Meu berço…

Na última vez que visitei minha terra, parei o carro na beira da estrada (canto do mato), subi no estribo da caminhonete, olhei para a ‘vargem do coqueiro’, e fiquei por longos minutos viajando no tempo… dando vida às lembranças!

Se você aproximar a imagem ou aguçar a vista, verá bem no centro da foto na parte de baixo uma moita de bananeira. Ela já estava lá, entre o fundo da cozinha e o açude, quando eu nasci … Comi banana prata dessa moita durante anos. Não exatamente a mesma bananeira, pois ao produzir o cacho ela morre e nascem outros brotos. Mas é a mesma moita de banana prata que meu pai plantou no início dos anos 50. Apesar do tempo, do abandono, ela continua lá, há mais de 50 anos… talvez esperando a minha volta!

Tudo estava como antes…

Era final de tarde de outono…

As janelas pardas de madeira da casa pintada com tabatinga misturada com estrume verde de vaca malhada, coberta de telhas de bica cinza envelhecidas pelo tempo, estavam abertas.

Meia dúzia de meninas brincavam no pastinho verde de capim quicuio aparados pelos dentes afiados da cabrita “Menina”.

As meninas maiorzinhas jogavam peteca. As outras menores corriam em volta delas tentando atrapalhar a brincadeira.

Um garoto franzino de cabelos lisos cortado na cuia, entremeio às meninas, brincava com as mais novas.

O menino franzino com o topetinho na testa, era eu!… Com meus inocentes cinco anos de idade!

Londres, nosso cachorro policial caramelo de porte médio, corria de um lado a outro, olhando para cima, tentando pegar a peteca.

A mais velha das meninas, talvez 11 anos, debruçada no parapeito da janela do quarto, tinha um olho nos irmãos brincando e outro na irmã caçulinha dormindo no berço atrás dela.

Na sombra da casa à um metro do chão, dezenas de galinhas e frangos liderados pelo garboso galo carijó de espora torta, ciscavam um capão de guanxuma em busca de minhocas, ou bicavam os brotos tenros do capim.

Uma porca com as ‘mamicas’ flácidas e vazias, seguida por uma interminável fileira de leitõezinhos cariocas, passou na frente da casa reclamando de fome.

No pastinho, atrás do único e grande cupim cinza, a alva cabrita ‘Menina’, deitada, remoía o capim fresco e macio que havia engolido minutos antes. Seu mojo inchado, carecia de ordenha!

Ao seu lado o bodinho alvo como ela, com uma estrela parda na testa, tentava sugar suas tetas inchadas de leite branco como as nuvens varridas lentamente pelo vento da tarde!

A chaminé da cozinha soltava um quase imperceptível canudo de fumaça de lenha seca…

Por cima da copa de um manacá explodindo em flores roxas, quase à altura da janela da cozinha, vislumbrei a silhueta da minha mãe cozinhando o jantar…

O sol amarelo e preguiçoso deu seu último aceno e se recolheu lá longe, atrás do alto do pasto do Zé Gominho.

Neste momento as meninas pararam de jogar peteca e voltaram a atenção para o portão de duas táboas num canto do pastinho cercado de gargatá…

Um homem alto, forte, loiro, de olhos verdes bem claros, passou pelo portão…

Vestia calça caqui de brim grosseiro, camisa xadrez clara, chapéu de palha amassado… Terra e poeira vermelha de mandiocal subiam pelos seus pés descalços até o joelho da calça.

Trazia no ombro uma enxada carcomida pela terra e pelo desgaste do amolamento diário na pedra.

Era meu pai!…

As meninas maiores correram ao seu encontro, receberam afagos na cabeça e voltaram a brincar.

Eu fui por último… e acompanhei meu pai, sentindo o cheiro do seu suor, até a beira do paiol onde ele guardava a enxada.

Minha mãe percebeu sua chegada, foi até a janela e trocaram um aceno mudo…

 

Do estribo da caminhonete parada na estrada no “canto do mato”, vi meu pai jogar milho para as galinhas no terreiro – elas eram as primeiras a ser cuidadas, pois em poucos minutos subiriam no puleiro no mirrado sassafrás branco ao lado do paiol para se entregar aos afagos de Morfeu…

A porca de terceira cria recebeu seu jantar – uma mistura de massa de mandioca com farelo de milho – em um cocho dentro do chiqueiro perto do rego d’água. Depois de comer empurrando os leitõezinhos com o focinho para o lado, deitou-se sob o assoalho da casa e estendeu a fileira de tetas cor de rosa aos filhotinhos famintos.

Menina foi a última a receber atenção. Primeiro a ordenha. Em poucos minutos a espuma branca do leite quente transbordou do pequeno balde… Quase dois litros de leite gordo para alimentar a grande prole na manhã seguinte – Já éramos oito irmãozinhos imberbes!

Depois de cercar o bodinho branco com estrela parda na testa sob o assoalho do paiol, meu pai sentou-se na escadinha da porta da cozinha, debulhou duas espigas de milho e serviu os graúdos grãos cor de pinhão na boca de Menina.

– “A água já está na bacia. Vem lavar que a janta está pronta” – ouvi minha mãe dizer.

Depois de jantar sentado na taipa do fogão de lenha, meu pai se levantou, atravessou a cozinha, a sala de dentro, a sala de fora – tudo quase sem moveis – e sentou-se no degrau do meio da escadinha da porta, de frente para o extenso terreiro de terra batida, para descansar as pernas, respirar o ar fresco do outono e atualizar os acontecimentos do dia ao lado da filharada…

A lua cheia já mostrava as sobrancelhas por cima do bambuzeiro na divisa do Zelino quando meu pai me pediu um tição de fogo. Um minuto depois ele soltou a primeira baforada de fumaça do seu cigarro de palha. E o cheiro gostoso do fumo de rolo, levado pela brisa mansa e fresca da noite, se espalhou pelo terreiro…

Era outono de 64… ou quem sabe, 65!

Cinco anos depois, o êxodo rural poria fim àquela rotina singela da roça… e nos levaria para a cidade!

 

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