O Triste fim de Margarida Leite!

Durante mais de ano ela visitou seu algoz na cadeia!

Antes de voltar à liberdade, Faissal recebia Margarida na velha delegacia.

Toda quarta-feira ela estava lá. Era uma das primeiras a chegar para a visita no Velho Hotel da Silvestre Ferraz. Vinha na charrete do Chico Pé de Pano. Duas horas depois o mesmo charreteiro voltava para buscá-la. Eventualmente ficava esperando por ela. Eventualmente também, depois da visita, ela descia a Herculano Cobra ou a Com. José Garcia para fazer pequenas compras e depois pegava a mesma charrete atrás do mercado para voltar pra casa.

 

Era uma bela e discreta mulher. Alta, clara, cabelos longos ondulados. Vestia com sobriedade. Usava sempre vestidos longos claros com discretas estampas coloridas. Apesar da discrição, orelhas, pescoço, mãos ostentavam brilhantes joias, rejuvenescendo sua sexagenária pele e denotando seu status financeiro. Sua figura poderia ser confundida com a mulher do prefeito ou até do deputado…  Passava dos 60 anos, mas não deixava de atrair olhares cobiçosos e até… libidinosos!

 

“Quem será que ela vai visitar”? pensava quem a via pela primeira vez na fila de triagem na entrada da cadeia. Seria algum irmão! Um filho? Um neto?

 

Fosse quem fosse, ela devia amá-lo muito para sujeitar-se à humilhação de visitá-lo toda semana na cadeia. Que crime teria cometido o ingrato salafrário para levar tão distinta figura à aquele antro de perdidos!

 

Estelionatos!

 

Mohamed Faissal era alto, forte, moreno, bem moreno, quase mulato… resultado típico da miscigenação de raças que compõe o povo brasileiro. Não se sabe quantos anos havia sentado no banco da escola, se tinha algum diploma… Mas tinha muita cultura, muito conhecimento e usava seus conhecimentos, inclusive jurídicos, para convencer as pessoas a atender seus interesses… mesmo que fossem ilegais!

Foi assim que com menos de trinta anos Faissal foi parar no velho Hotel da Silvestre Ferraz, no final dos anos 70.

 

A visita era coletiva, dentro das celas. Em dias de visitas os presos limpavam o ‘apartamento’, empilhavam os pertences, otimizavam o espaço, tomavam banho e se enchiam de expectativa para receber seus entes queridos. Uma visita por vez para cada preso.

 

Além da sua respeitável, sedutora e perfumada presença, Margarida levava também mimos tais como chocolates, bolachas, cigarros e, claro… ‘dim-dim’ para o seu amado!

 

Não demorou muito, Faissal, com sua lábia peculiar, conquistou a liberdade intramuros. Foi ‘promovido’ a ‘cela livre’! Desde então passou a receber sua distinta visita semanal numa sala separada da carceragem.

 

Alguns meses depois o bonitão moreno, educado e articulado, ganhou mais uma ‘promoção’… Virou faxineiro na delegacia! Sua sessentona e bela visita passou a ser recebida ali. Ficavam um longo tempo sentadinhos num banco deserto lá num fundo da delegacia. As vezes Margarida chegava mais cedo… e ficava no hall conversando com o Inspetor Angelo, seu amigo de longa data.

 

Algum tempo depois Faissal chegou ao terceiro estágio da liberdade… Ganhou a liberdade condicional! E voltou definitivamente, sem amarras, para os braços de Margarida.

 

Durante décadas a Rua David Campista, foi uma das ruas mais alegres e movimentadas de Pouso Alegre. O movimento, no entanto, era noturno. Começava ao pé da noite e varava a madrugada. Desde às sete da noite desfilavam por ali viajantes, aventureiros, homens mal-casados, jovens solteiros, adolescentes muitas vezes levados pelos próprios pais para provar a masculinidade, todos em busca de sexo! Ao longo de três quarteirões as casas, a maioria simples, com suas luzes vermelhas, convidavam a clientela. A atração principal da casa – loiras, ruivas, morenas, jovens, outras nem tanto – muitas vezes exibiam seus dotes no portão, tentando atrair os sedentos de amor!

A Rua David Campista, na região central da cidade, era conhecida pelo sugestivo e romântico nome de … Rua da Zona!

 

Logo no início, afastada da beira da rua, ficava a boate da Margarida. Era a casa mais festiva, mais discreta, mais elitizada da Zona! A primeira que inundava a vizinhança com suas músicas apaixonadas e a ultima que fechava. Foi ali que Faissal conheceu e se enamorou de Margarida. E dos seus dotes financeiros. Tornou-se seu Gigolô!

 

Durante o tempo em que esteve hospedado no Velho Hotel da Silvestre Ferraz, Faissal reduziu muito sua despesa. Lá ele tinha cama, comida e roupa lavada por conta do contribuinte. Ao retomar a liberdade seu custo de vida subiu. Os mimos que antes recebia da sua distinta visita na cadeia já não eram suficientes. Era necessário mais… E começaram os atritos entre o casal!

 

Certa manhã, no inicio da década 80, ao chegar para trabalhar encontrei a delegacia ligeiramente agitada. O Inspetor Angelo, sempre um dos primeiros a chegar, estava apreensivo e acabrunhado. Uma amiga sua havia sido assassinada! Ângelo foi um dos detetives que acompanhou o perito ao local do crime. Mais tarde eu soube que ele ficou à distância, não passou da sala. Não teve coragem de entrar no quarto da bela e distinta senhora com quem tantas vezes conversou no hall da delegacia enquanto ela aguardava o horário de visitas. Segundo o perito, o corpo de Margarida tinha mais de uma dúzia de lesões provocadas por golpes de faca.

Faissal nunca mais foi visto na cidade!

Silvio Santos foi envenenado e enterrado vivo

      Sua esposa confessou o macabro crime!

Sentada confortavelmente na sua cadeira de couro com encosto alto, com ambas as mãos apoiadas nos braços da cadeira, a promotora quase precisou segurar o queixo para que ele não caísse com o que acabara de ouvir. Diante dela, no final do expediente de terça-feira, a polêmica advogada defensora dos direitos humanos, não viera defender um cliente… viera fazer uma confissão!

– Minha filha matou meu marido! Eu a ajudei a enterrá-lo. – disse ela sem alarde, como se estivesse falado de uma receita de bolo de maracujá!

A mui digna representante do Ministério Público, afundou-se na poltrona, como se quisesse afastar da mesa, da confidente… Com os olhos bem abertos pregados na causídica, emparelhou os neurônios, fez força para manter o maxilar quieto e disparou:

– Como é que é? A Sra. pode repetir o que disse, por favor!

– Então doutora… A sra. conhece meu marido. Ele toma remédio controlado. Ele estava muito agitado. Quando eu tentei lhe dar o remédio, ele ficou agressivo e começou me agredir. Como minha filha tentou me defender ele passou a agredi-la também! Chegou a dar-lhe um golpe com uma pá. A ferramenta atingiu a perna dela. Para nos defender minha filha teve que segurá-lo pelo pescoço, tipo ‘mata-leão’.

A promotora escutava atônita.

– Foi muito tenso – continuou a advogada. Ele tentando se soltar para nos agredir, ela tentando segurá-lo pelo pescoço, até que ele finalmente ficou sem forças, caiu no chão e ficou imóvel. Nós ficamos com muito medo. Ele não se mexeu mais, foi ficando roxo, frio. Quando a gente viu… ele estava morto!

A guardiã da lei engoliu em seco, retirou as mãos dos braços da poltrona recoberta de couro, apoiou-as sobre a mesa inundada de papeis, livros e processos, e quando articulou o queixo para fazer outra pergunta, a advogada prosseguiu:

– Nós fizemos uma cova no quintal ao lado da casa e enterramos meu marido lá…

Perplexa, a promotora precisou de alguns segundos para recuperar o fôlego antes de perguntar:

– Mas… por que vocês não chamaram a polícia, não chamaram a ambulância, não pediram socorro…

– Não adiantava mais chamar o Samu… ele já estava morto! Quando minha filha viu o pai morto ali no chão, ela entrou em pânico! Ela disse que se eu chamasse a polícia ela se mataria!

Ainda sem ter certeza se acreditava ou não naquela macabra história, a promotora perguntou.

– E por que não me procurou antes?…

– Eu estava cuidando da minha filha, doutora. Ela ficou muito abalada. Primeiro eu tinha que cuidar de quem estava vivo, depois fui cuidar do morto! – Respondeu como se estivesse seguindo um rito processual.

– E onde ela está sua filha agora? Por que ela não veio com a Sra.?

– Eu a internei doutora. Minha filha está se tratando numa clínica psiquiátrica no Vale do Paraíba.

– Meu Deus!!! E quando foi que isso aconteceu, criatura! – indagou a promotora

– Foi no final do mês passado… faz uns dez dias.

– E onde está o corpo do seu marido agora?

– Está lá, doutora… enterrado numa cova rasa no quintal, perto da janela…

 

Este caso, verídico, aconteceu na histórica e pacata São Gonçalo do Sapucaí. O restante da história está no livro “Quem Matou o Suicida”.

“O dia em que dormi com Pelé”

“Nós pulamos juntos para cabecear a bola, eu era mais alto, saltava mais. Quando pisei de volta no chão, olhei espantado para o alto e Pelé continuava lá, cabeceando a bola. Era como se ele conseguisse ficar em suspensão pelo tempo que quisesse.”

 “Tentei me convencer de que ele era de carne e osso como todo mundo. Eu estava errado.”

Assisti a todos os jogos da Seleção Canarinho na Copa de 70, na tv preto-e-branco na casa do meu vizinho, no alto da rua São João. Esse foi meu primeiro contato com o mundo magico do futebol. De cara assisti às magias do maior jogador de futebol do mundo em todos os tempos. Em 78, quando a tv, ainda preto-e-branco, entrou na minha casa, o Rei já havia pendurado as chuteiras! Que pena! Pra mim Pelé poderia ter jogado na seleção até os 50, 60 anos!

 

Consumidor inveterado de notícias de telejornais, naturalmente acompanhei pela TV o drama do Rei Pelé e sua família até a morte do seu corpo no dia 29 passado. Antes mesmo do desencarne, o qual eu sabia que seria inevitável por aqueles dias, passei a perguntar a mim mesmo qual o tamanho da homenagem que a mídia nacional e estrangeira faria ao nosso rei.

Hoje tive a resposta.

Recebi do amigo Kenith um texto da lavra de João Moreira Sales, que mostra a real dimensão do que foi Pelé, o Rei do Futebol. Trono do qual nenhum outro jogador do mundo, por mais magico ou fenomenal que seja ou tenha sido, sequer chegou perto!

O texto é longo. Se você não gosta de ler, não perca tempo começando.

Mas se você gosta de ler e entende o que lê, vale a pena usar dois ou três minutos para viajar no tempo e saborear o que o documentarista e fundador da Revista Piauí, após uma noite de insônia pensando nele, diz sobre o nosso Rei.

 

“O DIA EM QUE DORMI COM PELÉ

Numa noite de insônia, a gente se dá conta do que perdeu e ganhou com a morte do Rei

04jan2023_11h22

JOÃO MOREIRA SALLES

 

Pouco depois da meia-noite de 31 de dezembro eu já estava deitado, mas só adormeci por volta das cinco da manhã. Não foram os fogos nem os foliões do lado de fora que me mantiveram acordado. Foi Pelé. Ou, para ser mais exato, o que Pelé me fez pensar. A notícia havia chegado dois dias antes, e, do dia 29 de dezembro até a noite da virada do ano, eu, como milhões de pessoas, passaria horas tentando compreender a dimensão dessa morte, o tamanho do que vinha de desaparecer.

 

Logo ficou claro que a comoção não era só nossa, brasileira. A edição internacional do New York Times publicou um artigo tocante de José Miguel Wisnik na dobra superior da capa. O obituário ocupou toda a página dois – cinco fotografias, seis colunas, do alto ao pé da versão impressa. O francês Libération deu capa e quatro páginas, logo as quatro primeiras, em geral tomadas por assuntos políticos. No jornal esportivo L´Équipe, foram 24 páginas. Até o Financial Times, que provavelmente se interessa mais pela cadeia produtiva da bola do que pela bola, pôs Pelé na capa.

 

Um amigo, o n. 1, me escreveu o seguinte: “Eu tenho chorado de forma intermitente desde ontem. É arrebatador. Não tinha ideia de que seria assim.” A confissão veio acompanhada da capa do jornal italiano Domani, na qual se lia: “Morreu Pelé, o homem que inventou o Brasil” – “A manchete definitiva”, cravou esse amigo, “porque o Brasil que o mundo aprendeu a amar (feliz, criativo, majestoso, quente e tolerante) não existiria sem a ascensão de Pelé.” Do amigo n. 2 recebi um e-mail intitulado “A melhor capa veio da Bolívia”. Era do diário La Razón: “Murió Pelé, el fútbol se queda con 10” – um achado de difícil tradução, querendo dizer que dali em diante o futebol viveria para sempre com uma ausência em campo, não mais onze jogadores por equipe, apenas dez, o número da camisa do Rei.

 

Nenhum brasileiro jamais mereceu tratamento igual, nenhum causou tanto espanto. Por essa medida, então, Pelé foi o maior de todos os brasileiros, mas a prova dos nove, claro, está no que ele fez em campo. De certa forma, está nas imagens que sobreviveram, está nos arquivos de sua arte.

 

Eu não vi Pelé jogar. Tinha oito anos em 1970 e, por motivos que não vem ao caso explicar, não assisti aos jogos da Copa do Mundo do México, apesar de tê-los vivido intensamente. Ir atrás dessas imagens significava rever as jogadas mais clássicas de Pelé, aquelas que vivem na memória de qualquer amante do futebol, quase todas da Copa de 70, mas também, e talvez principalmente, descobrir o que ele fazia de forma rotineira nas partidas menos vistosas de sua carreira. Do amigo n. 1, dei a sorte de receber um fio de Twitter com “estatísticas desconcertantes e dois vídeos sensacionais”. Foi esse fio que vi e revi.

 

Muita gente se pergunta se Pelé conseguiria se impor no futebol de hoje, um esporte mais rápido, mais técnico e mais exigente fisicamente. Basta meia hora assistindo às suas jogadas para concluir que a pergunta não faz sentido. É exatamente o contrário. O certo seria perguntar se os grandes jogadores de hoje conseguiriam jogar tão bem nas condições de antigamente. Walter Casagrande, outro que se emocionou ao se recordar de Pelé, desmontou rapidamente a ideia de que hoje Pelé não seria Pelé. Tudo era mais precário na época em que ele jogou. As chuteiras eram pesadas, a bola deixava de ser redonda à medida que o jogo corria, a arbitragem não tinha instrumentos para coibir a violência. Cartões amarelos e vermelhos foram introduzidos apenas na Copa de 1970, e ao craque daqueles anos cabia não só a tarefa de levar o time à vitória, mas também a de sobreviver às pancadas recebidas ao longo de 90 minutos. Era jogo e era luta.

 

Isso sem falar nos campos. As imagens são impressionantes. Alguns jogos aconteciam não em gramados, tampouco em relvados nus, mas em lamaçais. Nos casos mais extremos, quase pântanos. Apesar disso, lá está Pelé, conduzindo a bola como quem passeia o seu cão bem treinado. A bola segue fielmente o pé, obedece, não foge.

Todo o repertório do futebol moderno parece estar à sua disposição, do arranque de Mbappé, ao drible curto de Messi, ao empuxe balístico e obstinado de Ronaldo Fenômeno em direção ao gol. No artigo para o NYT, Wisnik resumiu com precisão esse repertório:

Ninguém reuniu como ele as capacidades do drible e da velocidade, do chute com as duas pernas, do cabeceio preciso e fulminante, do jogo rasteiro e do jogo aéreo, do senso mágico do tempo de bola, do entendimento instantâneo do que sucedia à sua volta, tudo baseado numa constituição atlética vigorosa e rigorosamente equilibrada. Mesmo assim, o efeito-Pelé não se resume a uma soma, ainda que única, de habilidades quantificáveis. Um poeta e ensaísta observou que ele parecia arrastar o campo consigo, como uma extensão de sua pele, em direção ao gol adversário […] A beleza e a inteligência do corpo em ato, mais o olho de lince e a imprevisibilidade do pulo do gato, faziam com que Pelé parecesse funcionar numa frequência diferente da dos demais jogadores, assistindo em câmera lenta ao mesmo jogo do qual estava participando em alta velocidade, enquanto outros, em torno dele, pareciam estar, tantas vezes, assistindo ao jogo em alta velocidade e jogando em câmera lenta.

 

Pelé tinha a intuição de como o espaço se configuraria no instante seguinte, e assim construía a jogada não para a situação presente, mas para a situação futura, sabendo antes onde todos estariam dali a pouco. Além do drible, dominava também a finta, a forma mais bonita do engano, na qual a bola fica onde sempre esteve e é o corpo que sugere o movimento que não fará, levando o adversário a correr para o lado onde encontrará apenas o vazio, ninguém.

A finta é questão de espaço – sugere que o caminho é por aqui, quando na verdade será por lá. Pelé também era capaz de fazer o diabo com o tempo. Um dos seus movimentos mais típicos era abrir o compasso das pernas, deixando a bola no centro delas, enquanto os defensores, como uma matilha de lobos, se aproximavam de todos os lados, prontos para o bote. Pelé então inclina o corpo, anunciando a arrancada – que não vem. A perna de controle – que pode ser a direita ou a esquerda, pois ele tinha as duas – se aproxima da bola, mas nada faz, vibra apenas, afirma a potência sem entregar o ato. É como um respiro no tempo, uma pausa – uma pausa não, uma suspensão. Lembra a fermata musical, aquele momento em que, na tensão crescente, a orquestra interrompe a música e produz um hiato – o silêncio antes da resolução. Pelé faz isso com o jogo. Os outros 21 jogadores, talvez hipnotizados, talvez com medo de tomar a decisão errada, são forçados a parar, como se num tableau vivant. Tudo é interrompido e reorganizado segundo o desejo de Pelé. Ele faz com o tempo e o espaço o que a gente faz com um chiclete: comprime, expande, estica, aperta.

 

Rory Smith, repórter de futebol do NYT, reproduziu no jornal algumas histórias de jogadores que receberam a tarefa de enfrentar Pelé. “Nós pulamos juntos para cabecear a bola”, disse o zagueiro italiano Giacinto Facchetti, “eu era mais alto, saltava mais. Quando pisei de volta no chão, olhei espantado para o alto e Pelé continuava lá, cabeceando a bola. Era como se ele conseguisse ficar em suspensão pelo tempo que quisesse.” Tarcisio Burgnich, companheiro de Facchetti, sintetizou: “Tentei me convencer de que ele era de carne e osso como todo mundo. Eu estava errado.” O goleiro Costa Pereira cruzou o caminho de Pelé numa final entre o seu Benfica, campeão europeu, e o Santos, campeão sul-americano . “Entrei em campo esperando parar um grande homem”, contaria depois. “Deixei o campo convencido de que fui superado por alguém que não tinha nascido neste planeta como o resto de nós.”

 

Então, foi isso o que se perdeu, e a constatação dessa perda, da sua dimensão, foi o que tirou o sono na noite de ano-novo?

Não exatamente.

“E mais uma coisa”, escreveu o amigo n.3: “Deve ser [a soma de] tudo o mais que acontece neste país atrapalhado, mas o Pelé ter desaparecido me dá uma tristeza… Não pensei que fosse ficar assim. Mas fiquei.” Ao que respondeu o amigo n. 4, o último deste relato: “Não desapareceu, não, reapareceu (e apareceu) para os olhos de milhões. O fio que o João mandou” – eu circulara o tuíte mandado pelo amigo n.1 – “é impressionante.” O amigo n. 4 estava certo: a chave é esse reaparecimento de Pelé.

 

Tom Jobim dizia que o Brasil amava Garrincha, mas precisava aprender a amar Pelé. De fato, gostar de Garrincha é mais fácil. Garrincha é trágico, foi explorado em vida e morreu precocemente, bêbado e triste. Garrincha não desafia quem o admira. Foi imenso durante certo tempo, mas voltou para o nosso plano e terminou na nossa escala. Essa queda permite que seja amado com piedade, esse sentimento essencialmente hierárquico em que o piedoso olha do alto para o objeto de sua compaixão. Compadecer-se da dor de Garrincha faz bem à autoimagem. Estamos do lado de quem sofre, somos boas almas.

 

Amar Pelé foi sempre mais difícil. Pelé jamais caiu. Ao contrário, subiu, subiu e lá ficou. É uma altura que oprime. Sendo impossível não gostar do jogador, o homem se tornou o alvo. Edson Arantes do Nascimento, o inocente útil que serviu aos interesses da ditadura; a celebridade ingênua que, sem falar de política, pedia que o Brasil cuidasse das crianças nas ruas. (Na época parecia demagogia, mas, como escreveu Paulo César Vasconcelos no Globo, “o tempo passou, e os bisnetos daquelas crianças continuam nas ruas”.) Pelé era mais admirado do que amado.

Mas aí é que está. Como observou o amigo n. 4, nos dias que se seguiram à morte de Pelé, nos demos conta não do que desapareceu, mas do que nos foi presenteado. A suprema beleza do que ele fez em campo, a alegria que deriva dessa beleza, isso é nosso, nos pertence. Por causa dele, o Brasil se tornou a referência máxima do esporte mais popular do mundo. Um dos nossos dominou o jogo como nenhum outro. Uma supremacia que não se assenta em armas ou truculência, mas em brincadeira e graça.

Sempre foi esse o seu dom, e, como lembrou Wisnik no NYT, nada disso estava desconectado do Brasil: “Já se disse que um gol de Pelé, uma curva arquitetônica de Oscar Niemeyer e uma canção de Tom Jobim cantada por João Gilberto soavam então como ‘promessa de felicidade’, da parte de um exótico país marginal que parecia oferecer ao mundo a passagem leve e profunda da linguagem popular à arte moderna sem arcar com os custos da Revolução Industrial.”

 

Esses dias mostraram o que já parecia esquecido: que o Brasil é capaz disso.

 

E que a reaparição fulgurante do seu legado tenha se dado quase simultaneamente a este outro evento – a fuga, a bordo de um avião da FAB, do que o Brasil tem de pior – iluminou, com uma clareza que chega a cegar, aquilo que ainda podemos ser e aquilo que precisamos desesperadamente evitar.

 

Pelé promete, sim, essa felicidade que ainda nos cabe cumprir. Nada está dado, tudo ainda é possível. É uma constatação que acelera o pulso, que causa euforia e explica uma noite de insônia durante a qual, de olhos fechados, alguém, num quarto escuro, com festa do lado de fora, compreende que Pelé é mesmo tudo o que dizem e conclui que, se ele é daqui, se foi um dos nossos, então o Brasil jamais estará perdido”.

Perseguição no Costa Rios

Em meio aos gritos do meu parceiro com o trabuco na mão, eu podia sentir o roçar do cano do 38, ora na minha orelha, ora nos meus cabelos!

Era uma ensolarada manhã de outono. Subia eu a Avenida Prefeito Olavo Gomes de Oliveira, quando na curva do japonês o tirocínio policial disparou!… Defronte o Posto Pantanal descia um sujeito de bicicleta! Ao avistar o golzinho preto & branco dos ‘zomi’, o sujeito que vinha na banguela puxou a aba do chapelão de palha na cara tentando esconder o rosto. Meu parceiro, com poucos meses de polícia e seu sotaque paulistano, nem se deu conta do ‘detalhe’. Mas eu, polícia ‘véio’, notei o gesto discreto do chapeludo e mantive os olhos grudados nele. Quando passou por nós ele deu uma discreta olhadinha… para conferir se estavam procurando por ele ou, talvez, apenas para ver se eram policiais conhecidos! Diminuí a marcha e continuei com os olhos grudados no chapeludo… Pelo retrovisor! Metros abaixo, defronte o Vinícius Meyer, ele deu uma discreta olhada para trás! Estava devendo!!!

Antes que ele virasse a próxima esquina para entrar no Costa Rios, eu invadi a pista contrária, passei pela borda do posto do Armando e desci de volta em direção ao Aterrado! O chapeludo entrou na primeira esquina! Eu entrei na segunda… Mesmo assim, apesar de estar pedalando, ele tinha vasta dianteira e saiu na minha frente na esquina da primeira rua do Costa Rios paralela à Avenida do Aterrado! Emparelhei com ele.

O que aconteceu nos minutos seguintes eu nunca soube definir se foi cômico ou se foi trágico! Quando virei a viatura cantando pneu e iniciei a perseguição, naturalmente comentei com o novato, que se tratava de um suspeito em potencial… A sacolinha que ele levava presa ao guidão da bicicleta na mão esquerda poderia ser um tijolo de ‘erva marvada’, um quilo de ‘pedra bege fedorenta’ ou ‘farinha do capeta’, ou outra rés furtiva qualquer! Ou então o chapeludo era fugitivo! Por isso, tão logo iniciamos a perseguição, meu parceiro empunhou o trezoitão.

Quando me aproximei, o fujão da bicicleta optou pela minha esquerda… Aí é que morava o perigo!…

Enquanto eu tentava ‘fechar’ o ‘biker’ fujão, meu ‘parça’ gritava histericamente com seu sotaque paulistano:

– Para mano! Porra meu, não tá vendo que é cana, caralho!… Para senão eu vou atirar, meu! Porra, mano!

Em outra circunstância eu teria dado gargalhadas do palavreado do meu parceiro, mas naquele momento não tinha graça…

Enquanto berrava ordens, como se estivesse numa ruela centenária da Mooca, o detetive ‘grão’ sacudia sem parar o trabuco na direção do suspeito! O problema é que entre o trabuco e o fujão… estava eu ao volante! Mais precisamente minha vasta cabeleira começando ganhar tons de cinza!

Enquanto ouvia:

– “Porra meu, tá maluco mano! Eu vou atirar caralho”… – Eu podia sentir o roçar do cano do 38 niquelado ora na minha orelha, ora nos meus cabelos!

O clímax da perseguição aconteceu na penúltima esquina do bairro antes de virar para entrar no Aterrado pela porta dos fundos! Quando ele vacilou para entrar à esquerda eu encostei o para-choque do gol na traseira da bicicleta e o joguei ao chão!

Neste momento o novato quase se apoiou no meu ombro com o revolver encostado no meu peito para alvejar o fujão! Se ele puxasse o gatilho, pelo menos meu bigode ficaria chamuscado!

Transeuntes, aposentados, ciclistas pararam para assistir o imbróglio! Muitas donas de casa deixaram o feijão queimar naquela manhã! Mas tinham que satisfazer a curiosidade! Uma bicicleta meio amassada debaixo de uma viatura policial; uma sacolinha branca caída ao lado; toda aquela gritaria do policial num linguajar que mais parecia o de outro bandido, valiam ‘ingresso’!

– Porra, meu, não respeita polícia não, caralho? Vou atirar, maluco… Vai parar ou não?

Parou!

Não de medo das ameaças do policial ‘mano’, mas parou! Parou dois quarteirões depois, quando eu coloquei uma das mãos suadas na sua camisa! Meu parceiro do ‘caralho’, ainda com a porra da ordem na boca, chegou nos segundos seguintes.

Eu não o conhecia. Quando saí de Pouso Alegre na década de 80 as figurinhas do meu álbum eram Carlinhos Blau-Blau, Cirilo Bola Sete, Ailton Franklin e outros. Mas a julgar pela recusa da minha carona e desobediência às ordens da porra do meu parceiro, certamente era figurinha fácil no álbum da polícia! Quem dá um pinote dos ‘zomi’ como o diabo foge da cruz, não deve apenas um quilo de asinhas de frango ou uma magrela velha!

Ao consultar nosso ‘álbum’ de fichas amarelas – aquele mesmo que havia sido montado pelos colegas Ângelo e Décio nos anos 70 – com propaganda do “Hotel Lydia” no rodapé – não tardou aparecer a foto de um sujeito moreno, olhos negros, cabelos espandongados com o nome “Cristiano Dias”! Sua capivara incluía furtos, roubos e tentativas de homicídio, cujas penas somadas lhe garantiriam décadas de hospedagem gratuita no Hotel do Contribuinte. Estava ‘pedido’!

Cristiano, no entanto, não chegou a criar raízes no Hotel do Juquinha. Naquele mesmo ano sua gorda capivara no arquivo da polícia recebeu uma tosca cruz feita manualmente com pincel atômico vermelho!… Estava encerrada sua carreira criminosa!

Meu ex-‘parça’, “paulistano da Mooca, meu”, nunca aprendeu o ‘mineirês’ – e outros valores básicos inerentes à ingrata, porém honrada profissão policial. Ele também não criou raízes do lado de cá da lei…

Mas essa já é outra história!

 

*** Essa história completa, com o título “Um ‘puta’ bandido e um ‘porra’ policial”, começa na página 355 do livro “Quem matou o suicida”.

O Juiz e a Delegada…

       O imbróglio aconteceu por que a delegada de plantão não reconheceu a assinatura do Homem da Capa Preta no Alvará e se recusou a cumprir o ‘mandamus’!

“Quinze minutos depois um cidadão entrou no gabinete da delegada de plantão. Entrou sem bater. Tinha os poucos cabelos brancos em desalinho, usava camiseta verde, surrada, bermudão de moletom claro bastante jongolhó e chinelos tipo croc escuro – traje muito apropriado para sair na varanda no meio da noite para ver a lua cheia! – Parecia que havia acabado de sair da cama! Trazia na mão a mesma folha de papel que o advogado saíra levando minutos antes: era o mesmo ‘Alvará de Soltura’ manuscrito no restaurante nos primeiros minutos da madrugada – só estava, propositalmente, mais amassado!

O velho magistrado, do qual não se tem notícia de que algum dia tenha esboçado algum sorriso a alguém em seu gabinete ou em qualquer relação profissional, era puro siso. Sua carranca natural, agora acentuada pela insatisfação de ver sua ordem questionada obrigando-o a ir à delegacia àquela hora, inundou o gabinete da delegada.

O soldado que estava próximo à porta quase bateu continência! A escrivã, como a maioria dos policiais de baixo clero, que conhecia a figura, no mínimo soturna do Homem da Capa Preta, pareceu encolher atrás da tela do computador.

Até o ‘dimenor’, debochado e desafiador sentado diante da mesa da delegada, se encolheu e baixou os olhos. Sabia que a tempestade estava iminente…

Enfim, todos, se fossem tartarugas teriam se recolhidos em seus cascos. Melhor ainda se fossem tatu-bola… assim poderiam se enrolar no casco e rolar devagarinho para fora do gabinete.

Todos menos a delegada! Ela se manteve altiva e desafiadora!

Embora, de fato, não conhecesse o magistrado cuja assinatura aparecia no rodapé do manuscrito, sabia que estava diante dele!

Contrariando a lógica das lógicas, o juiz não foi à delegacia de polícia no meio da madrugada atestar pessoalmente a veracidade da própria assinatura e determinar a soltura do seu – até poucas horas antes – tutelado… Ele foi questionar a ousadia, digo, a ‘desobediência’ da delegada de plantão.

O diálogo travado nos minutos seguintes entre as duas autoridades, foi inenarrável. Não teve palavras de baixo calão, cacofônicas ou sequer pejorativas… Mas teve cobras, lagartos, lagartixas, aranhas e fel, muito fel! O diálogo não poderia ser mais inamistoso… e belicoso!

“Quem era aquela delegadinha de roça que não conhecia o grande e veterano magistrado e desobedecia a sua ordem? Quem era ela para questionar sua assinatura”?

“Quem era aquele senhor, quase em trajes íntimos, para invadir seu gabinete, durante um estafante e modorrento flagrante de inimputável, para impor sua… arrogância”?

Quem, dos corredores ouviu, curioso, ressabiado ou amedrontado, a conversa, garante ter ouvido ‘alto e bom som’:

– “Quem você pensa que é para invadir meu gabinete a essa hora”?

– “Você sabe com quem está falando?”

-“Posso prendê-la por desacato…” – teria ameaçado o magistrado.

-“… E quem vai cumprir a ordem”? – teria desafiado a delegada.

A troca de farpas & espinhos entre o Juiz e a delegada no gabinete a portas abertas retumbava nos corredores, livre, pesada e solta para quem quisesse ouvir… e se proteger das faíscas!

E a tensão aumentando… Prestes a pegar fogo!

O advogado – que ao ligar para o magistrado havia colocado uma boa dose de pimenta malagueta nos argumentos contra a delegada – mantinha certa distância do fogo cruzado, e já se arrependia do seu ato.

Sim… Nenhum dos dois abria mão de sua autoridade! Ou quem sabe dos seus egos! De suas teimosias…

O velho juiz, a mais alta autoridade judiciária na comarca, acostumado a ver delegados curvados à sua frente, além da sisudez de magistrado, levava na algibeira da bermuda jongolhó um pequeno trabuco.

A delegada tinha duas vantagens… Estava no seu habitat! E tinha uma .40 negra dentro do coldre pendurada na perna direita da calça operacional…

O duelo estava prestes a acontecer…

Quem sacaria primeiro?…

 

Para saber quem sacou primeiro, acesse:

[email protected]  E leia “O Juiz e a Delegada… Quem prende quem”?

“Os Fantasmas do Velho Hotel… “

Construída em 1932, a velha cadeia testemunhou infindáveis, maquiavélicas e fantasmagóricas histórias. Desativado em 2009, o carcomido prédio ainda abriga em seus sombrios corredores muitos… ‘fantasmas’!

“Pedro Louco” é um deles!

      Pedro Louco protagonizou um dos fatos mais marcantes da história do Velho Hotel da Silvestre Ferraz. O fato aconteceu nos idos de 1970, no tempo em que puxar cadeia ainda era vergonhoso, mas de certa forma era também bucólico, romântico e principalmente educativo!

     Pedro Louco não era bandido. Ao contrário, era um sujeito honesto, trabalhador e honrado. Honra daquelas que se lava com sangue. Certa vez um conhecido caminhoneiro, aproveitando sua ausência, passou uma ‘cantada’ na sua esposa, na borracharia onde ela o ajudava. Ao tomar conhecimento da ofensa, Pedro Louco pegou seu trabuco e foi atrás do caminhoneiro abusado. A honra foi lavada na subida da serra de Ipuiuna. Desde então Pedro Louco tornou-se hóspede do Velho Hotel da Silvestre Ferraz.

     Com menos de trinta hóspedes no velho hotel naquela década, gozando do privilégio de preso ‘cela livre’, após distribuir os ‘bandecos’ e varrer os corredores, Pedro Louco descia para a delegacia, onde também fazia limpeza. De lá, eventualmente, dobrava a esquina e se dirigia ao bar do Vaguinho Dorigatti na Com. Jose Garcia, para abraçar a estonteante “Severina do Popote”. Ia e voltava sempre acompanhado de um detetive… que também gostava do famigerado suco de gerereba com torresmo!

Numa tardinha fresca de 78, quando Pedro Louco saía do bar do Vaguinho ao lado de um detetive, um irmão do caminhoneiro se aproximou sorrateiro e, sem alarde, descarregou o trabuco na cabeça do borracheiro! A fumaça dos tiros entrou pelas narinas do detetive antes que ele esboçasse qualquer reação.

Cumprida a vingança pela morte do irmão, o assassino entregou a arma ainda fumegante ao detetive e foi ocupar o lugar de Pedro Louco no Velho Hotel da Silvestre Ferraz!

 

* Pedro Louco é apenas um dos “Fantasmas do Velho Hotel da Silvestre Ferraz”.

No livro “Quem matou o suicida” há muitos outros”!

… Mariana, mãe do nóia JC

 

(Imagem ilustrativa)

“De repente a campainha do telefone arrancou Mariana dos seus pensamentos. Levou um susto. Era tudo que esperava! Um telefonema, de algum lugar, com alguma notícia! Podia ser de qualquer lugar. Desde que fosse a respeito do filho. Da varanda até a estante onde estava o aparelho não gastou três segundos! Pegou o aparelho e o apertou junto à orelha…

– Aê dona, seguinte… Seu filho tá agarrado aqui no muquifo, cheio de pedra. Se você não pagar o que ele me deve dentro de uma hora, vou encher ele de furo, tá ligado?

– Como é que é? Não entendi… meu filho… – tentou argumentar Mariana, mas foi interrompida pelo interlocutor com a voz ainda mais tenebrosa e incisiva:

– Seguinte dona, ‘prestenção’ que só vou falar uma vez… Faz dois dias que o vacilão do seu filho está aqui na baixada queimando a pedra. Conheço ele. Sei que ele não para, não. O nóia tá me devendo trezentas pratas! Se essa grana não estiver aqui dentro de uma hora, vou fazer picadinho dele, tá entendendo?

Mariana sentiu um filete de gelo escorrer pela espinha. Na verdade, quando o traficante falou atabalhoado pela primeira vez, ela já havia entendido. Já ouvira aquelas ameaças e cobranças outras vezes. Era sempre o marido quem ia buscar o filho na sarjeta, mas era ela quem atendia o telefone. Não tinha trezentos reais na carteira. Aliás, há muito não deixava dinheiro na carteira! Enquanto ouvia as ameaças do traficante ia pensando no que fazer. Teve ímpetos de mandar o traficante catar coquinhos, de dizer que não estava nem aí para suas ameaças, que não importava mais com o filho. Teve vontade de simplesmente desligar o telefone e ver no que dava. Afastou o aparelho do ouvido, olhou para ele com desprezo e ódio e o depositou placidamente no gancho, sem dizer uma palavra. Sentou-se muda no sofá. Sentiu um certo torpor.

… Viu o menino franzino balbuciar desajeitadamente o ‘mãmã’ com pouco mais de um ano.

… Viu o filhinho com a roupinha humilde, mas limpa, acenando para ela na porta da escola no primeiro dia de aula.

… Ouviu a voz eufórica do filho falando dos novos amigos da escolinha… Viu o garoto adolescente, sorrateiro, tentando esconder o boletim escolar cheio de anotações em vermelho…

… Viu o menino sair de casa tantas vezes bem arrumado, usando bermuda, camiseta e tênis novos, perfumado…

… Viu o filho tantas vezes chegar a casa com a roupa suja, rasgada, as vezes a roupa nem era dele, fedendo, às vezes descalço.

… Viu o menino enfurnado no quarto, taciturno, arredio.

… Viu o menino tantas vezes entrar no carro com o pai, levando uma pequena mochila nas mãos, partir para mais uma clínica de recuperação.

… Viu o corpo do menino magro, ossudo, pele empalidecida num caixão tosco na funerária…

… Viu o aparelho telefônico vibrando na estante.

Demorou para ouvir o som do aparelho. Pegou-o e o levou lentamente ao ouvido, muda. Ouviu a mesma voz de antes…

– E aê, tia! Vai deixar o vacilão morrer aqui mermo?

Mariana continuou muda.

– Tá de sacanagem, né tia! Tá de sacanagem que não sabe o que vai acontecer com o seu nóia? – insistiu o traficante já mais exaltado. Escute – disse ele – vou te fazer um favor… Vou levar seu filho aí na porta da tua casa agora. Quando chegar aí quero minha grana. Se não estiver com as trezentas pratas na mão, furo seu garotão aí na sua porta, na sua frente, tá ligado?”

 

 

(Paulinho & Mariana, os pais do nóia JC /“Quem Matou o Suicida” – Airton Chips – primavera de 2020).

 

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Procurado!

     Numa investigação policial, nenhum indicio pode ser descartado!

Seis da tarde na delegacia regional de polícia. O homem de meia idade, fisionomia séria, ligeiramente grisalho, parou diante da foto colada no mural na entrada da delegacia. “Desaparecido”, dizia a legenda em letras garrafais acima da foto. “Saiu de casa na quarta-feira com destino à Aparecida e não deu mais notícias”, dizia logo baixo do nome com outras informações.

– Alfredo, é você que está com aquele caso do mendigo carbonizado? – perguntou o grisalho ao detetive que conversava numa pequena rodinha ali na recepção.

– Sim Inspetor!

– Ele tinha uma mochila, não tinha? Traga-me essa mochila na inspetoria – ordenou.

– Inspetor… são seis horas. Acabou o expediente. Pode ser amanhã cedo? – disse o jovem detetive, com indisfarçável má vontade, olhando para o pulso.

A presunção do rapaz surpreendeu o velho inspetor. Velho na profissão, pois tinha quase trinta anos de trabalho e cabeleira grisalha, embora mal tivesse soprado cinquenta velinhas. Por isso pensou em responder à altura da sua autoridade, mas se conteve. Olhou para o relógio de pulseira marrom no braço e respondeu:

– Faltam trinta e cinco segundos para as dezoito horas. Coloque essa mochila na minha mesa antes das dezoito! – falou retirando o cartaz do quadro.

Os colegas de Alfredo que estavam conversando amenidades na rodinha olharam para ele e iam fazer alguma troça, mas Alfredo falou antes:

– Inspetor, eu joguei a mochila no latão de lixo ontem à tarde…

Se a espetada anterior do detetive batera no músculo, a estupidez bateu agora numa parte mais sensível do inspetor. Não era feitio do calejado policial questionar comportamento pessoal de seus subordinados fora das quatro paredes da inspetoria, mas dessa vez não podia ficar barato…

– Você jogou evidências de uma investigação policial, em andamento, no lixo? – questionou o inspetor frisando cada palavra.

– Era só uma mochila fedida de um mendigo, inspetor! – desafiou o detetive, tentando justificar a ‘varada n’água’. A emenda, no entanto, soou pior que o soneto. E o inspetor desafinou de vez a censura…

– Escuta jovem, onde você aprendeu que morte de mendigo não precisa ser esclarecida? Não foi na academia de polícia civil paulista, certamente. Você já terminou seu estágio probatório? – desta vez o novato não retrucou. E o inspetor completou:

– Você está com sorte… os lixeiros estão em greve! Ninguém recolheu o lixo na cidade nos últimos dias. Torça para que a mochila do suposto mendigo ainda esteja no latão de lixo. Você vai procurar sozinho ou precisa de ajuda? – Como não obteve resposta virou as costas dizendo:

– Estou esperando a mochila na minha sala.

Três minutos depois Alfredo entrou na sala do inspetor com a mochila na mão…

 

Esse pequeno trecho é parte integrante do romance policial de Airton Chips:

“UMA VIAGEM QUE NÃO CHEGOU AO FIM”.

O livro está disponível no site da ‘Editora Dialética’ ou, através do WhatsApp 35 9.9802-3113. 

Flagrante!!!

A cena paralisou suas mãos!

Imagem ilustrativa

Apesar de a noite ser ainda uma criança, fazia muito frio na rua. Na penumbra do interior do carro, ligeiramente oculta pela sombra de uma arvore, Joana esperava pacientemente. Chegara no início da tarde à cidade. Tivera tempo de sobra para fazer sua investigação. Descobrira onde era o escritório, parte da rotina, dos horários e agora estava ali, a poucos metros da porta da casa de Paula. Segundo seus levantamentos ela saia do trabalho por volta das seis da tarde e antes de ir para casa passava no supermercado. Já eram mais de sete horas… estava demorando! De repente um carro diminuiu a velocidade, sinalizou e parou na frente do seu carro. Joana percebeu que era um homem ao volante. Sentiu o coração disparar! Esperou alguns segundos. A porta do passageiro se abriu e uma mulher protegida por um grande casaco bege saiu tentando equilibrar nos braços um pacote de papeis. Quando ela se virou para contornar a frente do carro, Joana pode ver com certeza: Era Paula! Um ligeiro frio percorreu sua espinha. Nesse instante a porta do motorista se abriu e um homem, que já mexia no banco traseiro, fez movimentos de descer. O coração de Joana bateu a duzentos por minuto. O homem saiu do carro de costas pra ela…

Era Renato?

O grande casaco escuro aumentava sua silhueta… O rapaz alto e corpulento, cabelos curtos… era Renato!!

Ele deu um passo em direção à Paula, recolheu os papeis das mãos dela, juntou os dois pacotes e atravessaram o passeio em direção ao portão da casa da jovem advogada. Joana tinha os olhos colados no casal.

Num instante ela abriu o portão, virou-se para o homem e deu-lhe um longo beijo apaixonado.

Joana ia saltar do carro para surpreender o casal, mas de repente ficou paralisada. A cena foi muito forte. Um misto de sentimentos a invadiu naquele momento. Queria não ter visto aquilo. Sentiu um certo asco! Por um segundo desviou os olhos.

Quando voltou a olhar para o casal, Joana já havia fechado o portão e Renato estava entrando no seu carro.

Era mesmo Renato! Estava mais magro e usava barba, coisa que não fazia há anos.

Enquanto pensava no que fazer, o motorista deu partida, deu seta e saiu do local. Joana pensou em seguir o carro de Renato, mas seus dedos travaram, grudaram no molho de chaves e ela não conseguiu dar partida.

Quando finalmente conseguiu virar a chave no orifício da ignição, o carro de Renato já virava a esquina.

“Foi melhor assim”, pensou Joana. “Eu não ia conseguir dirigir. Ia acabar batendo o carro”. Ficou longos minutos ali olhando a rua silenciosa e fria. Baixou um palmo o vidro do motorista para deixar entrar o ar frio da noite. Pareceu ouvir o barulho do chuveiro de Paula. Viu-a nua, esfregando o sabonete pelo corpo, cantarolando uma canção qualquer debaixo do chuveiro. Viu Renato alto, forte, ereto entrando nu no chuveiro… tentou desviar o ‘olhar’ e instintivamente sacudiu a cabeça, querendo se afastar da cena! Com isso Paula e Renato sumiram do banheiro, sumiram da sua imaginação!

Só então se deu conta de que estava ali há quase dez minutos desde que vira o carro de Renato virar a esquina.

Mas será que era mesmo Renato? De costas, era o mesmo porte físico. Alto, ombros largos… De frente os ombros largos mantinham o casaco aberto fazendo uma figura corpulenta, mas parecia mais magro… ou seria mais jovem e atlético? Mas era Renato. Tinha certeza. Ou será que não? Ou será que apenas seu subconsciente viu Renato ali se despedindo de Paula com aquele beijo apaixonado?

Pensou em descer do carro, tocar a campainha e ir falar com Paula. Dizer que havia descoberto seu romance com seu marido. Mas de que adiantaria? Poderia ter dito isso mais cedo no escritório dela! Ou até por telefone, sem sair de casa! Ela certamente negaria. “Eu tinha que ter abordado os dois abraçados no portão”, pensou Joana. “Pegá-los em flagrante… e ver que explicação ele daria para ter abandonado a família de maneira tão covarde. Ver que recado ele daria para seus filhos adolescentes que sempre o tiveram como herói”! Assim pensando Joana rumou para o hotel. Precisava sair da rua, ficar entre quatro paredes, sozinha, para extravasar sua revolta, sua mágoa, sua dor… Precisava esmurrar alguma coisa. Chorar, talvez. Sim. Precisava chorar. Chorar bastante, até esvaziar todos aqueles sentimentos confusos que pressionavam seu peito… e seu cérebro! Tudo que precisava agora era de quatro paredes… para esconder suas lágrimas!

 

Esse pequeno trecho é parte integrante do romance policial de Airton Chips:

“UMA VIAGEM QUE NÃO CHEGOU AO FIM”.

O livro está disponível no site da ‘Editora Dialética’ ou, através do WhatsApp 35 9.9802-3113.

 

Um cadáver na beira da estrada…

Quem seria?

“Três horas depois a estradinha ficou pequena para quem queria seguir para os sítios ao pé da serra ou descer para pegar a estrada principal que levava às cidades vizinhas. Uma faixa quadriculada de amarelo e preto isolava a guarita, agora toda enfumaçada, na beira da estrada. Havia carros dos dois lados da via. Três deles eram da polícia, um da militar, outro da perícia da polícia civil e o terceiro com o letreiro na traseira: “Delegacia de Homicídios”. Os curiosos ocupavam todo o entorno; queriam saber o que acontecera; de quem era o corpo carbonizado; davam palpites…

– Parece que é um andarilho… – dizia um.

– Eu ‘vi ele’ passando lá perto da minha casa ontem de tardinha… – dizia outro.

– Será que foi acidente? – indagava um terceiro.

– Acho que ele foi queimado enquanto dormia…

– Ah, não… com o calor ele teria acordado! – discordou outro.

– … Ou não. Esses andantes bebem muito. Deve ter derramado a garrafa de cachaça no fogo…

– Eu acho que alguém tocou fogo nele!

– Tá doido! Por que alguém faria uma maldade dessas com o pobre coitado?

Enquanto a perita, com carinha doce de colegial – talvez na sua terceira semana de trabalho – fotografava a mesma cena por infinitos ângulos diferentes e anotava tudo em sua prancheta, dois homens, de braços cruzados, cada um ostentando no peito um distintivo de couro com uma estrela reluzente no meio, por cima dos óculos Ray Ban, observavam a tétrica cena. Talvez, esperando que alguma teoria diferente da dos curiosos surgisse de algum lugar. Satisfeita com a infindável sequência de fotos, medidas e anotações, finalmente a jovem perita se aproximou dos dois policiais e disse:

– Por mim o corpo está liberado, doutor…

– Tem algum palpite?… – Indagou o policial mais empertigado, com distintivo dourado e vermelho.

–  Nada além do óbvio… há restos de cobertores, latas, trapos… coisas comuns de andarilho, que não foram queimados. Quanto ao corpo, a única certeza é que era de um homem, pelo tamanho dos ossos, adulto.

– Documentos…

– Tudo virou cinza.

– Algum trauma, fratura, projétil?…

– Nada visível. Só o legista, com raio x, poderá achar algo caso haja… Posso autorizar a funerária a remover o corpo para o IML e dispensar a PM?

– Ok. Bom trabalho Cintia. Obrigado. Quer interrogar alguém Alfredo? – disse o delegado, virando-se para o policial de distintivo verde.

– Não. A PM já qualificou e sabatinou a testemunha que encontrou o corpo e outros curiosos. Vai colocar tudo no BO. Eu gostaria de dar uma olhada nas imediações da guarita, ver se acho alguma coisa que os curiosos ainda não destruíram. Vamos manobrar a viatura no final da estrada, para dar tempo de os curiosos se dispersarem… – disse o detetive”.

 

Esse pequeno trecho é parte integrante do romance policial de Airton Chips:

“UMA VIAGEM QUE NÃO CHEGOU AO FIM”.

O livro está disponível no site da ‘Editora Dialética’ ou, através do WhatsApp 35 9.9802-3113.