Sequestro em Borda da Mata…

 

     Os pretensos sequestradores só não imaginavam que o prefeito tinha estreita amizade com o famoso Delegado Fleury, caçador de subversivos!   

     O imbróglio aconteceu no início de janeiro quando um proeminente político da cidade recebeu ameaça de sequestro!

– “Queremos 100 milhões de cruzeiros, caso contrário vamos sequestrar sua neta. Se avisar a polícia, será pior” – dizia o bilhete dos sequestradores.

Apesar de apavorado com o possível sequestro, o político procurou um amigo do DOPS em São Paulo e pediu orientação sobre como agir. O tal amigo paladino da lei era ninguém menos do que o delegado Sergio Paranhos Fleury, incansável perseguidor de subversivos e um dos responsáveis pela morte do revolucionário Carlos Marighela, anos antes, em São Paulo. O notório paladino da lei então orientou o político bordiano a dar corda para os sequestradores.

– “Negocie… faça parecer que você está morrendo de medo! Mas concorde em pagar o solicitado… e nos mantenha informado sobre dia, horário e local do pagamento. Vamos montar uma “casa de caboclo” para os sequestradores”.

O local e horário da entrega da bufunfa foi marcado para o início da manhã na encruzilhada de uma estrada rural no município de Borda.

– “Deixe o saco com o dinheiro no ‘ponto de leite’” na encruzilhada e desapareça – orientou o sequestrador com voz de homem mau.

Assim foi feito. De manhãzinha um empregado do político deixou o saco cheio de papel no referido ponto de leite e se afastou. Enquanto isso, alongados no matagal nas imediações, vários detetives do DOPS de São Paulo, a mando do temível delegado Fleury, aguardavam atentos para dar o pulão no primeiro que colocasse as mãos no saco de dinheiro.

Enquanto os policiais mocosados no mato desde a madrugada, aguardavam tensos o lento movimento dos ponteiros do relógio, prontos para prender ou trocar tiros com os sequestradores, um pacato retireiro se aproximou do local. Chegou numa bagageira velha cheirando a leite azedo, puxada por um cavalinho baio trazendo um latão de leite como fazia todos os dias. Depois de depositar o latão encardido cheio do precioso líquido branco sobre o pequeno deque de madeira respingado de barro, o sitiante notou a presença do saco ali ao lado. Curioso como todo mineiro – ainda mais mineiro da roça! – pegou o saco, sacoalhou, – deve ser daí que surgiu a expressão ‘sacoalhar’ – sentiu o peso, encostou na orelha pra ver se mexia, se falava, se estava vivo, e lentamente desatou a cordinha do saco para ver o que havia dentro.

Neste momento os agentes armados até os dentes, saíram do mato e pularam sobre o perigoso ‘sequestrador’! Sem entender o que estava acontecendo, o humilde sitiante esperneou, esmaneou, mas acabou recebendo as pulseiras de prata. Enquanto aguardavam a viatura chapa fria que havia sido chamada através do rádio Walkie-Talkie, Pedro Leite tentava explicar aos carrancudos agentes que ele era apenas o sitiante, dono do sítio Pedra Mansa, logo depois da curva da nascente do Rio Mandu. Mas ‘não teve choro e nem vela e nem fita amarela’. O leite azedou, quero dizer, a coisa azedou para Pedro Leite! Tratado como um perigoso e disfarçado sequestrador, ele foi colocado no porta-malas do taxi do contribuinte paulista e levado direto para a sede do DOPS em São Paulo.

Cavalos, mesmos os mais pacatos, não costumam acatar ordens para ir a algum lugar. Muitas vezes precisam do ‘carinho’ do acoite para obedecer. No entanto, para voltar para casa nem precisam de ordens. Tão logo sentiu a ausência do dono, o cavalinho baio, que conhecia de cor e salteado o caminho do sítio, voltou passo a passo para casa. A chegada da bagageira vazia encheu Maria de interrogações!

Onde estaria seu marido?

Teria caído da bagageira e morrido naquele pequeno trajeto?

Teria ficado pelo caminho jogando conversa fora com algum sitiante vizinho?

Teria sido abduzido por um OVNI?

Teria abandonado o lar e fugido com aquela lambisgoia filha do fazendeiro goiano?

Teria sido levado para o além pelo ‘Chiquinho da Borda’?

Com a demora do sitiante em voltar para casa, um mirrado menino de pés no chão seguiu os passos inversos do cavalinho baio até o ‘ponto de leite’ à sua procura. Algumas horas de mistério depois, o Jipe do vizinho Abrão levou dona Maria e sua ansiedade ao quartel da polícia militar na cidade. Em poucas horas o sumiço de Pedro Leite reuniu todos os policiais da cidade – um sargento, um cabo e tres soldados – além de meia dúzia de curiosos.

Enquanto o ‘perigoso’ sequestrador era levado pelos agentes para São Paulo, o restante da equipe do delegado Fleury ficou espalhado por Borda da Mata, disfarçados de vendedores de cortes de fazenda, para tentar descobrir o restante da quadrilha. Naquela mesma noite outros quatros suspeitos de extorsão receberam as pulseiras de prata dos homens do delegado Fleury, e entraram na manguara. No dia seguinte, desfeita a ‘varada n’água’, os quatro suspeitos, com o lombo ardendo, voltaram para casa.

O pacato sitiante Pedro Leite, que teve a curiosidade de abrir o saco de papel picado no ponto de leite, não teve a mesma sorte. Ele desapareceu. Quatro dias depois ele foi encontrado numa cela correcional da delegacia Regional de Polícia de Pouso de Pouso Alegre. Ninguém soube explicar como ele foi parar ali. Sem muito alarde, o sitiante voltou a tirar seu leitinho de cada dia no Sitio Pedra Mansa, perto da nascente do Rio Mandu. E ficou o dito pelo não dito.

Era o auge da ditadura militar. Equívocos eram comuns. Explicações eram dispensáveis. O imbróglio do sequestro da Borda, incluindo as arbitrariedades praticadas pelo delegado Sergio Fleury fora de sua jurisdição, chegou até o General Newton Cruz, comandante da AD4 em Pouso Alegre. No entanto, o sisudo general, que era simpático às ações dos policiais que combatiam subversivos, fez vista grossa. Nunca se soube como e porque os sequestradores escaparam das garras do temível delegado Fleury. Talvez eles tenham percebido a arapuca em que estavam prestes a cair e abortaram o sequestro da neta do prefeito. O fato é que o imbróglio nunca foi esclarecido… sequer comentado na cidade. Mas isso não é novidade em Borda da Mata. Apesar de ter ganhado o Brasil e o mundo, a famosa história do “Coisa Ruim da Borda” foi enterrada, sem explicações, tão logo o espírito secular do Chiquinho abandonou a fazenda da Ponte de Pedra. Se o Conego Edson Oriolo, muitas décadas depois, na tentativa de arrebanhar mais fiéis para sua igreja, não tivesse ressuscitado a história do sepulcro do ‘sagrado’ “Livro do Tombo”, dando publicidade aos fatos quase meio século depois – fatos posteriormente investigados pelo detetive Airton Chips e contados no livro ‘Meninos que vi crescer’ -, hoje nada saberíamos da passagem do Chiquinho pela capital do pijama.

      A história do sequestro da neta do ilustre político não foi parar no Livro do Tombo. Por essa razão, certamente, o imbróglio foi parar no “Livro do Esquecimento”. Tal qual a história do Chiquinho, sepultado na noite do dia 23 de abril de 1953, o obnubilado imbróglio do sequestro da Borda e prisão equivocada de inocentes e até policiais, permanecem vivas apenas nas crônicas policiais de alguns abnegados abelhudos que insistem em preservar fatos que marcam a história da nossa região.

 

*** Embora o imbróglio do sequestro de Borda permaneça tacitamente sob absoluto sigilo, ele aparece em ao menos um capítulo no livro “Borda da Mata e sua história”, escrito pelo Sr. João Bertolaccini. O historiador, no entanto, dá outra roupagem à passagem do Delegado Fleury por Borda da Mata no alvorecer do ano de 1977.

IRMÃO RINO, O HOMEM QUE AMAVA…

Hoje, 06 de abril, faz oito anos que ele partiu … e nos deixou imensa saudade!

Irmão Rino e sua lendária bicicleta desfilando no pátio do colégio que ele tanto amava.

Aquele homem alto, forte, dentro de sapatos pretos, calça social azul clara, camisa branca com estreitas listras levemente verdes, com a fralda por dentro da calça, parecendo ainda mais alto, era assustador! O rosto muito vermelho, parcialmente escondido pelos óculos de lentes grossas parecendo fundo de garrafa, aumentavam meu medo. Seus gestos decididos fechando a porta do suntuoso prédio atrás de si após a saída do último professor, me provocava infindáveis interrogações.

Quem era ele?

Será que era dono do colégio?

 

Às vezes uma professora retardatária acenava, acelerava os passos, pedia desculpas pelo atraso e passava quase correndo pela porta já se fechando enquanto ele resmungava alguma coisa. Nesse momento aumentava ainda mais meu terror… pois eu não entendia uma palavra do que ele falava!

 

Eu não entendia nada, mas percebia que as lindas e doces professoras bem-vestidas, com suas elegantes saias plissadas e camisas claras carregando seus livros e diários no braço esquerdo, tinham medo dele.

 

Sim, devia ser o dono!  Era sempre o último a sair. Unia as duas folhas da porta, passava a chave – tinha um imenso molho de chaves -, pendurava a penca de chaves na cinta e seguia a passos largos pela calçada até atravessar a rua e entrar no outro prédio ainda maior ali na esquina. Do outro lado da rua, eu ficava olhando até que ele entrava na Escola Profissional. Sim, devia ser alguém importante, muito importante. Talvez dono dos dois prédios.

 

Apesar do medo que eu sentia dele, havia alguma coisa que nos atraia. Volta e meia eu estava ali na frente do colégio no horário de saída dos alunos, com minha caixinha de picolés coloridos. Tinha eu dez ou onze anos de idade.

 

Na adolescência abandonei os carrinhos de picolés, de pipoca, de raspadinhas… e fui trabalhar na loja do Zezinho Gouveia, na Rua Dom Nery. As imediações do Colégio São José então se tornaram meu quintal de casa! E o ‘dono’ do colégio passou a desfilar com mais frequência diante dos meus olhos. Com isso, o gigante de fala enrolada passou a ficar menor… e menos temível. Meu medo foi, aos poucos, se transformando em respeito… e admiração! Cheguei a sonhar estudar naquele colégio.

 

Da adolescência para a vida adulta foi um pulinho. Quando vi eu já estava casado e tinha dois filhos! Como o mundo é muito menor do que parece, minha esposa foi convidada para trabalhar lá! Poucos anos depois meus filhos se tornaram alunos do colégio São José, o colégio do grandão de óculos fundo de garrafa!

 

E como atração pouca é bobagem aquela estranha atração continuou nos aproximando…

 

Em 1987 eu assumi a direção da desacreditada Liga Esportiva de Pouso Alegre. Naquele mesmo ano a secretaria municipal de educação, não se sabe por que, disse que não iria mais realizar o JEPA.

 

Aos cinquenta e sete anos, 36 deles vividos no Brasil, no Colégio São José, Irmão Rino tinha plena consciência de que toda educação do homem passa pela disciplina no esporte. Para o sisudo e disciplinado professor, apaixonado pelo esporte, – todos os esportes – um dos criadores dos Jogos Escolares em Pouso Alegre em 71, não realizar mais os jogos na cidade era como cortar a sua veia aorta! Ele morreria. Ou no mínimo ficaria paralítico! Isso não poderia acontecer. Era preciso achar uma saída! Se a Secretaria de Educação não promoveria os jogos, alguém teria que fazê-lo. Alguma instituição ou agremiação da cidade teria que fazer ou ao menos ajudar. Não se podia deixar a peteca cair.

 

Apesar de povoar meus medos e depois minha admiração, eu e o Irmão Rino nunca havíamos trocado mais do que olhares à distância. Quando muito uma discreta reverencia. Ele certamente sabia que eu era marido de uma de suas professoras e pai de dois dos seus alunos, mas talvez nem soubesse meu nome…

 

Mas o professor Walter sabia!

 

Entre 84 e 86 eu havia dirigido o Departamento de Esportes do DA da Faculdade de Direito. Já naquela época eu tinha mania de promover eventos esportivos para os colegas acadêmicos. Foram dezenas de eventos durante os dois mandatos. Futsal, vôlei masculino e feminino envolvendo os alunos da FDSM, da Faculdade de Filosofia, da Medicina, equipes de Cambui, da Fai de Santa Rita, da Escola Agrícola de Inconfidentes. O professor Walter era sempre o arbitro mais solicitado. Conhecendo, portanto, um pouco da nossa seriedade e credibilidade, o professor sugeriu uma parceria com a LEPA.

 

Em setembro daquele ano, de repente eu me vi no pátio do Colégio São Jose, diante de um microfone fazendo a abertura oficial do JEPA – missão que havia sido abandonada pela Secretaria Municipal de Esportes.

 

A partir de então meu convívio com o italiano de fala enrolada se estreitou. E pude conhecer um pouco da paixão do educador Irmão Rino pelo esporte. Paixão trazida no cabresto pela disciplina. Foi com essa rígida disciplina, em todos os aspectos, que os atletas de Pouso Alegre, de todas as escolas, se tornaram referência no Estado. A mais brilhante pode ter sido a equipe formada por estudantes de várias escolas do município, campeã estadual de handebol masculino em 1980. Nos anos seguintes o Colégio São José participou de todos os eventos de esportes especializados promovidos pela LEPA. Sua disciplina, tão necessária nos dias de hoje, ia além do esporte. Era marca registrada do educador Irmão Rino. É impossível encontrar um único cidadão de Pouso Alegre que tenha desfrutado, por algum tempo, do convívio com o Irmão Rino, e não se lembre dele com saudade, com admiração e respeito.

 

A firmeza, a disciplina, a primazia pela organização dos eventos esportivos realizados pelo Colégio São José, ou dos quais o colégio participava, durante décadas contagiaram as demais escolas do município. Até mesmo as escolas públicas, cujos estudantes queriam, com dedicação e esforço, suplantar os alunos do colégio particular. Sim, pois o TALENTO existe em qualquer camada social. O que faz despontar o talento de cada criança de cada adolescente, de cada jovem, é a dedicação, de mãos dadas com a disciplina. Esse é o legado deixado pelo saudoso Irmão Rino… o homem que amava o esporte, a disciplina, os valores morais!

 

Com tantas estatuas que o cidadão de Pouso Alegre deveria erigir para homenagear desportistas que elevaram o esporte da cidade no século passado, a do Irmão Rino merece lugar de destaque.

 

Irmão Rino dedicou 60 anos da sua vida à educação e ao esporte de Pouso Alegre. No próximo dia 30, Irmão Rino faria 94 anos de vida. Hoje, dia 06 de abril, faz oito anos que ele partiu … e nos deixou imensa saudade.

 

Onde estiver meu amigo Irmão Rino – e tenho certeza de que está em um local cheio de luz, serenidade e paz -, receba meu carinho, meu afeto e meu reconhecimento pelo que fez, durante mais de meio século, pelo esporte de Pouso Alegre. Não fui seu aluno no colégio, mas aprendi muito com você.

 

Obrigado Irmão Rino.

O Sumiço de Renatinho!

Ele brincou de ‘orfão’ e acabou sendo adotado por um desconhecido!

Imagem Ilustrativa

Todos os dias pessoas batem à porta da delegacia de policia para comunicar o desaparecimento de alguém da família. Os motivos são os mais diversos. Mas os familiares nunca sabem informar! Tem pessoas que desaparecem contra a vontade… por rapto ou sequestro. Outras, por falta de juízo, saem mundo afora sem destino, a procura de emoções mais fortes. Adultos costumam ir embora tentar a sorte em outras paragens e saem sem deixar notícias. Muitos maridos ou esposas vão embora quando o amor ou a paixão chega ao fim. Estes, às vezes, usam apenas o pretexto de ‘comprar cigarros’! Tem aqueles que deixam o porto seguro por conta de crises de depressão! Ou por desilusão amorosa… E nunca mais encontram o caminho de casa. Tem também aqueles que simplesmente pegam a estrada, sem rumo, por distúrbios mentais. O motivo campeão de fugas do lar entre os adultos, são as dívidas. E quando voltam para casa a família já gastou  outro tanto com divulgação  de retratos, panfletos, pistas falsas e telefonemas para casa de parentes e amigos de outras cidades tentando encontra-lo! Adolescentes adoram fugir de casa para descobrir o mundo em companhia de outro adolescente com a cabeça cheia de vento, como ele…

O garotinho R.N.S.P. saiu de casa para ‘brincar de órfão’!  E acabou sendo adotado por um desconhecido e foi morar em outro estado.

Renatinho tinha dez anos de idade, morava com o pai e uma tia no Jardim São João, brincava com os amigos na rua, frequentava regularmente a escola do bairro, e não dava motivos para ninguém branquear os cabelos antes da hora. Era um bom menino. Até que um dia saiu de casa com destino a escola e não voltou mais. Depois de procurar, sem sucesso, na escola, na casa da mãe, na casa da avó, na vizinhança, no campinho de futebol, o sumiço do garoto foi comunicado à policia.

Os detetives Airton Chips e Fernando Jardim pegaram a foto do garotinho, igual a todos os garotinhos de dez anos, e repetiram todo o trajeto  antes feito pela tia do fujão. Varreram cada centímetro do bairro São João, do bairro Fernandes, Cidade Jardim onde ele tinha parentes, visitaram a escola, o pronto socorro, os rios e ribeirões, checaram revoadas de urubus, ciclo de amigos – e de possíveis inimigos do submundo da delinquência! -, só não usaram bola de cristal! mas nem sombra do garotinho. Parecia que David Copperfield ou algum Ovni estivera por aqui.

Depois de checar cada informação, por mais vaga que fosse, durante semanas, sem nada de positivo, os detetives da Delegacia de Menores foram aos poucos deixando o caso relegado à prancheta. O pai e tia também, embora não esquecesse o franzino e indefeso Renatinho, secaram as lágrimas e foram se acostumando com sua ausência permanente. Deixaram de procura-lo. Pararam de alimentar a esperança de ver novamente seu sorriso maroto! Os dias, semanas, meses não apagaram as lembranças de Renatinho, mas os pensamentos já não despertavam mais tanta emoção!

Certa manhã, bela e ensolarada de terça-feira, dona Maria teve que interromper o almoço para atender o telefone que urrava e vibrava na velha estante de madeira na sala. Ao responder o tradicional “alô” o aparelho quase caiu de sua mão, e ela quase caiu de costas. O telefonema era de outro mundo. Estava falando com u fantasma! Demorou para entender o que estava ouvindo. Mas reconheceu de imediato aquela vozinha meio estabanada que não ouvia há mais de seis meses. As palavras atropelaram os pensamentos. Mas teve certeza: Era Renatinho!

Naquele dia o almoço de dona Maria saiu um pouco atrasado, insosso e ligeiramente queimado, tamanha foi sua emoção! Renatinho estava vivo, prisioneiro em outro Estado e queria desesperadamente voltar para casa!

No dia seguinte Renatinho prestou depoimentos no gabinete da Delegada Inês Xavier , na 13ª DRSP de Pouso Alegre e desfiou seu rosário de infortúnio. Contou com detalhes as consequências de suas aventuras de falso órfão. Já refeito do susto e ainda inebriado pelos carinhos recebidos dos familiares, Renatinho contou que naquele dia, seis meses atrás, não estava a fim de ir  pra escola e resolveu passear sozinho na rodoviária de Pouso Alegre. Ali conheceu um distinto e bondoso senhor cinquentão, bem trajado, o qual puxou prosa. Ele então respondeu que era órfão e vivia na rua. O simpático cidadão pagou-lhe um lauto lanche regado a refrigerante e o convidou para conhecer sua mansão… em São Paulo! Minutos depois, sem nenhum embaraço, subiram em um ônibus da Transul e três horas depois desembarcaram no terminal do Bresser na ‘selva de pedra’. A partir daí, seu sonho se conhecer uma casa imensa cheia de quartos e esconderijos, com vários empregados usando impecáveis uniformes brancos, com jardins cheios de palmeiras e manacás circundando uma grande piscina de aguas azuis, tornou-se um cinzento pesadelo! Da estação do Bresser na Casa Branca, seguiram para uma pensão de terceira ali perto. No dia seguinte desembarcaram em Campinas e foram morar numa pequena e modesta casa de dois quartos na periferia da cidade. Ali passou a viver na companhia do novo ‘pai’!

O cinquentão que dizia chamar-se Alberto não era mau. Não o maltratava, chamava-o de filho e estava sempre por perto. Por perto mesmo, inclusive das chaves da casa. E quando se afastava trancava as portas!

No final da manhã daquela terça-feira, aproveitando um cochilo do falso pai, Renatinho correu até a casa da vizinha, pediu-lhe o telefone e finalmente conseguiu ouvir novamente a voz  de tia Maria no Jardim São João. Com isso conseguiu voltar para casa, seis meses depois! Alberto, o pai adotivo, naturalmente não esperou para dar entrevistas. Ao perceber que o garoto havia conseguido burlar sua vigilância e se comunicar com a família, ele tratou de dobrar a serra do cajurú.

Renatinho retomou sua saudável rotina e está crescendo como todo garoto de periferia de cidade média, frequentando a escola, brincando na ruas do bairro… Mas perdeu completamente o gosto por mansões paulistas e nunca mais brincou de órfão. Agora vive quietinho no seu canto, na singela casinha da tia Maria no Jardim São João.

 

*** Essa história se desenrolou em 2002. Eu a contei pela primeira vez, no jornal FOLHA, em junho de 2004. O pequeno Renatinho não existe mais. Ele agora tem 32 e virou Renato.

Por onde andará o ‘ex-órfão’, ex-caçador de aventuras?

Sidraque… 20 anos de saudade

    Ele morreu porque seguiu a lei ao pé da letra!

Domingo amanheceu chovendo  em toda região. Sidraque voltava da feira tentando proteger a ele as sacolinhas de verduras e legumes debaixo do guarda-chuva  quando o cidadão o interpelou:

– ‘Seu’ policial, o ladrãozinho que roubou minha casa está ali no bar bebendo cerveja!

Domingo era dia de descanso semanal de qualquer trabalhador. “De qualquer trabalhador”, menos policial! E ele era policial! Policial é policial 24 horas por dia. Sete dias por semana. Foi assim que ele aprendeu na Academia. Sete anos atras, ao assumir o cargo de Detetive de Policia ele havia feito o juramento de servir a sociedade a qualquer momento em que fosse solicitado. Por isso prontamente adentrou ao boteco para abordar o delinquente. Ao vê-lo, sabendo que tinha culpa no cartório, o meliante passou sebo nas canelas e tentou dobrar a serra do cajuru.

Surpreendido com a reação do meliante, o policial pensou com as pernas e saiu nos seus calcanhares. A desenfreada perseguição pega-não-pega atravessou a rua e desceu por um loteamento deserto em direção ao ribeirão. Os curiosos que estavam no boteco, mesmo debaixo de chuva, correram para a rua a tempo de ver bandido & mocinho sumirem numa depressão do terreno na beira do ribeirão. De repente ouviram vários disparos …

– Meu Deus! O Sidraque matou fulano! – falou um dos curiosos.

Estavam a mais de cem metros do local de onde vieram os tiros. Continuaram olhando naquela direção até que viram o ladrãozinho aparecer do outro lado, subir o pasto e desaparecer atrás do morro. Tensos, ficaram na expectativa de verem o policial também surgir do outro lado. Mas o policial não apareceu… nunca mais apareceria. Ele ficou do lado de cá do ribeirão, estendido no chão molhado, morto com três tiros de pistola no peito!

Nunca soubemos com exatidão o que aconteceu entre o policial e o meliante naquela beira de ribeirão. Só o que se sabe é que o policial tinha uma pistola carregada na cinta, e seguiu a lei AO PÉ DA LETRA, enquanto o meliante, na primeira chance que teve, o matou com sua própria arma!

Policial de origem libanesa, nascido em Teófilo Otoni, Sidraque Correia da Rocha, além de policial exemplar e dedicado era músico, poliglota – falava razoavelmente sete idiomas – professor de grego, aramaico e latim. Nas horas de folga, se é que sobrava alguma, trabalhava de cabeleireiro, de dedetizador e de pintor de paredes – Quando chegou a Pouso Alegre em l996, pintou todo prédio da delegacia regional… e não recebeu um centavo por isso!

Ao morrer exercendo seu mister de servir a sociedade, estritamente dentro da lei, morreu o policial, morreu o pai de família, morreu o artista… Morreu um cidadão admirável.

Deixou como herança… boas lembranças por onde passou.

Meninos assassinos

Diariamente ela dobrava aquele morro de volta do trabalho! Até que certa tarde ela não chegou em casa…

Toda tarde ela passava por ali. Descia do ônibus no ponto final, defronte a Britasul, atravessava a cerca de arame farpado, pegava o trilho batido, por ela própria, subia lentamente o pasto, virava no cume do morro e descia margeando o capão de mato até chegar à casa dos pais do lado oeste do morro.

Era a única pessoa da família – e das redondezas – que fazia esse trajeto para chegar à cidade, a qual avistava de longe. O que a jovem não sabia é que seus passos lentos pasto afora eram observados por dois pares de olhos malvados, insensíveis e gananciosos! Até que certa tarde ela não chegou em casa.

Os pais perceberam sua ausência mas esperaram até a noite para saírem à sua procura. Começaram pelo salão onde ela trabalhava na cidade, mas estava fechado. Procuraram pelas colegas de trabalho, mas ninguém sabia seu paradeiro.

– Ela saiu um pouco mais cedo do trabalho, pegou o ônibus como sempre e foi pra casa – disse uma colega.

A jovem, bela e delicada cabeleireira não era sequestrável. Não tinha namorado, não tinha problemas familiares ou emocionais conhecidos. Seu desaparecimento era um mistério e, naturalmente foi levado ao conhecimento da polícia. Depois de uma noite de angústia e tensão, enquanto os homens da lei iniciavam os levantamentos de praxe, os próprios familiares saíram à sua procura. Junto deles estava um garoto, que fazia pequenos serviços braçais no sítio dos pais da cabeleireira. Começaram refazendo o trajeto que ela fazia todas as manhas a caminho do trabalho. Subiram o pasto e, na virada, decidiram adentrar o capão de mato. A cabeleireira estava lá! Estendida no chão, inerte, sem vida. A cena era chocante, tenebrosa! J. tinha o crânio fraturado… E faltava parte do rosto!

Segundo os peritos e o médico legista concluíram, os ferimentos na cabeça e o sangue atraíram a presença de bichos, ou talvez porcos do próprio sitio dos pais, e eles teriam comido parte do seu rosto! Além da violência na cabeça, a jovem tinha também marcas de estupro.

A rotina da jovem cabeleireira de 28 anos, moradora na grota do bairro Cemig, em Pouso Alegre, era bastante conhecida pelos moradores do bairro Faisqueira. Era ali que ela embarcava toda manhã e desembarcava toda tarde no ponto final do ônibus circular, de volta para casa. Subia o pasto, chegava ao cume próximo da pedreira da Britasul, avistava a cidade e descia os metros restantes até a casa dos pais. A investida da Policia Civil na busca do assassino começou por ali, interrogando moradores, comerciantes e qualquer pessoa que pudesse esclarecer o violento e horrendo crime.

A informação contundente veio de um vendeiro do bairro, perto da igreja. Segundo ele, na noite passada, dois fregueses que até então não tinham mais do que moedas para gastar na sua venda, haviam consumido grande quantidade de doces, salgados e refrigerantes. Os dois ‘fregueses’ da venda foram os primeiros a receber a visita dos homens da lei. Surpreendidos com a intempestiva visita dos detetives, com pouco mais do que um centavo de prosa eles abriram o livro… e confessaram o hediondo crime.

A bolsa da cabeleireira com documentos e demais pertences, prova material do sinistro, estava enterrada atrás de uma moita de bananeira no quintal da residência dos assassinos.

Ao piano do paladino da lei na DP os assassinos contaram com detalhes a dinâmica simples dos fatos. A abordagem, segundo eles, foi fácil, pois eram conhecidos da cabeleira. Quando ela dobrou o morro os dois pularam sobre ela e a arrastaram para o mato. Após quebrar seu crânio com uma pedra e tomar sua bolsa, abusaram do seu corpo e, como bichos do mato, a deixaram entregue aos bichos do mato.

A pena para o crime de Latrocínio, segundo o Código Penal, pode chegar a 30 anos. O estupro, segundo o mesmo código, chega a 10. Caso fossem maiores de idade, os dois irmãos poderiam se hospedar no Hotel do Juquinha por pelo menos 30 anos. E.N. o mais fortinho da foto acima e mais velho, tinha 16 anos. O menorzinho, N.M., o mesmo que trabalhava no sítio do pai da cabeleireira e fingiu ajudar a procurá-la, tinha 12 anos.

Após assinarem o 157 c/c 213, os pequenos latrocidas foram se hospedar na Febem de Sete Lagoas, onde, em tese, poderiam ficar até os 21 anos.

 

* O hediondo crime da cabeleireira aconteceu no início de dezembro de 1999.

Vendedores de Fazenda

Eles realizaram milhares de vendas… mas morreram na miséria!

 

A ‘loja’ era na calçada da Praça Senador José Bento, entre a esquina da Afonso Pena e a Casa Morato. Eram vários vendedores, mais de meia dúzia. Tinha o Zé Bonitinho, o Zô, o Osvaldo, o Zé Maria, o JMS, o Vicente. Todos modesta, porém bem-vestidos, sérios e boa prosa. Aliás muita prosa! Precisavam de muita lábia para vender seu produto! Aparentemente eram independentes. Mas na verdade ‘eram’ uma firma só! Metade deles eram vendedores… a outra metade eram compradores. De vez em quando se alternavam. Os clientes, muito fáceis de serem identificados, eram escolhidos à dedo. Geralmente usavam sapatões de couro cru, calça caqui ou parda de brim, camisa xadrez, ou de flanela se fosse inverno, sempre com a fralda pra dentro da calça deixando o cinto de couro cru à vista e, claro, chapéu de junco, de feltro ou mesmo de palha em cores discretas. Só faltavam levar uma plaquinha pendurada no peito escrito: “sou da roça”!
Os vendedores eram perspicazes e sutis.
Quando o potencial cliente passava, o vendedor não entrava na sua frente. Ele saia andando a seu lado exibindo seus produtos, exaltando suas qualidades e as vantagens de comprar dele ao invés de comprar na loja.
O próximo argumento, depois de conseguir prender a atenção do comprador, era falar da vantagem de comprar logo um lote de cortes de fazenda. Um corte custava sessenta cruzeiros. Dois custava 100. Se levasse cinco cortes, pagaria apenas duzentos cruzeiros.
Era nesse momento que entrava em cena o ‘novo cliente’! Ele parava, interrompia a conversa, tocava o tecido, elogiava e perguntava o preço.
Ao se inteirar de que o preço de um corte era 60 e que cinco cortes tinham desconto de mais de 40%, custando apenas 200 cruzeiros, o novo comprador fazia a proposta indecorosa ao capiau:
– A minha patroa me encomendou apenas dois cortes. ‘Se nós dois comprar junto, sai cinco por 200’. Você pode ficar com os outros três e cada paga cem cruzeiros…
Pronto! Era a proposta que faltava para convencer o capiau, homem simples da roça, a comprar o produto pela metade do preço da loja.
Concluído o negócio das fazendas, o sujeito que havia interferido na transação e levado os dois cortes por cem cruzeiros, dava a volta no quarteirão, tomava um cafezinho no Bar do Zé Cabral do outro lado da rua, passava sorrateiro pelo local, devolvia os dois cortes ao vendedor e pegava seus cem cruzeiros de volta.
No dia seguinte os papeis se invertiam: ele seria o vendedor e seu parceiro seria o comprador. Tudo farinha do mesmo saco.
Em dias de muito movimento, trocavam de papeis no mesmo dia. O comprador contornava a catedral, passava por dentro, pedia perdão aos santos pela trapaça, atravessava a rua se misturava aos transeuntes e seguiam, ele e os demais, enganando os capiaus de calças caquis e chapéus de feltro.
Mas o que havia de errado nisso? Nesse ardil para vender os cortes de fazenda?
Quase nada.
Exceto o fato de que na outra esquina da mesma praça, na Casa Senador e nas Casas Pernambucanas, tais cortes custavam o mesmo preço, mas eram produtos de primeira qualidade, abertos e cortados diante dos olhos do comprador. Os cortes de fazenda vendidos ali na rua mediante ardil, mediante trapaça, aproveitando da boa-fé dos homens simples nascidos ao pé da serra do cajuru, eram retalhos de cortes de péssima qualidade, alguns com defeitos, adquiridos à quilo na Rua 25 de Março ou na Maria Marcolina no Brás em São Paulo.
Eram os infantes e saudosos anos 70. Até então não existia roupas prontas. Os cortes de tecidos ou ‘fazendas’ cheirando a tinta e coisa nova, eram adquiridos nas Casas Pernambucanas, Casa Senador e outras poucas na Dr. Lisboa. Demoraria ainda algumas décadas para as centenas de lojas de roupas prontas aposentarem os alfaiates e costureiras da cidade.
Naquele início de década, eu, meninão de pés no chão, estava ali, bem na esquina onde hoje está o Edifício Teixeira, vendendo raspadinhas e brincando com os filhos do Dito Celeiro, os quais vendiam suas celas, cintos e arreios ao meu lado, no pé do poste da esquina. Do alto dos meus 11, 12 anos, eu assistia àquelas trapaças todo dia, curioso, porém sem entender o engodo. Eu não sabia os nomes daqueles fazendeiros, quero dizer, daqueles vendedores de ‘fazenda’, mas nunca esqueci suas fisionomias.
Vinte anos depois voltei a encontrar quase todos eles. Continuavam no ramo das trapaças… agora nas mesas de baralho.
Hoje, quase todos já partiram para o andar de cima… ou seria de baixo? Até onde eu soube, nenhum daqueles vendedores de fazenda dos anos 70 conseguiu mais do que três metros quadrados de terra para morar!

O fim do “poderoso chefão”

Mesmo sabendo que seria seu último banho de sol… ele foi para o pátio encarar a morte!

O dia 14 de julho de 2003 somente não entrou para a história do Velho Hotel da Silvestre Ferraz com duas mortes violentas porque, Gilson Bernardes, prevendo o que iria acontecer ao adentrar o pátio para o banho de sol, ficou bem próximo do portão. Quando começou o espancamento tivemos tempo de socorrê-lo antes que sucumbisse aos socos de Elias, primo de sua última vítima, assassinada a tiros alguns meses antes na Tijuca. E também porque Elias, até então, era pouco mais que um pé de couve, e fora para o banho de sol de mãos limpas.

Meia hora depois do quiproquó, com a segurança sempre falha e ainda mais debilitada, pois dois agentes tinham ido levar Gilson Índio, todo banhado em sangue ao P.S., novo agito no pátio! Ao adentrá-lo sozinho até uma distância segura além do portão, presenciei talvez a cena mais marcante dos meus vinte sete anos de carreira: os cerca de setenta presos andavam uns de um lado para outro; outros conversavam em pequenas rodinhas no centro do pátio como se nada estivesse acontecendo; alguns, encostados no muro, pareciam observar o sol morno da manhã. Três ou quatro ensaiavam gingas com uma bola de futebol puída pelo cimento rústico do pátio. A cena macabra que parecia não incomodar nenhum deles se desenrolava lentamente lá no fundo da improvisada quadra de futsal, fora do campo de visão de quem estava no portão. Chapeleiro, ou o que restava dele, deitado de costas no cimento corroído pelo tempo, dava seus últimos suspiros! A cavalo sobre ele estava Caveirinha com uma faca de cozinha de cabo branco cravada em seu abdome, girando-a em movimentos irregulares para ter certeza de que o ‘poderoso chefão’ não se levantaria! No estertor de suas forças Chapeleiro tentava segurar a lâmina prateada, até que os músculos pararam de reagir e ele ficou inerte. Quase inerte ficaram também os demais presos encostados no muro sabendo que nós iríamos intervir.

Na saída do pátio, desfigurado pelo esforço inútil para preservar a vida, desfigurado pelo sangue, pela falta de sangue, com os olhos negros fixos no céu azul, num caixão vermelho tosco e sem tampa do Corpo de Bombeiros, Chapeleiro arrastou dezenas de ‘ex-súditos’ para as grades das ‘ventanas’. Não era propriamente para despedidas. Era para ver como termina a história de um homem poderoso e errante. Ao passar pela cela das mulheres, algumas entre lágrimas próprias do sexo frágil… ou de crocodilo, esboçaram palavras do tipo:

– … Coitado, não merecia!…

E o cortejo fúnebre seguiu para o IML. Assim terminou a saga do mais poderoso chefão do velho hotel da Silvestre Ferraz.

O responsável pelo trágico e inevitável desfecho da carreira duplamente criminosa de Chapeleiro, e seu ‘pretenso’ sucessor, logo depois foi transferido para a Penitenciária Nelson Hungria em Contagem, de onde saiu anos depois, em paz com as leis dos homens. Mas esta já é outra história…

 

* In ‘“Chapeleiro”… O ultimo ‘chefão’ do Velho Hotel da Silvestre Ferraz’, pagina 269 do livro “Meninos que vi crescer”.

MISTÉRIOS E MORTES NO BUTECO!

Nove e meia da noite de sexta-feira, 20.

As mesas e estendiam desde a porta do pequeno e aconchegante buteco até a beira da avenida.

O movimento, por conta do show do outro lado da cidade, era pequeno. Talvez por isso ela resolveu atacar. Veio da rua e foi se esgueirando por baixo da mesa. Dava três ou quatro passos rápidos e parava… Por alguns instantes ficava imóvel. Apenas as compridas antenas se mexiam farejando a comida sobre as mesas… ou uma vítima, para assustar e ouvir seus gritos! De repente subiu na parede… e continuou se esgueirando furtivamente, no mesmo ritmo de antes. Dava alguns passos, parava e ligava as antenas… e assim foi se aproximando da mesa de um casal.

Edinho e a companheira conversavam animadamente de frente um para o outro, diante das canecas de cerveja e do delicioso prato de tudo um porco.

Na mesa ao lado, na diagonal, eu estava de costas para o casal. Tatiana estava de frente. Foi a única pessoa a notar a presença sorrateira e o ataque iminente da intrusa cor de pinhão! Tatiana, como a maioria das mulheres, morre de medo desse tipo de intrusa! Se fosse perto dela, teria jogado até a mesa pra cima de mim e saído correndo dali aos gritos.

Embora estivesse em relativa segurança, sua apreensão aumentou quando a intrusa se aproximou da cabeça da companheira do Edinho, até então um desconhecido. A qualquer momento a intrusa nojenta e asquerosa poderia pular no rosto ou nos cabelos da senhora e só Deus sabe o poderia acontecer!

Tatiana tinha que intervir, tentar salvar a senhora do ataque iminente… sem causar um pandemônio.

Apesar do medo, do perigo do ataque iminente daquelas garras sujas e nojentas, Tatiana se controlou. E teve ‘presença de espírito’… Interrompeu delicadamente a conversa com o butequeiro que contava aventuras gastronômicas ao nosso lado e lhe disse, com jeito:

– Peça àquela senhora para se levantar e vir até aqui, por favor!

Quando a senhora se levantou, a intrusa sorrateira se assustou e vou para o chão… e então foi notada por todos.

Num movimento certeiro, o ‘pisante’ 42 do Edinho acabou com a raça da intrusa traiçoeira. No segundo seguinte ela estava morta aos seus pés!

 

A morte abrupta da asquerosa intrusa ao pé da mesa acabou com o suspense no boteco!

 

Acabou com o suspense… mas começaram os assassinatos, os suicídios mal contados, os acidentes de avião e todo tipo de mortes violentas nos últimos dez anos na região. A conversa passou de baratas para ratos e em poucos minutos chegou ao IML e ao Blog do Airton Chips. Pronto! Acabou!… Aliás, começou.

 

– Nossa! Você é legista? – surpreendeu-se a companheira do Edinho.

– Então você é que é o Chips? Eu sigo você desde o tempo que você escrevia no jornal, quer ver? – disse Edinho manuseando o celular até chegar na minha foto.

 

E a conversa, tanto nossa quanto do outro casal, se estendeu.

Durante mais de hora matamos, enterramos e exumamos todo tipo de cadáver que passou pelo IML de Pouso Alegre. Desde a linda Larissa de Extrema, torturada, morta e jogada no abismo na Serra do Lopo em Extrema, passando pelo envenenado Silvio Santos de São Gonçalo do Sapucaí, até o esquartejamento em Silvianópolis em 2018. Tivemos que ressuscitar Fernando da Gata para contar um pouco da sua curta e malfadada passagem por Pouso Alegre em 82. Mais! Voltei à 1955 para esclarecer a verdadeira historia do Beco do Crime. É assim mesmo. Conversa de buteco com quem tem história para contar… e bons ouvintes, quase não tem fim. Até um cliente do buteco que estava de costas pra nós, numa mesa isolada, se virou para ouvir nossas histórias. A estadia no aconchegante buteco do Fernando, que era para encerrar antes das dez, passou das onze!   

     O surgimento da intrusa sorrateira no buteco, muito comum em estabelecimentos que servem na calçada, não trouxe nenhum tipo de prejuízo ao comerciante. Muito pelo contrário. Em quase duas horas a mais de resenha, tanto eu quanto o Edinho, tivemos que abraçar mais algumas loiras… geladinhas!

    Apesar das histórias tétricas e assombrosas ressuscitadas no buteco, entre mortos & feridos, além do porco que se transformou em deliciosos torresminhos e da gigante barata cor de pinhão, que voltou esmagada para o bueiro de onde saiu, todos se salvaram!

Girafa… “Filhinho de Papai”

Ele achava que ‘sua casa nunca iria cair’!

     Ele pertencia a outro mundo social. Vários anos mais novo do que Pardal ele entrou no crime pela porta aberta da droga. Filho de família de classe média – seu pai era funcionário público concursado e sua mãe dentista -, ele estudou em colégio particular e embora não desfrutasse de luxo, não lhe faltava conforto. Teve infância e adolescência tranquila ao lado de uma irmã mais velha.

Aos dezessete anos, no entanto, a vida ficou chata, sem graça, os pais lhe pareceram distantes, os amigos uma mesmice. Precisava sair do marasmo, procurar emoções novas, sentir alguma vibração, buscar alguma adrenalina!… A maconha estava à sua frente, sorrindo… de braços abertos! Era só abraçar. Sentiu seu perfume e seus afagos e se apaixonou. Era tudo muito passageiro… mas era ‘um barato’. Girafa fumou seus baseadinhos durante vários meses. À sorrelfa dos pais e dos amigos mais próximos, naturalmente!

Era fácil adquirir a erva proibida. Na própria escola ele conhecia alguns colegas sorrateiros, dos quais sempre mantivera distância, que vendiam. Tornou-se cliente assíduo deles. Com o tempo virou companheiro de ‘quebradas’!

Em casa não foi difícil esconder o novo hábito. Afinal os pais supriam todas suas necessidades materiais e não tinham tempo para cuidar das necessidades afetivas, das emocionais, das existenciais!… Por isso Girafa podia manter suas pequenas porções de drogas na própria mochila escolar, ou mesmo no seu quarto – o qual era visitado apenas pela diarista -, para usar quando quisesse.

Seis meses depois de adquirir o vício, a erva cheirosa já não dava mais tanto ‘barato’. Era preciso algo mais intenso, mais forte… e mais caro!

Aí começaram os problemas!

A mesada não era mais suficiente.

No início Sergio Girafa apelou para a mágica caseira para conseguir dinheiro. Com frequência fazia ‘desaparecer’ uma cédula ou outra da carteira do pai ou da mãe sem que ninguém percebesse.

Aos vinte anos Girafa sabia de cor e salteado os riscos que corria. E aprendera a viver com eles. Na verdade, zombava do perigo. Universitário, inteligente, boa pinta, boa família, ambicioso… Ele não achava que ‘sua casa poderia cair’!

– “Cana é para os outros, não pra mim”! pensava. E foi flertando cada vez mais com criminosos envolvidos com drogas e outros crimes.

Foi assim que Girafa, o universitário ‘filhinho de papai’, conheceu Popota e Pardal… e cometeram juntos vários roubos à mão armada!

Até que…

… Um dia amanheceu com os pés quase tocando o chão da cela fedorenta, pendurado pela ‘tereza’ na grade da janela. Acabava ali a ‘caminhada’ do ‘filhinho de papai’.

Tartaruga “Ninja”… O Justiceiro do Recanto das Margaridas

       Apesar da brutalidade do crime, ele recebeu calorosa acolhida dos ‘manos’ de caminhada!

Chegamos à fazenda do Alfredinho, no Pouso do Campo, quase dez da noite, debaixo de uma chuva torrencial que parecia querer impedir que fôssemos até lá. Chegamos porque na encruzilhada, dois quilômetros atrás, um amigo do fazendeiro nos esperava com os faróis de um fusca acesos para nos mostrar o caminho. Eu e o sempre animado, bem-humorado e falante perito Mario Luiz de Faria. A cena que vimos mais uma vez era de filme americano, não policial, mas de terror de quinta categoria, só que… era real!

O calçamento tosco de concreto da entrada do curral havia sido desfeito pelo bater constante dos cascos das malhadas girolandas e formara uma grande panela, transbordando lama, estrume, chuva, urina e agora …  sangue! Era impossível entrar na cocheira sem afundar até as canelas na poça fétida e macabra onde as mimosas certamente roçavam os úberes e tetas inchadas ao passar.

Era exatamente neste local que o defunto, em decúbito dorsal, muito pálido à luz das lanternas nos esperava… completamente nu!

Os ferimentos perfuro cortantes na região torácica e os corto contusos na cabeça, já estancados, contrastavam com a lama meio zinabre por causa da urina e do sangue, e o tornavam espectral. A cena era de terror!

Eu havia visto o carcereiro Marcos Alves numa poça de lama, numa viela do Aterrado com cinco tiros no rosto em 83; vi Anete Garcia, mãe dos meninos que vi crescer, Rodrigo e Reinaldo, com o peito perfurado à faca, pelo meu ex-vizinho Demetrius Macedo, no interior do banheiro no Jardim Vergani em 2001; vi meu ex-colega de exército Elcio Luiz dos Reis com o pescoço degolado e outra dúzia de golpes mortais, de faca, no tórax e no abdome na sala de sua aconchegante casa no Colinas de Santa Bárbara em 2003; vi o preso Totó no corredor do novo hotel do Recanto das Margaridas alguns meses antes, com sessenta ferimentos feitos à faca… Vi outros tantos casos de homicídio em que acompanhei os peritos mas,… se vi algum mais chocante e macabro,… não me lembro!

O assassino deu sua versão dos fatos ao patrão e dobrou a serra do cajuru sem me esperar para entrevista. Segundo o fazendeiro, ele estava com medo de ser preso, por isso abandonara o local. Ninguém na fazenda debaixo daquele diluvio soube informar quem era o defunto. Terminada a perícia ele foi descansar na geladeira do IML à espera que alguém dissesse ao menos seu nome…

Sem a identidade do morto e sem a presença do matador do curral, estávamos de mãos atadas, sem o fio da meada para esclarecer o macabro assassinato.

Na manhã seguinte eu estava correndo atrás de ciganos ladrões de cavalo quando o telefone tocou. Era o carcereiro do Hotel Recanto das Margaridas. Pensei logo o pior: “está acontecendo mais uma fuga no Hotel Recanto das Margaridas”! “Mataram mais um”!

Não.

Desta vez não havia morte e não havia ninguém saindo pelos muros ou tatús do presídio ‘modelo do Sul de Minas’.

Ao contrário!

Havia um sujeito completamente mamado, quase trôpego, delirando, querendo “entrar” no presidio! Querendo ser preso… dizendo que havia matado um sujeito no seu curral na noite passada!