Sequestro em Borda da Mata…

 

     Os pretensos sequestradores só não imaginavam que o prefeito tinha estreita amizade com o famoso Delegado Fleury, caçador de subversivos!   

     O imbróglio aconteceu no início de janeiro quando um proeminente político da cidade recebeu ameaça de sequestro!

– “Queremos 100 milhões de cruzeiros, caso contrário vamos sequestrar sua neta. Se avisar a polícia, será pior” – dizia o bilhete dos sequestradores.

Apesar de apavorado com o possível sequestro, o político procurou um amigo do DOPS em São Paulo e pediu orientação sobre como agir. O tal amigo paladino da lei era ninguém menos do que o delegado Sergio Paranhos Fleury, incansável perseguidor de subversivos e um dos responsáveis pela morte do revolucionário Carlos Marighela, anos antes, em São Paulo. O notório paladino da lei então orientou o político bordiano a dar corda para os sequestradores.

– “Negocie… faça parecer que você está morrendo de medo! Mas concorde em pagar o solicitado… e nos mantenha informado sobre dia, horário e local do pagamento. Vamos montar uma “casa de caboclo” para os sequestradores”.

O local e horário da entrega da bufunfa foi marcado para o início da manhã na encruzilhada de uma estrada rural no município de Borda.

– “Deixe o saco com o dinheiro no ‘ponto de leite’” na encruzilhada e desapareça – orientou o sequestrador com voz de homem mau.

Assim foi feito. De manhãzinha um empregado do político deixou o saco cheio de papel no referido ponto de leite e se afastou. Enquanto isso, alongados no matagal nas imediações, vários detetives do DOPS de São Paulo, a mando do temível delegado Fleury, aguardavam atentos para dar o pulão no primeiro que colocasse as mãos no saco de dinheiro.

Enquanto os policiais mocosados no mato desde a madrugada, aguardavam tensos o lento movimento dos ponteiros do relógio, prontos para prender ou trocar tiros com os sequestradores, um pacato retireiro se aproximou do local. Chegou numa bagageira velha cheirando a leite azedo, puxada por um cavalinho baio trazendo um latão de leite como fazia todos os dias. Depois de depositar o latão encardido cheio do precioso líquido branco sobre o pequeno deque de madeira respingado de barro, o sitiante notou a presença do saco ali ao lado. Curioso como todo mineiro – ainda mais mineiro da roça! – pegou o saco, sacoalhou, – deve ser daí que surgiu a expressão ‘sacoalhar’ – sentiu o peso, encostou na orelha pra ver se mexia, se falava, se estava vivo, e lentamente desatou a cordinha do saco para ver o que havia dentro.

Neste momento os agentes armados até os dentes, saíram do mato e pularam sobre o perigoso ‘sequestrador’! Sem entender o que estava acontecendo, o humilde sitiante esperneou, esmaneou, mas acabou recebendo as pulseiras de prata. Enquanto aguardavam a viatura chapa fria que havia sido chamada através do rádio Walkie-Talkie, Pedro Leite tentava explicar aos carrancudos agentes que ele era apenas o sitiante, dono do sítio Pedra Mansa, logo depois da curva da nascente do Rio Mandu. Mas ‘não teve choro e nem vela e nem fita amarela’. O leite azedou, quero dizer, a coisa azedou para Pedro Leite! Tratado como um perigoso e disfarçado sequestrador, ele foi colocado no porta-malas do taxi do contribuinte paulista e levado direto para a sede do DOPS em São Paulo.

Cavalos, mesmos os mais pacatos, não costumam acatar ordens para ir a algum lugar. Muitas vezes precisam do ‘carinho’ do acoite para obedecer. No entanto, para voltar para casa nem precisam de ordens. Tão logo sentiu a ausência do dono, o cavalinho baio, que conhecia de cor e salteado o caminho do sítio, voltou passo a passo para casa. A chegada da bagageira vazia encheu Maria de interrogações!

Onde estaria seu marido?

Teria caído da bagageira e morrido naquele pequeno trajeto?

Teria ficado pelo caminho jogando conversa fora com algum sitiante vizinho?

Teria sido abduzido por um OVNI?

Teria abandonado o lar e fugido com aquela lambisgoia filha do fazendeiro goiano?

Teria sido levado para o além pelo ‘Chiquinho da Borda’?

Com a demora do sitiante em voltar para casa, um mirrado menino de pés no chão seguiu os passos inversos do cavalinho baio até o ‘ponto de leite’ à sua procura. Algumas horas de mistério depois, o Jipe do vizinho Abrão levou dona Maria e sua ansiedade ao quartel da polícia militar na cidade. Em poucas horas o sumiço de Pedro Leite reuniu todos os policiais da cidade – um sargento, um cabo e tres soldados – além de meia dúzia de curiosos.

Enquanto o ‘perigoso’ sequestrador era levado pelos agentes para São Paulo, o restante da equipe do delegado Fleury ficou espalhado por Borda da Mata, disfarçados de vendedores de cortes de fazenda, para tentar descobrir o restante da quadrilha. Naquela mesma noite outros quatros suspeitos de extorsão receberam as pulseiras de prata dos homens do delegado Fleury, e entraram na manguara. No dia seguinte, desfeita a ‘varada n’água’, os quatro suspeitos, com o lombo ardendo, voltaram para casa.

O pacato sitiante Pedro Leite, que teve a curiosidade de abrir o saco de papel picado no ponto de leite, não teve a mesma sorte. Ele desapareceu. Quatro dias depois ele foi encontrado numa cela correcional da delegacia Regional de Polícia de Pouso de Pouso Alegre. Ninguém soube explicar como ele foi parar ali. Sem muito alarde, o sitiante voltou a tirar seu leitinho de cada dia no Sitio Pedra Mansa, perto da nascente do Rio Mandu. E ficou o dito pelo não dito.

Era o auge da ditadura militar. Equívocos eram comuns. Explicações eram dispensáveis. O imbróglio do sequestro da Borda, incluindo as arbitrariedades praticadas pelo delegado Sergio Fleury fora de sua jurisdição, chegou até o General Newton Cruz, comandante da AD4 em Pouso Alegre. No entanto, o sisudo general, que era simpático às ações dos policiais que combatiam subversivos, fez vista grossa. Nunca se soube como e porque os sequestradores escaparam das garras do temível delegado Fleury. Talvez eles tenham percebido a arapuca em que estavam prestes a cair e abortaram o sequestro da neta do prefeito. O fato é que o imbróglio nunca foi esclarecido… sequer comentado na cidade. Mas isso não é novidade em Borda da Mata. Apesar de ter ganhado o Brasil e o mundo, a famosa história do “Coisa Ruim da Borda” foi enterrada, sem explicações, tão logo o espírito secular do Chiquinho abandonou a fazenda da Ponte de Pedra. Se o Conego Edson Oriolo, muitas décadas depois, na tentativa de arrebanhar mais fiéis para sua igreja, não tivesse ressuscitado a história do sepulcro do ‘sagrado’ “Livro do Tombo”, dando publicidade aos fatos quase meio século depois – fatos posteriormente investigados pelo detetive Airton Chips e contados no livro ‘Meninos que vi crescer’ -, hoje nada saberíamos da passagem do Chiquinho pela capital do pijama.

      A história do sequestro da neta do ilustre político não foi parar no Livro do Tombo. Por essa razão, certamente, o imbróglio foi parar no “Livro do Esquecimento”. Tal qual a história do Chiquinho, sepultado na noite do dia 23 de abril de 1953, o obnubilado imbróglio do sequestro da Borda e prisão equivocada de inocentes e até policiais, permanecem vivas apenas nas crônicas policiais de alguns abnegados abelhudos que insistem em preservar fatos que marcam a história da nossa região.

 

*** Embora o imbróglio do sequestro de Borda permaneça tacitamente sob absoluto sigilo, ele aparece em ao menos um capítulo no livro “Borda da Mata e sua história”, escrito pelo Sr. João Bertolaccini. O historiador, no entanto, dá outra roupagem à passagem do Delegado Fleury por Borda da Mata no alvorecer do ano de 1977.

2 thoughts on “Sequestro em Borda da Mata…

  1. A velha guarda da PM contava que até alguns membros chegaram a ser presos, mas, como se dizia no filme do John Ford: “Aqui é o Oeste, senhor. Quando a lenda é maior que o fato, publique-se a lenda”

  2. Bom dia Vitor!

    Sim, segundo levantamentos preliminares, a história que envolve a tentativa de sequestro em Borda da Mata tem outras nuances bastante obnubiladas. Uma versão, talvez um pouco exagerada, ou quem sabe ‘lendária’, diz que os agentes do DOPS que permaneceram na cidade após a prisão do leiteiro, teriam prendido policiais militares e curiosos que estavam no quartel. Quando viram o movimento no quartel da PM, julgando que os policiais também estavam envolvidos no sequestro, os agentes do delegado Fleury teriam invadido o quartel e prendido todos, inclusive o sargento, o cabo e os soldados, e os levado também para a sede do DOPS em São Paulo. Ainda segundo os levantamentos, a prisão dos PMs só foi percebida de madrugada, quando um ‘pé de cana’ que voltava para casa passou por ali e notou que a delegacia estava toda aberta.
    – “As luzes estão acesas. As portas e janelas estão escancaradas” – teria dito o cidadão ao chegar em casa.
    No dia seguinte, desfeita a ‘varada n’água’, tanto Pedro Leite quanto os PMs voltaram para Borda. E ficou o dito pelo não dito. Como há muita controvérsia e romantismo em torno dos fatos que marcaram o período do governo militar, difícil saber onde terminam os fatos e onde começa a fantasia.
    No entanto, a exemplo de outras investigações por mim encetadas na região, inclusive em Borda da Mata, que resultaram no desfazimento da lenda do “Coisa Ruim da Borda”, oportunamente envidarei novas diligencias buscando jogar luz sobre esse pequeno detalhe da prisão de autoridades mineiras por forças policiais de São Paulo naquele longínquo janeiro de 1977.

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