Aterrado. Passei pela oficina de bicicletas do Wilson na cabeça da ponte e segui pedalando garboso a pesada bicicleta do Zezinho Gouveia, desviando de pessoas, de cavalos, de outras bicicletas e alguns poucos fuscas, gordinis e kombis de entrega, ora pelo passeio driblando as arvores, ora pela rua poeirenta.

Eu adorava bicicleta! Pedalar o dia inteiro pela cidade, ainda que carregando a pesada carga de vinte e oito quilos na ida e quinze na volta, era mais que um trabalho, era um prazer, uma diversão. Na época, Roberto Carlos já era ‘rei’ e a Jovem Guarda ainda era jovem, e quem mais vendia discos de duas e quatro músicas era o cantor goiano Odair Jose, o terror das empregadas… Era o ano de l973.

Já no começo daquela década, quando Simão Pedro Toledo começou transformar Pouso Alegre na mais progressista cidade do Sul de Minas, o velho Aterrado já era mal afamado. Não era qualquer um que se arriscava a atravessar o bairro. Até porque não tinha para onde ir! Depois da Curva do Japonês não existia cidade… Era só pasto. Só fazendas. A Refinações de Milho Brasil é que levaria a cidade para o sul.

… Mas demorei alguns anos para criar coragem!

Em 1969, quando comecei explorar Pouso Alegre com minha caixinha de picolés de uva, groselha, laranja, abacaxi e limão, Carlinhos Tigrinho, filho do patrão recomendou:

-Evite ir vender no Aterrado… Os moleques de lá te tomam os picolés e quebram sua caixa!

Pouso Alegre tinha 39 mil habitantes divididos em sete ou oito bairros, além do centro. Eu teria clientela suficiente nos bairros Cascalho, Primavera, Santo Antonio, Saúde, por perto de minha casa, sem ter que atravessar a ponte.

Três anos depois da advertência do filho do ‘seu’ Ferreira, fui estudar no Mons. Jose Paulino. Eu era ainda quase impúbere, mas além de estar atrasado nos estudos, precisava trabalhar durante o dia, portanto fui estudar à noite. Foi meu primeiro contato com os moradores do Aterrado. Todos mais velhos do que eu. Lembro-me de alguns… O Bernardino, o Luis Egidio, o Edesio… Lembro mais de ‘algumas’… A Geny, uma linda loira esguia de cabelos lisos, pele de pêssego… Devia ter uns 17 anos. Acho que era ‘Ferreira da Silva’, da família dos Coelhos. Não dava bola para ninguém. De vez em quando seu namorado, um rapaz forte e barbudo, motorista de caminhão vinha buscá-la na porta da escola. Depois da Geny, que não era para o meu bico, tinha a Lourdes… Essa sim eu poderia tentar, mas Francisco Carlos de Aquino, o “Flor” chegou na frente! Mas não se casaram. Eu só voltei a revê-la muitos anos depois no início dos anos 2000, na porta do velho Hotel da Silvestre Ferraz, quando ela foi visitar seu filho, o “Patinho”. Acho que ela não se lembrou de mim.

O convívio com os moradores do Aterrado no Grupo Escolar Mons. Jose Paulino e a estreita amizade com um colega de trabalho, me fez perder o medo do Aterrado e de sua gente. Fui percebendo que eram pessoas boas, normais, apesar de viver num bairro sem infraestrutura, sempre lavados três vezes por ano pelas enchentes. A mudança da família do Marcos Reolan de Castro, irmão do Tunga, do Cafado, do Bedeu, do “Dila” meu colega na sorveteria do Ferreira, todos amigos na Rua São Pedro, também contribuiu para acabar com minha fobia de Aterrado

Quando fui trabalhar na loja do Gouveia, conheci o Daniel. Ele era ‘desentupidor de fogão’. Morava no Aterrado, em frente a futura oficina do Celinho Xaxa. Fui algumas vezes à sua casa. Ser amigo de um morador do Aterrado acabou com meu medo de infância. Por isso risquei a avenida e ruelas do bairro com desenvoltura naquela manhã de meados de 73 com minha pesada bicicleta, como se estivesse no quintal de casa. Ainda bem que perdi o medo, porque meses depois chegaram as enchentes. Assim eu pude nadar no Rio Mandu no meio da garotada do Aterrado.

A ponte era o ‘point’ da juventude… O dia inteiro lotada de nadadores de rio. Piscina era coisa raríssima, coisa de rico! Cada vez que eu descia ao Aterrado para fazer uma entrega, encostava a bicicleta na oficina do Wilson e aproveitava para dar uns mergulhos. Trabalhava de bermuda e chinelos havaianas… Era só tirar a camiseta e disputar com os garotos quem saltava mais alto por sobre o parapeito da ponte! Era diversão gratuita para todas as classes sociais. Quando as águas baixavam, levava embora nossa alegria…

O inexorável tempo mudou meus hábitos, levou-me para o exército, mudou meu emprego, mudou o rio, mudou a ponte, mudou até a natureza… Já não temos enchentes como antigamente!… E nem garotos com aquela coragem!

Voltei a circular pelo velho Aterrado no início dos anos 80. Agora muito mais por suas vielas, que aumentara demais nos últimos dez anos. Já não ia levar gás de bicicleta… Ia buscar meliantes na brasilinha verde, na velha ‘barca’! Meliantes de todo tamanho, idade, peso e periculosidade. Vi muita coisa acontecer. Inclusive um colega de trabalho numa poça de lama com quatro tiros no rosto, em 83.

As lembranças do velho Aterrado, no entanto, são mais boas do que ruins. No final dos anos 80 até 92, o velho Aterrado tornou-se meu quintal de casa. Dirigindo a LEPA eu descia à vargem toda semana, seja acompanhando os jogos que eu promovia, seja participando deles com a camisa do Canarinho, do America, do Olaria, nos campos do antigo Madureira do Niquinho, do Santamaría do João cavalo, do Internacional do Zé Resende e Zé Nascimento, do Bangu do Boi, do Ditão. Hoje só resta o campo do Bangu.

No bairro que me causava pavor na minha infância eu agora realizava os mais ferrenhos clássicos do futebol amador de Pouso Alegre. Até finais de campeonatos, sem policiamento, com o campo cercado apenas por uma corda e às vezes nem isso, sem tumultos. Invasão de campo, apenas os cavalos mansos de carroça do octogenário Sr. Geraldo Eleutério, de vez em quando!

Cada bairro de Pouso Alegre tem uma origem. O N.S.Aparecida já chegou a ser chamado de Bairros dos Coutinhos. O Santo Antonio foi ‘colonizado’ pelos ‘imigrantes’ dos Afonsos, Cervo, Cantagalo. As pessoas que deixaram a zona rural do Pantâno, Cajuru, Anhumas, Imbuia se estabeleceram no Jardim Noronha, São João e Jardim Yara. O velho Aterrado acolheu os oriundos dos bairros do Sitio, Vitorino e Água Quente. Daí talvez a fama de bairro violento, devido à personalidade forte dos antigos moradores daquelas paragens do município de Silvianopolis. Não que fossem violentos, mas eram pessoas muito corretas, de estopim curto, que sempre levavam na cinta uma peixeira.  Como não eram bons de conversa, logo punham fim à discussão exibindo a ‘lapiana’. Eram pessoas que resolviam seus negócios na base do “fio do bigode”…

Os crimes que aconteciam no bairro há 40 anos, no entanto eram crimes de honra. As gerações mais novas desvirtuaram essa personalidade e o bairro ficou mal afamado. Com o crescimento da cidade e principalmente a proliferação das drogas a partir dos anos 90, o velho Aterrado ganhou status de bairro mais violento de P. Alegre. É o bairro que concentra a maior parte das “bocas de fumo” e “‘biqueiras” de drogas do tráfico “formiguinha” da cidade. A população decente, ordeira e trabalhadora do bairro, que naturalmente é a imensa maioria, é quem paga o pato.

Ah, velho Aterrado, como você cresceu! Antes era apenas a avenida empoeirada, ora estreita, ora larga e as travessas do Rolica, travessa Abrão, travessa do Bangu, travessa Cordeiro Olimpio, Rua Oscar Dantas, Padre Natalino, Aristeu Rios… Depois vieram as ruas Osvaldo Mendonça, Maria Porfiria de Abreu, Luis Prudenciano Alves, Roberto Ramos de Oliveira, João Sabino de Azevedo, Sapucaí, Antonio Pereira Sobrinho e outras tantas ruas e vielas. Agora até a Rua Nova ficou velha!!!

A Avenida Dique II à Oeste do bairro, que depois de uma década de imbróglio finalmente saiu do papel, deve contribuir entre outras coisas, para a melhora da qualidade de vida dos moradores do bairro São Geraldo.

Uma outra avenida à leste, partindo da perimetral, passando nos fundos da Rua Nova, lagoa da banana, desembocando atrás do Estádio Manduzão, levaria infraestrutura e melhoraria muito a vida do sofrido, porém orgulhoso, morador do Aterrado.

Em 2004 sugeri a construção dessa avenida e do Parque Administrativo da Prefeitura na ‘ilha da lagoa da banana’, concentrando ali todos os órgãos do poder executivo do município. Se o desenvolvimento chegasse àquela região da cidade, além de facilitar a vida dos moradores, tiraria o espaço dos meliantes que usam aquela área para ludibriar a policia. Seria muito mais fácil combater o tráfico formiguinha por ali.

A sugestão, no entanto, entrou por um ouvido e saiu pelo outro!

É apenas um sonho… Mas bem que o povo do sofrido Aterrado merece!”

Pouso Alegre, que já flertou com a coroa de ‘princesa do Sul de Minas’, brevemente será a maior cidade do sul do estado.  Quem sabe, nos próximos anos, a outrora garbosa Lagoa da Banana e seu entorno também ganhem roupagem nova e se transforme em Parque Administrativo.

Enquanto isso não acontece, viva Pouso Alegre e seus 173 anos de histórias e aventuras!

Ontem foi o dia dela… da ‘marvada’ cachaça!

‘Severina do Popote’ está completando quase quinhentos anos!

Produzida no Brasil desde que o país era criança em fraldas, – 1530 – a cachaça é a única bebida genuinamente brasileira! E desde aquela época, sempre teve vocação para estrela… tornou-se símbolo da resistência ao colonialismo de Portugal. Mais tarde no Império, virou símbolo da Independência do Brasil. Hoje é vedete em Bruxelas!

Ao longo da sua história, a cachaça passou por vários status sociais. Dos escravos, aos senhores de engenho; do proletariado, à burguesia; do balcão dos botecos, às reuniões de família!

Apreciada pela elite dominante do século dezenove, a cachacinha brasileira frequentou e desfilou bela e faceira pelo palácio real enquanto ele resistiu. Mas perdeu o trono… Com a Proclamação da República em 1889, perdeu duplamente a nobreza! A partir de então, chic era beber vinho, champanhe e whisky importados. E a velha cachacinha virou “bebida de pobre”, vendida e consumida em balcões de botecos!…

E assim ficou marginalizada durante quase um século!

A partir de 1980 a bebida feita do caldo destilado de cana, começou a dar a volta por cima, começou a reconquistar seu espaço. Hoje só no município de Salinas, no nordeste de Minas, existe cerca de 60 alambiques. Todos tentando seguir os passos da septuagenária conterrânea Havana, que não se encontra em lugar nenhum a menos de R$ 550 a garrafa. Se estiver numa prateleira de boteco, com o rotulo antigo, encardido e empoeirado há várias décadas, ninguém leva para casa por menos de oito mil reais!

Em 1995, com a estabilização do Real, aposentados e pessoas que tinham uma reserva na Poupança, sacaram as economias e foram buscar “Seleta” e “Lua Cheia” em Salinas, para vender no Sul de Minas a R$ 4 a garrafa de 600ml. Na ocasião, as tradicionais “Velho Barreiro”,  “51”, Amélia ou Democrata, custavam cerca de R$1,70 o litro! Hoje a mesma Lua Cheia custa no mercado em média R$ 80. E nem desfila entre as estrelas!

A famosa Havana, de historia controversa, a qual chegou a ser usada como moeda para pagamento semanal dos funcionários do alambique do velho Anísio Santiago, ainda joga no teatro de elite. No entanto, tem que dividir o palco com outras tantas cachacinhas que surgiram depois e investiram em qualidade e marketing. Várias delas produzidas em solos gaúcho e catarinense.

A guinada na performance da cachaça foi o armazenamento da bebida em barris de madeira. Além do acentuado sabor do Carvalho, da Umburana, do Ipê, do Balsamo… a madeira dá cor e sabor especial à bebida.

O preço médio de uma boa cachaça ouro, envelhecida cinco anos em barris de madeira, oscila em torno de R$200. – O mesmo preço de um whisky importado, da mesma idade.

Nossa cachacinha mudou a cor, mudou a qualidade, mudou o preço e mudou o jeito de beber! Não se bebe mais cachaça em copos lavrados. A cachacinha brasileira agora é servida em mini copos e até em taças de cristal! Não se bebe mais para ficar ‘tonto’. Bebe-se para relaxar!

Desde 1999 a tradicional bebida destilada brasileira, descoberta casualmente pelos escravos de engenho, tem desfilado bela e formosa nos salões dos concursos de Bruxelas na Europa e arrebatado dezenas de medalhas.

Se o consumo da ‘marvada’ se expandiu, a produção também ultrapassou as fronteiras estaduais e se espalhou Brasil afora. É raro encontrar um município brasileiro que não possua ao menos um alambique artesanal.

Ontem, 13 de setembro, foi o Dia Nacional da Cachaça! Coincidentemente a data ‘caiu’ numa segunda-feira, meu ‘dia nacional de abstinência’! – Não que eu beba todo dia, mas na segunda-feira, destilado ou fermentado, não bebo nem para remédio!

No entanto, curioso e apreciador de uma boa cachacinha, eu não poderia deixar de prestar uma singela homenagem à nossa bebida nacional, à nossa fogosa e estonteante “Severina do Popote”!

Policia Civil fecha a ‘Kasa 51’ em Pouso Alegre

A boate era usada para lavagem de dinheiro do tráfico de drogas.

A operação desencadeada na manhã desta segunda-feira, 30, prendeu dois envolvidos e apreendeu carros de luxo, incluindo um Range Rover Evoque, um Mercedes e um Jaguar. Os bens adquiridos, segundo a investigação, com dinheiro ilícito, são avaliados em mais de cinco milhões de reais. Mas é apenas a aponta do iceberg do que possui a quadrilha, avalia o delegado responsável pela operação.

A investigação do DEOESP da capital, começou há cerca de um ano, quando a policia paulista informou a polícia mineira acerca das atividades criminosas de Joao Vitor Albieiro e de sua esposa Nathalia Alessandra, signatários de dois mandados de prisão em São Paulo e Santa Catarina. Naquela ocasião, ao perceberem a polícia paulista fungando nos seus cangotes, João Vitor e a esposa dobraram a serra do cajuru e foram comer pão de queijo em Belo Horizonte. Abaixada a poeira, João Vitor e Nathalia desceram para o Sul de Minas, onde ele se apresentou à sociedade local como empresário.

Na progressista cidade sul mineira, uma das melhores do país para se empreender, João Vitor adotou novo nome: Jonathas, e adquiriu a boate ‘Kaza 51’, no centro da cidade. Mas foi o cheiro de peixe que atraiu a atenção e levou os homens da lei da capital mineira para o sul de minas… a “Big Shark”, loja montada pelo traficante para lavar dinheiro do tráfico – aliás, nome muito sugestivo!

De fato, João Vitor não é “peixe pequeno”! O moço de apenas 28 anos, é figurinha fácil no álbum da polícia interestadual. Foi preso em 2016 por roubo, processado em Santa Catarina em 2018 por tráfico. Segundo a investigação ora em curso, sua quadrilha tem ramificações no estado do Amazonas, por onde entra parte das remessas de drogas que são distribuídas por ele em São Paulo e Minas.

Durante a investigação, Rubens, um dos supostos membros da quadrilha, foi preso ainda no estado do Pará transportando uma tonelada de ‘erva marvada’.

Ainda segundo o delegado Thiago Machado, João Vitor Albieiro levava vida de nababo em Pouso Alegre. Vivia em um condomínio de alto padrão e circulava no meio social se passando por empresário e desfilando em carros de luxo! No entanto, para evitar holofotes da polícia, os bens estão registrados quase todos em nome de laranjas e de familiares, inclusive a sogra e avó da esposa, as quais respondem pelo crime de lavagem de dinheiro. Segundo a investigação, tais bens, atribuídos ao falso empresário do ramo noturno e de ‘tubarão grande’, estão espalhados por Cabreúva, Itupeva, Jundiaí, Bertioga, todos no estado de São Paulo, e agora Pouso Alegre-MG.

Dos 09 mandados de prisão, cinco investigados receberam as pulseiras de prata da lei. Dois deles – Fábio Camilo e Rafael Pessoa Romano – presos em Pouso Alegre, foram se hospedar no Hotel do Juquinha.

João Vitor, a esposa Nathalia e Julio, o braço direito do bando, conseguiram dobrar a serra do cajuru!

A demora da justiça em analisar e expedir os respectivos ‘mandamus’ solicitados pelo paladino da lei, acabou dando refresco para o traficante e parte do seu bando. João Vitor e a esposa Nathalia Alessandra e o corretor de imóveis e braço direito do bando, Julio Marangoni, mais uma vez conseguiram dobrar a serra do cajuru… mas a batata está assando pra eles!

 

Tereza Vanilda quer ouvir sua voz!

Mas não consegue… A Covid afetou sua audição!

Você pode ajudá-la a ouvir novamente!

      A sra. Tereza Vanilda,56 anos, moradora da rua Padre Natalino na Baixada do Mandú, é mais uma das milhares de pessoas que contraíram covid19 em Pouso Alegre. No dia 08 de abril ela foi internada no HRSL com o bichinho chinês. Chegou a ser entubada e durante mais de 50 dias lutou pela vida. E venceu! No dia 30 de julho ela teve alta hospitalar e voltou para casa.

Mas ficou com sequelas.

Saiu debilitada do hospital, está acamada e precisa de cuidados especiais. Embora tenha sobrevivido, Tereza teve, além da dificuldade de locomoção, uma perda significativa da audição. Agora ela depende de um aparelho auditivo para ouvir sua voz! O custo do aparelho, para ela, é alto… R$ 7.000.

A família fez uma “Vaquinha virtual” para arrecadar essa quantia.

Eu não conheço a Tereza Vanilda, mas conheço seu vizinho Henrique Claro, do qual recebi esse pedido. E confio nele.

Se você puder ajudar essa guerreira a ouvir novamente, tenha certeza que Deus irá ‘ouvir’ sua generosidade!

Deus te abençoe!

OBS:  O site da vaquinha não permite depósitos inferiores a R$25,00. Portanto, caso você queira ajudar com qualquer valor abaixo de R$25,00, poderá fazê-lo através do PIX: 07606430675, que irá direto para a conta do Leônidas, filho dela.