Sequestro em Borda da Mata…

 

     Os pretensos sequestradores só não imaginavam que o prefeito tinha estreita amizade com o famoso Delegado Fleury, caçador de subversivos!   

     O imbróglio aconteceu no início de janeiro quando um proeminente político da cidade recebeu ameaça de sequestro!

– “Queremos 100 milhões de cruzeiros, caso contrário vamos sequestrar sua neta. Se avisar a polícia, será pior” – dizia o bilhete dos sequestradores.

Apesar de apavorado com o possível sequestro, o político procurou um amigo do DOPS em São Paulo e pediu orientação sobre como agir. O tal amigo paladino da lei era ninguém menos do que o delegado Sergio Paranhos Fleury, incansável perseguidor de subversivos e um dos responsáveis pela morte do revolucionário Carlos Marighela, anos antes, em São Paulo. O notório paladino da lei então orientou o político bordiano a dar corda para os sequestradores.

– “Negocie… faça parecer que você está morrendo de medo! Mas concorde em pagar o solicitado… e nos mantenha informado sobre dia, horário e local do pagamento. Vamos montar uma “casa de caboclo” para os sequestradores”.

O local e horário da entrega da bufunfa foi marcado para o início da manhã na encruzilhada de uma estrada rural no município de Borda.

– “Deixe o saco com o dinheiro no ‘ponto de leite’” na encruzilhada e desapareça – orientou o sequestrador com voz de homem mau.

Assim foi feito. De manhãzinha um empregado do político deixou o saco cheio de papel no referido ponto de leite e se afastou. Enquanto isso, alongados no matagal nas imediações, vários detetives do DOPS de São Paulo, a mando do temível delegado Fleury, aguardavam atentos para dar o pulão no primeiro que colocasse as mãos no saco de dinheiro.

Enquanto os policiais mocosados no mato desde a madrugada, aguardavam tensos o lento movimento dos ponteiros do relógio, prontos para prender ou trocar tiros com os sequestradores, um pacato retireiro se aproximou do local. Chegou numa bagageira velha cheirando a leite azedo, puxada por um cavalinho baio trazendo um latão de leite como fazia todos os dias. Depois de depositar o latão encardido cheio do precioso líquido branco sobre o pequeno deque de madeira respingado de barro, o sitiante notou a presença do saco ali ao lado. Curioso como todo mineiro – ainda mais mineiro da roça! – pegou o saco, sacoalhou, – deve ser daí que surgiu a expressão ‘sacoalhar’ – sentiu o peso, encostou na orelha pra ver se mexia, se falava, se estava vivo, e lentamente desatou a cordinha do saco para ver o que havia dentro.

Neste momento os agentes armados até os dentes, saíram do mato e pularam sobre o perigoso ‘sequestrador’! Sem entender o que estava acontecendo, o humilde sitiante esperneou, esmaneou, mas acabou recebendo as pulseiras de prata. Enquanto aguardavam a viatura chapa fria que havia sido chamada através do rádio Walkie-Talkie, Pedro Leite tentava explicar aos carrancudos agentes que ele era apenas o sitiante, dono do sítio Pedra Mansa, logo depois da curva da nascente do Rio Mandu. Mas ‘não teve choro e nem vela e nem fita amarela’. O leite azedou, quero dizer, a coisa azedou para Pedro Leite! Tratado como um perigoso e disfarçado sequestrador, ele foi colocado no porta-malas do taxi do contribuinte paulista e levado direto para a sede do DOPS em São Paulo.

Cavalos, mesmos os mais pacatos, não costumam acatar ordens para ir a algum lugar. Muitas vezes precisam do ‘carinho’ do acoite para obedecer. No entanto, para voltar para casa nem precisam de ordens. Tão logo sentiu a ausência do dono, o cavalinho baio, que conhecia de cor e salteado o caminho do sítio, voltou passo a passo para casa. A chegada da bagageira vazia encheu Maria de interrogações!

Onde estaria seu marido?

Teria caído da bagageira e morrido naquele pequeno trajeto?

Teria ficado pelo caminho jogando conversa fora com algum sitiante vizinho?

Teria sido abduzido por um OVNI?

Teria abandonado o lar e fugido com aquela lambisgoia filha do fazendeiro goiano?

Teria sido levado para o além pelo ‘Chiquinho da Borda’?

Com a demora do sitiante em voltar para casa, um mirrado menino de pés no chão seguiu os passos inversos do cavalinho baio até o ‘ponto de leite’ à sua procura. Algumas horas de mistério depois, o Jipe do vizinho Abrão levou dona Maria e sua ansiedade ao quartel da polícia militar na cidade. Em poucas horas o sumiço de Pedro Leite reuniu todos os policiais da cidade – um sargento, um cabo e tres soldados – além de meia dúzia de curiosos.

Enquanto o ‘perigoso’ sequestrador era levado pelos agentes para São Paulo, o restante da equipe do delegado Fleury ficou espalhado por Borda da Mata, disfarçados de vendedores de cortes de fazenda, para tentar descobrir o restante da quadrilha. Naquela mesma noite outros quatros suspeitos de extorsão receberam as pulseiras de prata dos homens do delegado Fleury, e entraram na manguara. No dia seguinte, desfeita a ‘varada n’água’, os quatro suspeitos, com o lombo ardendo, voltaram para casa.

O pacato sitiante Pedro Leite, que teve a curiosidade de abrir o saco de papel picado no ponto de leite, não teve a mesma sorte. Ele desapareceu. Quatro dias depois ele foi encontrado numa cela correcional da delegacia Regional de Polícia de Pouso de Pouso Alegre. Ninguém soube explicar como ele foi parar ali. Sem muito alarde, o sitiante voltou a tirar seu leitinho de cada dia no Sitio Pedra Mansa, perto da nascente do Rio Mandu. E ficou o dito pelo não dito.

Era o auge da ditadura militar. Equívocos eram comuns. Explicações eram dispensáveis. O imbróglio do sequestro da Borda, incluindo as arbitrariedades praticadas pelo delegado Sergio Fleury fora de sua jurisdição, chegou até o General Newton Cruz, comandante da AD4 em Pouso Alegre. No entanto, o sisudo general, que era simpático às ações dos policiais que combatiam subversivos, fez vista grossa. Nunca se soube como e porque os sequestradores escaparam das garras do temível delegado Fleury. Talvez eles tenham percebido a arapuca em que estavam prestes a cair e abortaram o sequestro da neta do prefeito. O fato é que o imbróglio nunca foi esclarecido… sequer comentado na cidade. Mas isso não é novidade em Borda da Mata. Apesar de ter ganhado o Brasil e o mundo, a famosa história do “Coisa Ruim da Borda” foi enterrada, sem explicações, tão logo o espírito secular do Chiquinho abandonou a fazenda da Ponte de Pedra. Se o Conego Edson Oriolo, muitas décadas depois, na tentativa de arrebanhar mais fiéis para sua igreja, não tivesse ressuscitado a história do sepulcro do ‘sagrado’ “Livro do Tombo”, dando publicidade aos fatos quase meio século depois – fatos posteriormente investigados pelo detetive Airton Chips e contados no livro ‘Meninos que vi crescer’ -, hoje nada saberíamos da passagem do Chiquinho pela capital do pijama.

      A história do sequestro da neta do ilustre político não foi parar no Livro do Tombo. Por essa razão, certamente, o imbróglio foi parar no “Livro do Esquecimento”. Tal qual a história do Chiquinho, sepultado na noite do dia 23 de abril de 1953, o obnubilado imbróglio do sequestro da Borda e prisão equivocada de inocentes e até policiais, permanecem vivas apenas nas crônicas policiais de alguns abnegados abelhudos que insistem em preservar fatos que marcam a história da nossa região.

 

*** Embora o imbróglio do sequestro de Borda permaneça tacitamente sob absoluto sigilo, ele aparece em ao menos um capítulo no livro “Borda da Mata e sua história”, escrito pelo Sr. João Bertolaccini. O historiador, no entanto, dá outra roupagem à passagem do Delegado Fleury por Borda da Mata no alvorecer do ano de 1977.

… E assim surgiu o Coisa Ruim da Borda!

“Se eu ficar rico logo, a primeira filha mulher que eu tiver darei em casamento ao capeta!”

* Os bastidores dessa investigação, a ojeriza dos bordianos ao seu personagem ‘mais ilustre’, as curiosidades, os medos que a família do Portuga passou – e eu também! Os depoimentos das pessoas que se arrepiaram com a presença do “Chiquinho” na fazenda da Ponte de Pedra… Tudo isso está no meu primeiro livro de crônicas policiais, “Meninos que vi crescer”, com o título “O mistério do Coisa ruim da Borda”!

Pouso Alegre, apesar de ter soprado quase oitenta velinhas, ainda era uma criança. Criança alegre, sorridente, viçosa, pujante… Naquele início de século já dava mostras de que cresceria e se tornaria referência no Sul de Minas e no Estado das Geraes. Criança também era a noite daquele longínquo sábado de outono quando o caminhãozinho Chevrolet preto – ignição à manivela – estacionou rente ao canteiro da Avenida Duque de Caxias, no coração da cidade. Os dois amigos desceram do caminhão, pegaram suas pequenas tralhas, atravessaram a avenida e em poucos passos entraram na “Pensão da Vovó”. Fazia pouco mais de seis meses que moravam num quartinho dos fundos da velha pensão de paredes pintadas de verde, na esquina da Duque de Caxias com Bueno Brandão, de frente para o santuário. Estavam cansados. Haviam trabalhado desde as primeiras horas da manhã transportando mudanças na cidade e arrabaldes. Era o único caminhão apropriado para esse tipo de transporte na cidade. Não tiveram dificuldades para tomar banho no banheiro coletivo da pensão naquela noite. Eram os únicos hospedes naquele final de semana.

Joaquim e “Manuel” haviam chegado ao Brasil a cerca de um ano. Os dois amigos trouxeram nas guaiacas apenas o suficiente para a subsistência de alguns meses e, quem sabe, para iniciar um pequeno negócio. Desembarcaram em Santos, mas não criaram raízes na Baixada. Subiram a serra, ficaram alguns meses em São Paulo e subiram para o Sul de Minas. Acreditavam que o grande estado mineiro tinha mais a oferecer a dois jovens aventureiros com tino comercial como eles. Por isso fixaram residência na hospitaleira Pouso Alegre, única cidade banhada pelo pequenino, piscoso e charmoso Rio Mandu.

Os negócios iam de vento em popa. Quase metade do caminhão já havia sido pago. O restante, conseguido à juros junto a um patrício, seria quitado na segunda feira seguinte. O dinheiro, guardado em um rústico saco de estopa, era levado atrás do banco do caminhão para todo lugar que iam. À noite, o saco dormia em segurança debaixo da cama, ora de um, ora de outro. Os dois amigos tinham por hábito, todo sábado, visitar as “primas” a dois quarteirões da pensão, na Rua David Campista. Naquela noite, no entanto, estavam muito cansados e sem vontade de sair para satisfazer os desejos da carne. Não foram para os braços e abraços – comprados – das ‘mademoiselles’ da Zona Boemia, mas não abriram mão da sedutora ‘Severina do Popote’. Durante o jantar solitário na saleta térrea da Pensão da Vovó, se esbaldaram no suco de gerereba, principalmente “Manuel”. Joaquim, sorrateiramente, mais observava o socio e amigo do que bebia.

Naquele domingo “Manuel” acordou tarde. Acordou com o sino do santuário chamando os fiéis para a missa das nove. Custou a abrir os olhos. E quando abriu notou que o amigo Joaquim já havia se levantado. Notou também que sua pequena cama a pouco mais de um metro da dele, estava arrumada. Sentou-se na beira da cama com a cabeça entre as mãos. Lembrou-se de Severina do Popote. ‘Moreninha’ era sua cachaça preferida… mas bebera demais na noite anterior! A cabeça latejava! Mal sabia ele que sua dor de cabeça iria aumentar muito mais. A caminho do banheiro coletivo, com a toalhinha encardida no ombro, para lavar o rosto como fazia toda manhã, “Manuel” interpelou a dona da pensão.

– Bom dia Vovó. Sabe se meu sócio foi à missa?

– Bom dia ‘seu’ “Manuel”… Não. Joaquim saiu cedinho levando uma mala. Pelo jeito ia viajar… – respondeu a simpática e obesa senhora com seus cabelos turvos amarrados em tranças acentuado seu ar de vovó.

As palavras ‘cedinho’, ‘mala’, ‘viajar’ bateram como balas de canhão na cabeça de “Manuel”. Por um instante ele ficou paralisado, com a boca aberta, o queixo caído, os olhos arregalados, como se estivesse viajando para um lugar desconhecido qualquer. Foi a voz doce da velha senhora que o trouxe de volta.

– Aconteceu alguma coisa? O sr. está se sentindo bem?

Ao despertar do breve estado letárgico “Manuel” correu de volta ao quartinho dos fundos. A resposta às perguntas da dona da pensão veio segundos depois… e veio aos berros, impropérios e maldiçoes!

– O saco com o dinheiro não está aqui! Maldito Joaquim! O salafrário roubou meu dinheiro. Aquele filho de uma égua roubou o dinheiro que suei tanto para ganhar! Ele vai arder nas chamas do inferno, ora pois, se vai! Desejo que um raio caia na sua cabeça antes que ele use o meu dinheiro… Safado, ladrão, porco, filho de mariposa, covarde. Foi pra isso que ele me fez beber tanto ontem à noite! Mas o capeta vai fazer justiça. Ele há de perder tudo rapidinho e sofrer como eu estou sofrendo agora! Maldito, maldito, maldito – dizia “Manuel” esmurrando com as duas mãos a própria cabeça.

Sem o sócio e amigo – da onça – para dividir as tarefas da ‘transportadora’ e sem o dinheiro para pagar o empréstimo que fizera para comprar o caminhão, “Manuel” teve que vende-lo. Envergonhado e desiludido com a traição do conterrâneo, ele mudou-se da Pensão da Vovó e de Pouso Alegre. Após vender o caminhão e quitar a dívida com o agiota, com a pequena quantia que sobrou, o portuga arrendou um pequeno sitio nos arredores de Borda da Mata e ali recomeçou sua vida. Desta vez sem sócios! Se o amigo e compatriota Joaquim o fez chorar de raiva, a vida, os negócios o fizeram sorrir. Estava predestinado a ganhar dinheiro com o seu trabalho. Mas tinha pressa! A vontade de ficar rico, a disposição para o trabalho e o tino para os negócios, alavancaram o seu sucesso. Em poucos anos passou de arrendatário a proprietário do sítio. E a fazenda no alto da serra da “Ponte de Pedra” foi crescendo.

Não se tem notícia de que “Manuel” tenha sido desonesto com alguém, mas era avaro e jamais jogava no lixo uma oportunidade de levar vantagem nos negócios. Certamente “Manuel” não foi o criador do “jeitinho brasileiro”, mas foi, com certeza, um dos mais ferrenhos fomentadores dessa prática, hoje pejorativa. Embora fosse religioso, frequentava a igreja católica apenas por conveniência social. Trabalhador sacudido e talhado para os negócios, qualquer deus que pudesse lhe dar alguma vantagem nos negócios, poderia ser seu Deus. E parecia não estar preocupado com as consequências desse comportamento às vezes mesquinho e materialista. Foi assim que certo dia, já casado e com família constituída, com os negócios se expandindo e a fazenda crescendo, ele proferiu uma frase que colocaria a pequenina Borda da Mata no mapa do Estado e do país.

“Se eu ficar rico logo, a primeira filha mulher que eu tiver darei em casamento ao capeta!”

As pessoas que ouviram tal blasfêmia em tom de mofa, não deram atenção à ‘promessa’. Mas o capeta ouviu… e anotou na sua agenda!

A ‘prometida’ nasceu em 1940. Treze anos depois, ao chegar à idade casadoira – comum naquela época – Mocinha começou a receber as visitas e cortejos do seu… “Príncipe das Trevas”! Era meado de janeiro quando o Coisa Ruim da Borda apareceu para cobrar a promessa do portuga!

O assédio do “Chiquinho” deixou a cidade em polvorosa e atraiu a atenção de toda imprensa nacional e até estrangeira. Durante meses, meia dúzia de padres da região e centenas de jornalistas desfilaram pela pequenina “terra do pijama” tentando desvendar o mistério do Coisa Ruim da Borda.

Em 2010 eu visitei a cidade algumas vezes. Estive no velho casarão da fazenda onde tudo aconteceu, resgatando a velha história. Durante minhas investigações, em pelo duas ocasiões, pude sentir um pouco do medo que a família do Portuga sentiu em meados do século passado.

O maior mistério, no entanto, é a rejeição que os bordianos tem da própria história. Eles não gostam nem de ouvir a menção ao coisa ruim. Se você perguntar a um bordiano alguma coisa sobre o Coisa Ruim, ele vai fazer o mesmo que o ‘espírito brincalhão’ fez há 70 anos… vai fugir de você como ‘Chiquinho’ fugiu da cruz do padre Pedro Cintra!

Um tiro à sangue frio!

      O motivo demoraria alguns anos para ser compreendido…

A pantera negra deslizava suavemente pelo asfalto quente da rodovia naquele início de tarde. De repente meu pequeno passageiro, que parecia cochilar, acordou o assunto que dormia há quase uma semana.

– Você pode contar agora a história do seu vizinho, aquele que evoluiu em relação aos cães igual ao Osvaldo – perguntou ele voltando ao assunto interrompido na chegada à Pouso Alegre na semana anterior.

– Hein… Ah sim, posso. Mas tenho de avisá-lo que a história, apesar de … instrutiva, é um tanto triste! Está preparado para ouvir?

Daniel se ajeitou bem no banco e fez uma carinha dramática antes de responder.

– Eu estou com onze anos. Já aprendi que a roseira, além de rosas, também tem espinhos.

Olhei surpreso para meu filho. Surpreso com sua citação filosófica, embora soasse como frase feita! Mas nada comentei. Entrei direto na história antes aludida.

– Bem, filho… essa história eu vivenciei quando eu era pequeno… Acho que eu tinha a sua idade. Como eu te falei antes, a relação do homem com seus cães, naquele tempo, era apenas de serventia… O cão não podia ‘trazer problemas’ para o seu dono. Se isso acontecesse, o cão perdia o ‘emprego’ e, não raro… a vida!

Daniel olhou rápido para mim, mas nada disse. Continuei.

– Briosa era o nome da nossa heroína. Ela pertencia a um sisudo sitiante com o qual eu avizinhei na infância, quando ainda usava calça curta e cortava o cabelo na ‘cabaça’. Briosa teve a infelicidade de nascer no século passado, bem lá atrás! – fiz uma pequena pausa para ultrapassar uma fila de carretas na subida. Tão logo a pista clareou à minha frente retomei a narrativa.

– Como eu disse antes, a importância e afinidade dos ‘pets’ na vida das pessoas é coisa recente, coisa do século XXI, resultado natural da evolução da espécie humana. Até poucas décadas atrás os cães só tinham uma utilidade: servir ao homem, especialmente na zona rural. O cão servia apenas para vigiar o quintal, espantar bichos à noite, tanger o gado… A única recompensa por estes serviços eram duas refeições diárias – restos de comida colocada numa tigela velha ou na tampa da marmita na roça. Os cães de hoje têm nomes pomposos e pertencem ao ‘gênero’ ‘pets’! Até o século passado eles pertenciam ao gênero ‘cachorro’… Eram batizados ou rebatizados com os nomes de Lulu, Leão, Bolinha, Briosa, Brilhante, Rajado, Peludo, Pantera, Risonha, de acordo com a aparência, característica ou habito de cada um. Briosa era uma cadelinha do ‘gênero cachorro’. Era malhada de branco e amarelo, pequena, alegre, obediente, acanhada e dedicada ‘recepcionista’… ninguém se aproximava da varanda do seu dono sem ser anunciado por ela! Por isso mesmo era muito querida pela família. Tinha grande serventia no sítio… desde que não levasse ‘problemas’ para casa! Não podia correr atrás de galinhas – a menos que o dono quisesse encantoar a galinha para pegá-la -, não podia comer ovo no ninho, não podia morder visitas ou vizinhos, não podia aumentar a prole…

– O que é prole? – interrompeu meu ouvinte.

– Filhos. Para o seu dono, Briosa não deveria engravidar e ter filhos. Pelo seu porte físico e estilo de vida livre, leve e solta, Briosa teria vivido seguramente uns quinze anos, mas… Cometeu um pecado! Pecado natural e inevitável a toda espécie animal: entrou no cio! Nesse dia ela selou seu destino.

Daniel franziu a testa e fixou os olhos em mim. Continuei, agora com um toque de mistério.

– Como a maioria dos cães da roça, Briosa costumava acompanhar seu dono na lida no pasto, na lavoura. O dono não precisava dar nenhuma ordem. Bastava se afastar do quintal que a cadelinha seguia atras dele… às vezes na frente. Naquela manhã, ao sair para cuidar da lavoura junto com seus filhos imberbes, meu vizinho levou dois objetos estranhos à rotina: um pedaço de corda de pouco mais de um metro e a velha espingarda cartucheira. Alheia aos objetos estranhos e sua utilidade, Briosa seguiu tranquila ao lado dos donos, ora na frente, ora ao lado, ora atras, ora espantando um passarinho ou simplesmente sorrindo com a língua pra fora atendendo um chamado ou assovio dos meninos.

Meu ouvinte registrava cada palavra que ouvia. Atento.

– Ao chegar ao local da lida, não muito distante da moradia, meu vizinho passou a cordinha no pescoço da cadelinha, amarrou a outra ponta no pé de um arbusto numa elevação do terreno, retirou a espingarda do ombro, aproximou o cano a pouco mais de um metro da cabeça dela, fez mira!…

Daniel engoliu em seco. Mas não abriu a boca para não interromper a narrativa.

– Briosa, com a língua de fora, ainda arfante do esforço para acompanhá-los, ficou olhando curiosa para o cano escuro da espingarda, tentando adivinhar que tipo de brincadeira nova era aquela. O indicador da mão direita do dono foi pressionando lentamente o gatilho da espingarda, até que … Buuummmm!

O meu ‘bum’ inevitavelmente saiu com um volume bem mais alto. Daniel deu um pulo na poltrona. E continuou calado, torcendo para que eu não confirmasse o que ele imaginava. Baixei o tom e minimizei o fato.

– Briosa não deve ter ouvido nada. Se ouviu, não compreendeu… Não teve tempo de compreender. Os filhos do sitiante, meninos malungos meus, também de calça curta e cabelos cortados na cabaça, ouviram o estrondo e viram a cena… Mas também não compreenderam!

Meu filho quis fazer perguntas, confirmar o que havia entendido, mas a voz não saiu. Continuei no mesmo tom sutil.

– O restante da manhã seguiu sem incidentes, em silencio. No final do trabalho pai e filhos, a cordinha com alguns respingos de sangue ressecados e a espingarda ainda cheirando à pólvora, voltaram para casa – falei lentamente.

Daniel se remexeu, limpou a garganta, mas antes que as perguntas brotassem eu respondi…

– Briosa ficou lá, rente à cerca da divisa… debaixo de dois palmos de terra!

Meu pequeno passageiro afundou-se na poltrona. Precisava de silencio para acalmar seus sentimentos. Tentei sintonizá-lo com os sentimentos dos meninos que assistiram a cena.

– Levaria alguns anos para os meninos loirinhos entenderem o crime cometido pela cadelinha malhada. Ou o crime seria do seu dono?

Rodamos vários quilômetros de Fernão Dias em completo silencio…

 

* Esse texto é parte integrante de um novo livro que está em fase de revisão.

“Os Fantasmas do Velho Hotel… “

Construída em 1932, a velha cadeia testemunhou infindáveis, maquiavélicas e fantasmagóricas histórias. Desativado em 2009, o carcomido prédio ainda abriga em seus sombrios corredores muitos… ‘fantasmas’!

“Pedro Louco” é um deles!

      Pedro Louco protagonizou um dos fatos mais marcantes da história do Velho Hotel da Silvestre Ferraz. O fato aconteceu nos idos de 1970, no tempo em que puxar cadeia ainda era vergonhoso, mas de certa forma era também bucólico, romântico e principalmente educativo!

     Pedro Louco não era bandido. Ao contrário, era um sujeito honesto, trabalhador e honrado. Honra daquelas que se lava com sangue. Certa vez um conhecido caminhoneiro, aproveitando sua ausência, passou uma ‘cantada’ na sua esposa, na borracharia onde ela o ajudava. Ao tomar conhecimento da ofensa, Pedro Louco pegou seu trabuco e foi atrás do caminhoneiro abusado. A honra foi lavada na subida da serra de Ipuiuna. Desde então Pedro Louco tornou-se hóspede do Velho Hotel da Silvestre Ferraz.

     Com menos de trinta hóspedes no velho hotel naquela década, gozando do privilégio de preso ‘cela livre’, após distribuir os ‘bandecos’ e varrer os corredores, Pedro Louco descia para a delegacia, onde também fazia limpeza. De lá, eventualmente, dobrava a esquina e se dirigia ao bar do Vaguinho Dorigatti na Com. Jose Garcia, para abraçar a estonteante “Severina do Popote”. Ia e voltava sempre acompanhado de um detetive… que também gostava do famigerado suco de gerereba com torresmo!

Numa tardinha fresca de 78, quando Pedro Louco saía do bar do Vaguinho ao lado de um detetive, um irmão do caminhoneiro se aproximou sorrateiro e, sem alarde, descarregou o trabuco na cabeça do borracheiro! A fumaça dos tiros entrou pelas narinas do detetive antes que ele esboçasse qualquer reação.

Cumprida a vingança pela morte do irmão, o assassino entregou a arma ainda fumegante ao detetive e foi ocupar o lugar de Pedro Louco no Velho Hotel da Silvestre Ferraz!

 

* Pedro Louco é apenas um dos “Fantasmas do Velho Hotel da Silvestre Ferraz”.

No livro “Quem matou o suicida” há muitos outros”!

… Mariana, mãe do nóia JC

 

(Imagem ilustrativa)

“De repente a campainha do telefone arrancou Mariana dos seus pensamentos. Levou um susto. Era tudo que esperava! Um telefonema, de algum lugar, com alguma notícia! Podia ser de qualquer lugar. Desde que fosse a respeito do filho. Da varanda até a estante onde estava o aparelho não gastou três segundos! Pegou o aparelho e o apertou junto à orelha…

– Aê dona, seguinte… Seu filho tá agarrado aqui no muquifo, cheio de pedra. Se você não pagar o que ele me deve dentro de uma hora, vou encher ele de furo, tá ligado?

– Como é que é? Não entendi… meu filho… – tentou argumentar Mariana, mas foi interrompida pelo interlocutor com a voz ainda mais tenebrosa e incisiva:

– Seguinte dona, ‘prestenção’ que só vou falar uma vez… Faz dois dias que o vacilão do seu filho está aqui na baixada queimando a pedra. Conheço ele. Sei que ele não para, não. O nóia tá me devendo trezentas pratas! Se essa grana não estiver aqui dentro de uma hora, vou fazer picadinho dele, tá entendendo?

Mariana sentiu um filete de gelo escorrer pela espinha. Na verdade, quando o traficante falou atabalhoado pela primeira vez, ela já havia entendido. Já ouvira aquelas ameaças e cobranças outras vezes. Era sempre o marido quem ia buscar o filho na sarjeta, mas era ela quem atendia o telefone. Não tinha trezentos reais na carteira. Aliás, há muito não deixava dinheiro na carteira! Enquanto ouvia as ameaças do traficante ia pensando no que fazer. Teve ímpetos de mandar o traficante catar coquinhos, de dizer que não estava nem aí para suas ameaças, que não importava mais com o filho. Teve vontade de simplesmente desligar o telefone e ver no que dava. Afastou o aparelho do ouvido, olhou para ele com desprezo e ódio e o depositou placidamente no gancho, sem dizer uma palavra. Sentou-se muda no sofá. Sentiu um certo torpor.

… Viu o menino franzino balbuciar desajeitadamente o ‘mãmã’ com pouco mais de um ano.

… Viu o filhinho com a roupinha humilde, mas limpa, acenando para ela na porta da escola no primeiro dia de aula.

… Ouviu a voz eufórica do filho falando dos novos amigos da escolinha… Viu o garoto adolescente, sorrateiro, tentando esconder o boletim escolar cheio de anotações em vermelho…

… Viu o menino sair de casa tantas vezes bem arrumado, usando bermuda, camiseta e tênis novos, perfumado…

… Viu o filho tantas vezes chegar a casa com a roupa suja, rasgada, as vezes a roupa nem era dele, fedendo, às vezes descalço.

… Viu o menino enfurnado no quarto, taciturno, arredio.

… Viu o menino tantas vezes entrar no carro com o pai, levando uma pequena mochila nas mãos, partir para mais uma clínica de recuperação.

… Viu o corpo do menino magro, ossudo, pele empalidecida num caixão tosco na funerária…

… Viu o aparelho telefônico vibrando na estante.

Demorou para ouvir o som do aparelho. Pegou-o e o levou lentamente ao ouvido, muda. Ouviu a mesma voz de antes…

– E aê, tia! Vai deixar o vacilão morrer aqui mermo?

Mariana continuou muda.

– Tá de sacanagem, né tia! Tá de sacanagem que não sabe o que vai acontecer com o seu nóia? – insistiu o traficante já mais exaltado. Escute – disse ele – vou te fazer um favor… Vou levar seu filho aí na porta da tua casa agora. Quando chegar aí quero minha grana. Se não estiver com as trezentas pratas na mão, furo seu garotão aí na sua porta, na sua frente, tá ligado?”

 

 

(Paulinho & Mariana, os pais do nóia JC /“Quem Matou o Suicida” – Airton Chips – primavera de 2020).

 

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Flagrante!!!

A cena paralisou suas mãos!

Imagem ilustrativa

Apesar de a noite ser ainda uma criança, fazia muito frio na rua. Na penumbra do interior do carro, ligeiramente oculta pela sombra de uma arvore, Joana esperava pacientemente. Chegara no início da tarde à cidade. Tivera tempo de sobra para fazer sua investigação. Descobrira onde era o escritório, parte da rotina, dos horários e agora estava ali, a poucos metros da porta da casa de Paula. Segundo seus levantamentos ela saia do trabalho por volta das seis da tarde e antes de ir para casa passava no supermercado. Já eram mais de sete horas… estava demorando! De repente um carro diminuiu a velocidade, sinalizou e parou na frente do seu carro. Joana percebeu que era um homem ao volante. Sentiu o coração disparar! Esperou alguns segundos. A porta do passageiro se abriu e uma mulher protegida por um grande casaco bege saiu tentando equilibrar nos braços um pacote de papeis. Quando ela se virou para contornar a frente do carro, Joana pode ver com certeza: Era Paula! Um ligeiro frio percorreu sua espinha. Nesse instante a porta do motorista se abriu e um homem, que já mexia no banco traseiro, fez movimentos de descer. O coração de Joana bateu a duzentos por minuto. O homem saiu do carro de costas pra ela…

Era Renato?

O grande casaco escuro aumentava sua silhueta… O rapaz alto e corpulento, cabelos curtos… era Renato!!

Ele deu um passo em direção à Paula, recolheu os papeis das mãos dela, juntou os dois pacotes e atravessaram o passeio em direção ao portão da casa da jovem advogada. Joana tinha os olhos colados no casal.

Num instante ela abriu o portão, virou-se para o homem e deu-lhe um longo beijo apaixonado.

Joana ia saltar do carro para surpreender o casal, mas de repente ficou paralisada. A cena foi muito forte. Um misto de sentimentos a invadiu naquele momento. Queria não ter visto aquilo. Sentiu um certo asco! Por um segundo desviou os olhos.

Quando voltou a olhar para o casal, Joana já havia fechado o portão e Renato estava entrando no seu carro.

Era mesmo Renato! Estava mais magro e usava barba, coisa que não fazia há anos.

Enquanto pensava no que fazer, o motorista deu partida, deu seta e saiu do local. Joana pensou em seguir o carro de Renato, mas seus dedos travaram, grudaram no molho de chaves e ela não conseguiu dar partida.

Quando finalmente conseguiu virar a chave no orifício da ignição, o carro de Renato já virava a esquina.

“Foi melhor assim”, pensou Joana. “Eu não ia conseguir dirigir. Ia acabar batendo o carro”. Ficou longos minutos ali olhando a rua silenciosa e fria. Baixou um palmo o vidro do motorista para deixar entrar o ar frio da noite. Pareceu ouvir o barulho do chuveiro de Paula. Viu-a nua, esfregando o sabonete pelo corpo, cantarolando uma canção qualquer debaixo do chuveiro. Viu Renato alto, forte, ereto entrando nu no chuveiro… tentou desviar o ‘olhar’ e instintivamente sacudiu a cabeça, querendo se afastar da cena! Com isso Paula e Renato sumiram do banheiro, sumiram da sua imaginação!

Só então se deu conta de que estava ali há quase dez minutos desde que vira o carro de Renato virar a esquina.

Mas será que era mesmo Renato? De costas, era o mesmo porte físico. Alto, ombros largos… De frente os ombros largos mantinham o casaco aberto fazendo uma figura corpulenta, mas parecia mais magro… ou seria mais jovem e atlético? Mas era Renato. Tinha certeza. Ou será que não? Ou será que apenas seu subconsciente viu Renato ali se despedindo de Paula com aquele beijo apaixonado?

Pensou em descer do carro, tocar a campainha e ir falar com Paula. Dizer que havia descoberto seu romance com seu marido. Mas de que adiantaria? Poderia ter dito isso mais cedo no escritório dela! Ou até por telefone, sem sair de casa! Ela certamente negaria. “Eu tinha que ter abordado os dois abraçados no portão”, pensou Joana. “Pegá-los em flagrante… e ver que explicação ele daria para ter abandonado a família de maneira tão covarde. Ver que recado ele daria para seus filhos adolescentes que sempre o tiveram como herói”! Assim pensando Joana rumou para o hotel. Precisava sair da rua, ficar entre quatro paredes, sozinha, para extravasar sua revolta, sua mágoa, sua dor… Precisava esmurrar alguma coisa. Chorar, talvez. Sim. Precisava chorar. Chorar bastante, até esvaziar todos aqueles sentimentos confusos que pressionavam seu peito… e seu cérebro! Tudo que precisava agora era de quatro paredes… para esconder suas lágrimas!

 

Esse pequeno trecho é parte integrante do romance policial de Airton Chips:

“UMA VIAGEM QUE NÃO CHEGOU AO FIM”.

O livro está disponível no site da ‘Editora Dialética’ ou, através do WhatsApp 35 9.9802-3113.

 

Sapucaia… A arvore que enganou o historiador!

Na região onde rios e cidades levam seu nome, não se tem a localização de um único pé nativo da famosa arvore.

Dos 125 pés de Sapucaia que enfeitam praças e jardins de Belo Horizonte, 35 estão na orla da lagoa da Pampulha.

Você que já viajou pelo Sul de Minas, com certeza cruzou cidades e rios com nomes originários na Sapucaia… São Gonçalo do Sapucaí, Santa Rita do Sapucaí, Porto Sapucaí. Se subir até a bela Campos do Jordão você passará por São Bento do Sapucaí, Sapucaí Mirim e poderá beber nas nascentes cristalinas dos rios Sapucaí e Sapucaí Mirim. Todas estas localidades e rios receberam esse batismo em homenagem à famosa Sapucaia, arvore de grandes copadas, supostamente abundante no Sul de Minas, principalmente nas margens baixas dos rios que levam seu nome.

Só que não!

A famosa Sapucaia, conhecida (e explorada) pelos europeus que aqui chegaram, desde o século XVI, originaria da Mata Atlântica, hoje anda pela beira da morte. Não se tem a localização de um único pé nativo no Sul de Minas.

O que o historiador chamou de Sapucaia, era, na verdade, o Óleo Copaíba!

Este sim, nativo e abundante na região onde batizou tanta ‘gente’!

As arvores são de fato parecidas, apenas no porte, porém muito diferentes na florada, na formação da casca (a Sapucaia tem formato de rusgas e fissuras, lembra a casca do cedro). O óleo copaíba tem a casca um pouco mais lisa e seu fruto é pequeno. O fruto da Sapucaia tem o tamanho de uma cabeça de cachorro médio. Se cair do galho a trinta metros de altura sobre um cachorro, pode aleijá-lo! O fruto da Sapucaia (semente) tem grande valor nutricional embora não seja comercializado. O óleo copaíba tem grande valor medicinal. Ambas as arvores, que podem passar de trinta metros de altura, podem forrar o chão da casa que você pisa!

Por engano ou não, o nome ficou. Todos estes lugares que eu citei foram batizados com o nome da Sapucaia. Mesmo não vendo a arvore, toda vez que você passar por ali, vai se lembrar do que acabou de ler!

Anos atrás a prefeitura de Belo Horizonte plantou 125 pés de Sapucaia em suas praças, jardins e logradouros públicos, inclusive na Praça da Liberdade. No entorno da Lagoa da Pampulha, por onde pedalo quase todos os dias, já contei até o momento 35 arvores!

Esta é época mais fácil de ‘percebê-las’… É a época da florada, ou melhor, da ‘folhada’! Sim. A Sapucaia não dá flores… No início da primavera as folhas verdes, novas, mudam de cor e durante cerca de duas semanas tingem suas copas de rosa e lilás. Por isso é fácil percebê-las… e contá-las.

Belo Horizonte é bastante arborizada e florida, especialmente na região da Pampulha. O ano todo sibipirunas, manacás, primaveras, flamboyants, jacarandás rosas, ipês de várias cores, sapucaias, cada um a seu tempo enchem nossos olhos – e corações – de cores! Na ilha da lagoa, no momento, tem três pés floridos que não consigo afirmar qual deles é ipê roxo ou Sapucaia.

Mas, voltando à Sapucaia, a arvore que enganou o historiador e acabou batizando rios e cidades no Sul de Minas, tem sim Sapucaia no Sul do Estado. Graças a um cidadão altruísta que resolveu preservar a espécie tão bela. Em Santa Rita do Sapucaí há dois belos espécimes da famosa arvore. E é muito fácil identificá-los. Quando entrar na cidade pelo acesso sul, pela ponte principal, quando estiver no final da ponte sobre o Rio Sapucaí, olhe para a margem à sua direita à frente. Ali – salvo engano no quintal de uma academia – duas belas arvores com suas copadas lilás irão encher seus olhos!

Dos 125 pés de Sapucaia que enfeitam praças e jardins de Belo Horizonte, 35 estão na orla da lagoa da Pampulha.

Agradeço a natureza todos os dias por tão belo espetáculo… E agradeço a Deus a sensibilidade para perceber as belezas que nos cercam e tornam nossa vida mais colorida, mais alegre, mais divertida, mais romântica…

      

Covid Brasil X EUA … Para pensar na cama!

Enquanto aqui morreram 97 mil pessoas, lá, no mesmo período, com todas as pessoas vacinadas, morreram 390 mil pessoas!

Em setembro de 2021, num dos momentos mais sensíveis da pandemia do Coronavírus, comecei arquivar os números da doença, no Brasil e nos Estados Unidos. Naquela ocasião, toda a população americana, que quis, já havia sido vacinada. O Brasil estava bem próximo de atingir o mesmo objetivo.

 

Em meados de setembro do ano passado, os números da Covid nos dois países eram estes:

 

Brasil: (Sexta, 17 de setembro 2021… 20 milhões de casos + 34.407 novos casos + 649 óbitos = Total 589 mil óbitos

USA: (Sexta-feira, 17 setembro 2021… 43 milhões de casos + 155 mil novos casos + 3.415 mil óbitos = Total 670 mil óbitos

Desde então venho acompanhando os números nos dois países. Nesta terça-feira, 27, este são os números atuais nos dois países:

 

Brasil: Terça-feira, 27 setembro… 34,6 milhões de casos + 13.861 novos casos + 85 óbitos = Total 686 mil óbitos

USA: Terça-feira, 27 setembro… 95,9 milhões de casos + 58.520 novos casos + 404 óbitos = Total 1,06 milhão de óbitos

 

Depois de ceifar 686 mil vidas humanas no Brasil e 1.06 (um milhão e sessenta mil) nos Estados Unidos, a Covid está sob controle em quase todo o planeta. A imprensa já nem liga mais para Covid. Os números da Covid no mundo já não fomentam mais as intrigas políticas e não vendem mais audiência nos veículos de comunicação – a menos que seja para colocar 400 mil mortes na conta do adversário político.

Há várias semanas a média de mortos por Covid no Brasil estacionou na casa de 50 por dia, em média. Nos Estados Unidos a média se mantem alta, em torno 500 óbitos por dia há várias semanas.

Os números diluídos neste final de semana ficaram em 404 óbitos no país do democrata Joe Biden. Amanhã, esse número deve aparecer acima de 700.

No Brasil, também em números diluídos para o final de semana, foram anotados 85 óbitos por Covid. Amanhã esse número será inferior a 50. Acesse o Google nesta quarta-feira e confira.

Apesar de ter ceifado tantas vidas, a Covid ajudou centenas de prefeituras e dezenas de Estados a colocar suas contas ordinárias em dia! Sim, todos os estados e municípios do Brasil onde há estrutura mínima para cuidar da saúde, receberam polpudas verbas do governo federal para combater a Covid. Nem todos usaram o dinheiro para isso… Nem todos conseguiram evitar que as pessoas contraíssem o vírus e que morressem em decorrência dele! Morreram, infelizmente, – e lamento – aquelas pessoas que tinham, sabendo ou não, algum tipo de comorbidade e, de um jeito ou de outro contraíram o vírus! Na minha família isso aconteceu.

Dentre tanto que se falar sobre a covid nestes dois anos e meio, um fato precisa ser trazido à tona, ao conhecimento da sociedade, para que as pessoas reflitam sobe tudo que ouviu da imprensa e dos políticos neste período: trata-se dos números da Covid nos dois países, quase iguais em tamanho e tão diferentes na economia: EUA e Brasil.

Os Estados Unidos têm 335 milhões de habitantes… O Brasil tem 215 milhões.

Nos Estados Unidos, morreram de Covid, 1,06 (um milhão e sessenta mil) pessoas!

No Brasil, morreram de Covid 686 mil pessoas.

Até aí tudo bem. A proporção está próxima da equivalência.

O que chama a atenção é o período em que essas pessoas morreram!

Nos últimos doze meses, mais precisamente desde o dia 17 de setembro de 2021, quando comecei a acompanhar diariamente os dados pelo Google, no Brasil morreram 97.000 (noventa e sete) mil pessoas…

No mesmo período nos Estados Unidos, país mais rico do mundo e dono da mundialmente conhecida farmacêutica Pfizer, morreram 390.000 (trezentos e noventa) mil pessoas!

Por alguma razão, a grande mídia não fala sobre isso. Eu também não vou falar. Deixo para você, que acabou de ler essa matéria, refletir e tirar suas conclusões!

 

Obs: esses números, como eu disse no início, foram anotados diariamente desde o dia 17 de setembro de 2021 até a presente data. Portanto, os números não são meus… São do Google. Estão lá à sua disposição.

Um policial na corda bamba!

O carro no qual ele viajava levava um quilo de maconha!

Trevo da Brasilinha, na Fernão Dias (foto ilustrativa, retirada do vídeo  “Como era a Rodovia Fernão Dias antes da duplicação”, no Pouso Alegre . Net

 

Doar sangue e contribuir para salvar uma vida, é um ato senão heroico, ao menos nobre. Talvez por isso, sempre que os hospitais ou bancos de sangue estão com o estoque muito baixo, apelam para instituições públicas tais como Corpo de Bombeiros, Policias Civil e Militar e quartel do exército, para reposição e são prontamente atendidos. Foi assim que me tornei doador de sangue. E por muitos anos pude sentir a prazerosa sensação de ser – quase – ‘herói’!

Além do sentimento altruísta de estar contribuindo gratuitamente para a saúde de uma pessoa – na maioria das vezes desconhecida; da gratidão dos parentes da pessoa beneficiada; do atendimento especialmente carinhoso dos funcionários do ‘banco de sangue’; daquele ‘lanchinho especial’ servido pela copeira; do olhar de orgulho das pessoas à sua volta, há um outro sentimento… O de “folga”! De não ter que trabalhar naquele dia! Sim, após a retirada de 500ml do precioso líquido, o doador precisa de repouso. Como as doações são agendadas sempre pela manhã o doador de sangue tem o resto do dia livre.

No quartel, embora fôssemos soldados – a maioria contra a vontade, pois o serviço militar é obrigatório – não estávamos interessados tanto na nobreza do ato, mas sim na folga inesperada e gratuita naquele dia. Por isso, sempre que o comandante da bateria solicitava a manifestação de cinco voluntários para doação de sangue no dia seguinte, vinte e cinco ou mais levantavam as mãos, rsrsrsrsrs… Eu era um dos primeiros!

Na polícia também comecei cedo a nobre carreira de doador de sangue! Antes mesmo de ser diplomado.

Era uma quinta feira de janeiro de 81. Antes de dispensar a “D8”, minha turma do curso de formação de detetives na ACADEPOL, o coordenador fez a clássica pergunta:

– Tem algum doador de sangue aqui!

Mal ele concluiu a pergunta eu já levantei a mão!

– Voce deverá estar em jejum no hospital da PC na Av. Carandaí, às 08:00h da manhã. Peça o comprovante de doação… e pode tirar o resto do dia de folga – orientou ele.

Tirar folga justamente na sexta-feira e poder voltar para casa um dia antes, depois de três semanas longe da família, era quase um sonho. Ficou melhor ainda quando cheguei à minha ‘república’, no Prado, ao pé da noite. Um ex-colega do exército, que eu não via desde que dera ‘baixa’, estava hospedado ali e voltaria para Pouso Alegre na manhã seguinte, ele e o motorista do pai. Melhor impossível! Eu nem precisaria pegar o ENSA às nove e meia da manhã para chegar em casa, com sorte, às seis da tarde. Melhor ainda, de carona, de ‘grátis’! Deus estava me recompensando pelas minhas boas ações de doador de sangue!

Às sete da manhã peguei o ônibus azul na esquina do Cine Amazonas. Às nove peguei o ônibus vermelho na Praça 7, de volta para a república. Poucos minutos depois minha singela mochila estava no banco de trás da Caravan verde do pai do meu amigo. Com aquele carrão, e um motorista maduro e experiente, antes das três da tarde dobraríamos a lombada do Clube de Campo Fernão Dias e eu pousaria meus olhos saudosos na minha querida Pouso Alegre. Bendito o dia em que me tornei doador de sangue, pensava eu!

Mas havia pedras no caminho! Na verdade… erva!

Meu ex-colega do 14º GAC, vizinho de armário e de beliche, era consumidor de um produto até então especial, que não se encontrava a qualquer hora em qualquer lugar naquela época. Hoje, em cada esquina da Baixada do Mandu em Pouso Alegre, você encontra esse produto… Na verdade, você nem precisa descer à baixada… Basta um ‘torpedinho’! Em quinze minutos um motoboy entrega a encomenda na sua casa, na porta da sua escola, ou até mesmo no seu local de trabalho. Tempos atrás um assessor da câmara municipal de Pouso Alegre comprava o tal produto através do Cel. corporativo da Casa de Leis! No alvorecer da década de 80, esse produto, natural e perfumado, além de proibido, era raro e caro… mesmo na capital! Por isso a encomenda do meu amigo demorou para chegar! E o tempo foi passando… Dez horas, onze horas, onze e meia… meio-diiiiiia!…

Eu já começava a me arrepender da carona! Se tivesse pego o Impala às dez e meia da manhã na rodoviária, chegaria ao Fernandão em Pouso Alegre antes da cinco da tarde. Mas era um saco viajar no Impala lotado ouvindo a tagarelice cantada da baianada que descia do Nordeste para S.P. Além do mais, o Impala fazia a linha Teixeira de Freitas-BA/São Paulo, não entrava na cidade. Eu teria que descer no trevo da Brasilinha e descolar uma carona para casa… E eu nunca foi bom de carona! Meu amigo ao menos me deixaria na porta de casa.

À uma da tarde, quando eu já pensava em descer para a rodoviária a fim de pegar o ENSA das 15:30h, finalmente um golzinho pardo parou sorrateiro na esquina. Depois de ter certeza de que não era uma cilada dos ‘homi’, o motorista se aproximou do portão da república e entregou a encomenda.

Às 13:15h, depois de consumir o produto proibido, finalmente pegamos a estrada. Tanto meu amigo ex-soldado quanto seu motorista, exalavam o cheiro adocicado da ‘erva’! Fizeram duas viagens … uma pela perigosa Fernão Dias esburacada… e outra pelas estrelas, no rabo do cometa!

Quatro e trinta e cinco da tarde avistei Pouso Alegre. Minutos depois apeei da Caravan na porta de casa no bairro da Saúde. Não sei como o motorista conseguiu fazer BH/Pouso Alegre – 390 km – em quatro horas e vinte minutos pela Fernão Dias de pista única! Com certeza a ‘erva marvada’ ajudou!

Depois desse fato, fiquei muitos anos sem ver meu ex-colega de caserna. Certo dia, já aposentado na policia mas frequentando regularmente a delegacia como jornalista policial, voltei a encontrá-lo por lá. Conversamos como velhos amigos. Falamos da caserna, do destino que um ou outro amigo havia tomado depois da ‘baixa’. Ele contou-me que havia viajado – literalmente – para outro continente e que estava de volta à cidade. De fato, ele se tornara um discreto, porém sério e honrado cidadão. Sobriamente vestido, sem nenhum débito com a lei. Mais tarde fomos vizinhos de bairro, nos cumprimentávamos cordialmente sempre que cruzávamos na rua, mas nunca tocamos naquela quase alucinada viagem BH/Pouso Alegre. Eu nunca soube o que ele fez com a antiga paixão que nutria pela ‘erva marvada’ quando era jovem.

Agora que você chegou até aqui, engate uma ré!

Volte pela mesma estrada 40 anos no tempo…

Imagine se naquela vertiginosa viagem pela esburacada Fernão Dias, tivéssemos sido parados numa blitz dos homens da lei!

Imagine o que aconteceria se os patrulheiros da estrada tivessem encontrado um tabletão de quase um quilo de canabis sativa de Linneu dentro da Caravan!…

Receber as pulseiras de prata e assinar o artigo 12 da lei 6368, seria apenas um detalhe!…

Depois de doar meio litro de sangue para um deputado na capital,  e pegar uma carona para chegar mais cedo em casa, minha viagem terminaria no Velho Hotel da Silvestre Ferraz!

Naquele dia o jovem acadêmico de polícia, aspirante a detetive, conheceria o lado de dentro de uma cela… e encerraria precocemente sua carreira policial, antes mesmo de concluir o curso e receber o diploma!

Tudo por conta de uma carona com um amigo…

Cão Peregrino…

“Tu te tornas eternamente responsável por aquele que cativas”!

                                                                     Antoine de Saint Exupéry

Passava pouco de dez da noite quando nos despedimos do recepcionista da pousada. Ajeitamos a mochila nas costas, abotoamos os agasalhos, checamos os cajadinhos de bambu e reiniciamos a caminhada. Tínhamos mais de 60 quilômetros de trilhas e estradas até chegar ao nosso destino. Dois minutos depois viramos a esquina e entramos na avenida principal da pequenina e aconchegante cidadezinha serrana. A pracinha ainda estava movimentada. Apesar do friozinho suave de fim de inverno no alto da serra, idosos ou casais de namorados curtiam a prosa ou o affair nos banquinhos duros em frente a igreja bucolicamente iluminada. Diga-se de passagem, a passagem pela avenida central da simpática cidadezinha com cara de europeia, em qualquer época do ano, é de encher os olhos! Sempre muito colorida, com muito movimento de turistas, de romeiros, muita vida pulsando… – No começo sul da avenida tem uma minúscula padaria que faz o melhor misto quente da região… Nem mesmo a carranca do dono – que mantém um olho no caixa e outro na clientela, para evitar o cano – afugenta os romeiros que param ali para tomar o tradicional ‘pingado’ pelando o céu da boca! Santo Antonio do Pinhal é um divisor geográfico e de sentimentos antagônicos! Quem volta de Aparecida ou de Ubatuba, quando passa por ali, embora ainda esteja há quinze quilômetros da divisa, começa a sentir os ares do Sul de Minas. Quem vai à pé para Aparecida, ao passar por Santo Antônio na parte baixa do cume da serra, sente que está mais perto da Mãezinha! Quatro quilômetros adiante, dos pés da gigante imagem branca de N.S. Auxiliadora, os olhos dos romeiros, já cansados, se perderão na imensidão do Vale do Paraíba. A partir de Santo Antônio do Pinhal, nossa viagem seria marcante. Já havíamos percorrido dois terços do nosso trajeto. No entanto, a partir dali nosso grupo de seis se tornaria sete peregrinos… Ganhamos um novo companheiro de viagem!

Ele estava brincando com outros quatro ou cinco amigos no jardim da pracinha da igreja matriz. Ao nos ver passar, talvez atraídos pelo cheiro do lanche que fizéramos minutos antes na pousada, se aproximaram e puxaram prosa. Entramos na conversa. Perguntaram de onde vínhamos, para onde íamos!… Contamos e, por educação ou por troça, convidamos todos a nos seguir. Os mais distraídos, ou preguiçosos – ou ateus! – ignoraram o convite e se afastaram, voltaram para a pracinha iluminada da igreja. Um deles, no entanto, aceitou o convite… e nos acompanhou! Não sabíamos até onde ele iria, mas esticamos a prosa, estreitamos a amizade, perguntamos da família dele, falamos das cidades por onde passamos… e o novo companheiro de caminhada nos seguiu altaneiro, belo e faceiro, sempre respondendo… ora com um sorriso com a língua de fora, ora com um abano de rabo!

Quando saímos da claridade amarela das lâmpadas no final da avenida, e a escuridão da noite inundou a estradinha apertada, circundada por frondosos pinheiros, pinos e eucaliptos, pensamos que ele desistiria… Mas o sétimo peregrino continuou resoluto a caminhada. Ora atrás de nós, ora ao nosso lado, seguia em silencio, mas sempre respondia nossos afagos verbais com um abano de rabo.

Será que ele nos acompanharia até a Basílica?

Ou estaria apenas fazendo sua caminhada diária – fora de hora – como dezenas de pessoas costumam fazer naquele glamuroso e fresco trecho de serra?

Ou seria um espião do “Conselho dos Peregrinos”, disfarçado, testando a fidelidade dos romeiros, para ver se a gente não pegaria carona para encurtar a caminhada?

Parece que era mesmo apenas um cão sem dono, carente de companhia, feliz por fazer novos amigos!  A nova amizade, no entanto, exigia sacrifícios!

O primeiro obstáculo surgiu quatro quilômetros depois da pracinha, no final da subida da serpenteante estradinha, ao chegar à Estação Lefreve. Os portões da bucólica estação estavam fechados! Como era nosso atalho para descer a serra, buscamos uma solução ‘à lá molecagem’!… Galgamos a cerca de tela, pulamos para o lado de dentro, soltamos o trinco fincado no chão, e aluímos um pouco as duas folhas dos portões para que o nosso novo companheiro passasse! A estação estava sombria, fria e deserta. Cinquenta metros adiante, dos pés da imagem alva da santa que guarda o vale, descansamos nossos olhos nas milhares de luzes amarelas, brilhantes, piscantes e dançantes no imenso Vale do Paraíba. Acostumado a dormir ao relento e ver, toda noite, as luzes piscando no céu, no alto, nosso amigo ficou encantado ao ver pela primeira vez, as luzes piscando lá embaixo. Ficou alguns segundos imóvel, à nossa frente, contemplando toda aquela imensidão estrelada. “O céu deve estar de cabeça para baixo”, deve ter pensado!

A descida da serra pelos trilhos da linha férrea, sob a luz tênue e amarelada das lanternas, não foi fácil para nenhum de nós, afinal, os espaços entre os dormentes, colocados para suportar as pesadas barras de ferro, não tinham compromisso com peregrinos, muito menos peregrinos de quatro patas! Dois quilômetros abaixo, deixamos os trilhos da estrada férrea e tomamos a trilha de terra que nos levaria à Piracuama, na baixada.

Da soturna estação Eugênio Lefreve até a charmosa Vila Piracuama, o sétimo peregrino teve um motivo à mais para nos acompanhar… Segurança! Nenhum de nós, nem ele, se arriscaria a ficar naquele trecho deserto e escuro cercado de mata, no início da madrugada! Agora, no entanto, em um trecho ‘urbanizado’ e parcialmente iluminado, depois de mais de dez quilômetros de caminhada no escuro, pensamos que nosso amigo desistiria. Mas ele continuou decidido e satisfeito com os novos amigos. Depois de uns minutos sentados ou deitados na grama úmida e macia defronte as chácaras que enfeitam a vila, nosso peregrino arriscou-se até a caminhar alegremente na nossa frente!

Já estávamos há várias horas desfrutando da companhia do novo romeiro… Era hora de batizá-lo! O primeiro nome sugerido foi aceito por unanimidade pelo grupo… “Peregrino”! O próprio concordou com o novo nome com três gestos: um sorriso com a língua dançando nos lábios, um murchar de orelhas e um balançar de rabo!

Peregrino era um cão de porte médio. Era malhado – pintas grandes – de branco e marrom. Tinha alguns ferimentos na pele – e certamente também na alma – por conta das lutas pela sobrevivência com outros da sua espécie depois do abandono material. Todos os ferimentos já cicatrizados. O calejado cão aparentava estar descendo a serra da vida, ou seja, uns oito ou nove anos para quem viveria cerca de 12 anos. Era um cão forte fisicamente e resolvido psicologicamente… O abandono dos seus antigos donos, não deixaram traumas. Tanto que ele aceitou o pedaço mordido de sanduiche, confiou nos nossos singelos afagos, e se deixou cativar.

Os primeiros frutos da amizade dos seis peregrinos com o peregrino de quatro patas apareceram no trecho seguinte. Um ano antes eu havia passado por ali mais ou menos naquele horário, eu, Deus e meu cajado de bambu (ver “Peregrino Solitário”, publicado aqui no face no dia 17 de janeiro). Naquela ocasião, dezenas de cães latiam e saiam à beira da estrada para avisar quem mandava por ali. Desta vez, talvez os mesmos cães, latiam, mas não saiam dos seus quintais. Nenhum deles queria encrenca com o nosso Peregrino malhado marrom!

O sol forte da manhã veio nos encontrar antes da ponte do Rio Paraíba. O pequeno trecho de pouco mais de trinta quilômetros havia nos consumido toda a madrugada. Depois de um lauto café da manhã na primeira padaria que encontramos, e uma parada mais longa para recuperar as energias, viramos à esquerda e atravessamos a cidade. Quando saímos do outro lado, no trevo de Roseira, o sol já ia alto… e o Peregrino mais lento!

“Caminhar de Pouso Alegre à Aparecida a partir do mês de agosto é um comportamento humano que precisa ser estudado”, diriam os navegantes de WhatsApp hoje em dia. O sol de fim de inverno, com intensidade de verão nos trópicos, cobra mais dívidas do que o romeiro deve! O calor à margem da rodovia, a menos de um quilometro do Rio Paraíba, reduz muito o ritmo da caminhada. Qualquer sombra que surja à margem da via convida o romeiro a fazer uma parada… e torna a viagem cada vez mais lenta. E cansativa. É preciso ter um motivo para seguir em frente. Cada um ali tinha seus motivos… inclusive o Peregrino malhado. Ele havia feito apenas um terço da caminhada, no entanto, era o que mais mostrava os sinais do cansaço. Mas não pedia colo! Desde a saída de Pinda ele assumira o último posto da fila no acostamento quente e barulhento da estrada… sem reclamar. Uma caminhada dessas, de cento e cinquenta quilômetros, nos aproxima um tanto de Deus… E nos aproxima também das pessoas que caminham com a gente. Sentimos as alegrias e as dores dos nossos companheiros de caminhada. É como uma família, unida, somos todos irmãos – no meu caso mais do que isso. Meus dois filhos mais velhos caminhavam ao meu lado! Peregrino malhado agora fazia parte da família…Era nosso irmãozinho de quatro patas! Por isso, quando a distância entre nós aumentava, nós segurávamos os passos e esperávamos por ele… e o incentivávamos a prosseguir. Se estava difícil para um dos companheiros – marinheiro de primeira viagem – para o cão peregrino estava ainda mais.

Quando entramos em Moreira Cesar, achamos que perderíamos nosso amigo. A distância entre nós havia aumentado! Ele estava há mais de cem metros lá atrás… e vinha passo-a-passo! Devagar quase parando! Paramos na primeira lanchonete que avistamos e esperamos por ele. Quando chegou, uma eternidade depois, uma tigela improvisada com agua gelada esperava por ele na porta. Peregrino, no entanto, não teve forças sequer para beber. Deitou-se ao lado da tigela, fechou os olhos, estendeu meio metro de língua na calçada e ali ficou. Seu ‘arf, arf, arf’ descompassado podia ser ouvido do outro lado da rodovia! Aos poucos seu coração foi retomando o ritmo normal. Mas continuou deitado, imóvel, de olhos fechados, com a língua estendida na calçada!

Depois de meia hora sentados na porta da lanchonete, levantamos, ajeitamos as mochilas nas costas e retomamos a caminhada. Faltavam menos de vinte km para chegar ao destino, mas seriam os vinte quilômetros mais longos de nossas vidas! O copo havia esfriado… mas não havia descansado! Doía tudo. Doíam os tornozelos, os joelhos, o quadril, os braços … queimavam as solas dos pés. Só não doía um órgão do corpo: o coração! Ou seria a alma? Neste momento aconteceu o inusitado! Acordamos nosso amigo e avisamos que íamos partir… Mas ele não se moveu. Tocamos nele, falamos com ele…

– Vamos garoto, agora é o último trecho!

Mas Peregrino Malhado não se mexeu. Esticado no chão rústico da porta da lanchonete, suas costelas magras subiam e desciam suavemente… Estava respirando, estava vivo. Acordou, abriu os olhos castanhos, nos localizou, mas continuou imóvel. Quando demos os primeiros passos para nos afastar, Peregrino fez um pequeno movimento com a cabeça, sem tira-la do chão, para nos acompanhar. Acho que ele quis dizer:

– Vamos descansar mais um pouco… esperar o sol baixar…

Este foi um dos momentos mais marcantes da nossa caminhada naquele ano. Nosso amigo queria seguir conosco. Ele havia sido cativado… e nos cativara! Mas não tinha forças para seguir! Fomos nos afastando lentamente, olhando para trás, deixando palavras de incentivo. E o cão malhado continuava imóvel esticado na calçada, com a cabeça pregada ao chão… e os olhos tristes pregados em nós, afastando!…

Depois de mais de quarenta quilômetros de caminhada, de companhia, de convívio, de alegres conversas, será que nosso companheiro canino desistiria da caminhada? Seria assim, silenciosa, melancólica, no meio do nada a nossa despedida?

Continuamos lentamente a caminhada à margem da rodovia em direção à Aparecida, batendo distraidamente nosso cajadinho de bambu na areia da calçada que corta a cidadezinha de Moreira Cesar… A cada momento um de nós olhava para trás na esperança de ver nosso amigo com as quatro patas calejadas, no chão, trotando atrás de nós… Mas ele continuava lá, estendido na porta da lanchonete. Já não era mais possível ver seus olhos… Mas seus olhos castanhos nos viam! Antes que virássemos a curva e saíssemos do seu raio de visão, Peregrino levantou-se, com dificuldade, aprumou-se e reiniciou a caminhada. A princípio bem devagar, trôpego, até desatar as juntas. Em seguida passou a um trotinho lento. Não queria perder os amigos. Esqueceu até de beber a água… Ou talvez não tenha tido forças! Esperamos que ele se aproximasse… Chegou sorrindo amarelo, pedindo desculpas por ter demorado tanto a retomar a caminhada. Tivemos que improvisar nova tigela com água… e dividir com ele nosso lanche! Mas multiplicamos nossa alegria…

A partir dali a caminhada ficou mais lenta. O calor escaldante da tarde, as retas intermináveis, as dores ressuscitadas – um dos companheiros tinha bolhas e calos saltando fora do tênis! Tudo convidava a andar mais devagar. Cada sombra de arvore, cada barzinho copo sujo que surgia lentamente na beira da estrada, eram como oásis e convidavam para uma parada. Peregrino, sempre sorridente, com a língua dançando na boca aberta, respondia aos afagos verbais, agradecia e se estendia arfante aos nossos pés.

O sol dava seu último aceno no cume da Serra da Mantiqueira, por sobre Campos do Jordão, quando entramos no estacionamento da Basílica de Aparecida. Poucos metros depois, nas torneiras comunitárias, tiramos o suor do rosto e subimos a rampa… Missão cumprida! Nossa Senhora havia nos acompanhado durante toda a viagem… e em vários momentos havia nos carregado no colo… Faltava agora apenas o diálogo final!

Diante da imagem, na sala de visitas da nossa Mãezinha, nossos rostos molharam de novo! Desta vez não era de suor… Eram lágrimas de emoção. Lágrimas da alma! Pacientemente a Mãezinha ouviu a história de cada peregrino, de cada filho… E afagou cada um de nós!… E curou cada ferida!

Agora, o coração pulsava mais forte. Renovado. Cheio de esperança. O corpo não doía mais…

Peregrino, aos nossos pés, seguia os ritos, em silencio… e sorria de boca aberta, com a língua para fora, feliz. A qualquer afago, respondia também com o rabo.

Fim da história do Peregrino Malhado?

Não.

A saga do nosso amigo de quatro patas teria mais alguns capítulos…

Início de agosto, meio de semana… A capital nacional da fé estava vazia de romeiros. Ruas, ladeiras, lojas … apenas alguns ‘gatos pingados’… E raríssimos cães com seus novos donos! Escolhemos aleatoriamente um hotelzinho ao lado da Basílica Velha. Sobradinho antigo e acanhado encimado por lojas. Fomos ‘quase’ todos muito bem recebidos, quase … O porteiro que aliciava clientes na porta ao pé da escada, disse que não havia vaga para peregrinos de quatro patas! Nossa despedida, depois de quase 24 horas de fiel companhia, aconteceu ali na porta do hotelzinho de pernoites. Subimos para dormir no surrado quartinho… E Peregrino Malhado sob um banco qualquer do jardim!

Na manhã seguinte, quando atravessávamos o jardim da velha pracinha da Matriz em direção à gigantesca passarela que nos levaria à missa das 10:00h na Basílica, reencontramos nosso amigo. Peregrino estava brincado no meio do jardim. Quando nos viu passar, correu imediatamente em nossa direção, sorrindo, cabeça erguida, boca aberta… Queria saber como passamos a noite! Queria contar como fora sua noite debaixo do banco do jardim! Pelo jeito não guardara nenhuma mágoa da nossa ingratidão! Nem foi preciso convidá-lo para a missa. Seguiu-nos alegremente pela passarela e entrou educadamente na igreja. Apesar de ter entrado respeitosamente na Basílica, Peregrino Malhado não seguiu os ritos da celebração. Aliás, ele nem assistiu a missa! Tão logo nos sentamos num dos tantos bancos vazios próximo ao altar, Peregrino deitou-se debaixo do banco aos nossos pés e entregou-se às caricias de Morfeu… Dormiu durante toda a missa! Nunca soubemos qual era sua verdadeira religião.

O momento mais marcante, mais difícil da nossa caminhada de três dias aconteceria duas horas depois da missa, na estação rodoviária de Aparecida… Na despedida do nosso fiel amigo. Sentados nos bancos lisos e duros da plataforma de embarque, relembrávamos alguns trechos da caminhada. Deitado sobre as quatro patas, à nossa frente, Peregrino participava da conversa. Com a cabeça encostada ao chão e os olhos bem abertos, ele mais ouvia do que falava. Embota tenha visto que compramos apenas seis passagens, ele ainda não tinha certeza se viajaria conosco ou não. Mas já deixava transparecer no olhar a dor da separação! O rabo, quando abanava, era um abano discreto, sem energia, sem convicção. Seu sorriso era meio amarelo, carregado de incerteza. Quando nosso Mercedes encostou na plataforma, entramos na fila de embarque… nós sete. Peregrino educadamente seguiu no fim da fila, passo a passo, enquanto o cobrador conferia cada passagem. Quando o último de nós subiu a escadinha do Mercedes, Peregrino tentou fazer o mesmo… chegou a subir o primeiro degrau… Mas foi barrado pelo cobrador! Tentamos argumentar, nos propusemos a pagar sua passagem… Mas o cobrador foi insensível… e usou o sapato preto surrado e lustrado na barra da calça azul de tergal para impedir o embarque do nosso amigo. Peregrino, certamente acostumado a sentir a rudeza daqueles bicos de botina ao longo da vida, não insistiu. Afastou-se da porta do Mercedes, mas ficou por ali, correndo para lá e para cá ao lado do ônibus, como um cachorro caído de mudança, procurando seus donos, até que nos achou na janela do ônibus! Sentou-se nas patas traseiras e ficou ali diante da janela, conversando agitado conosco, com um palmo de língua molhada dançando de um lado a outro da boca, tentando encontrar uma saída… ou uma entrada no ônibus! Ou, quem sabe, tentando aceitar a separação. Quando o mercedão da Pássaro Marrom partiu, Peregrino nos acompanhou desnorteado por alguns metros, até que desistiu, parou de correr, saiu do meio da rua onde corria perigo, deu voltas inquieto em volta de si mesmo e dos carros estacionados … Desesperado! Se usasse as mãos como nós humanos, certamente colocaria as duas na cabeça e perguntaria a si mesmo:

– “E agora? Como faço para acompanhar vocês? O que será de mim sem vocês?”

Ao virar a primeira esquina, da janela do Mercedes, avistamos nosso amigo voltar lentamente para a estação rodoviária, quem sabe acreditando que aquilo tudo fora uma pegadinha, uma brincadeira de mau gosto, e que o ônibus daria a volta no quarteirão e voltaríamos lá para buscá-lo!

Não.

Não voltamos para buscá-lo. Não voltamos para trazer nosso amigo no ônibus… Mas trouxemos na memória, no coração!

Esse fato aconteceu no início de agosto de 2002. Naquela ocasião eu já havia lido e relido o “Pequeno Príncipe”. Conhecia de cor e salteado a clássica citação filosófica de Antoine de Saint Exupéry…

 

“Tu te tornas eternamente responsável por aquele que cativas”!

     Talvez por isso, vinte anos depois, o Peregrino Malhado ainda continue vivo em minha memória!