Silvério, o soldado que aprendeu falar… “baralho”!

Silvério era um soldado moreno claro, estatura mediana, fisionomia agradável – apesar de pouco sorridente – e sempre amigo de todos. Era um daqueles sujeitos “de bem com a vida”! Nas interlocuções com os colegas sempre tinha uma ‘tirada’ engraçada, que virava piada. Era visto também como sujeito ligeiramente ‘destrambelhado’, ou, um ‘meninão’! E por isso mesmo não era levado muito à sério pelos colegas. Mas era sem dúvida, um bom companheiro, daqueles que, com certeza não deixaria um companheiro no mato sem cachorro! Seu pensamento nem sempre ordenado e sua língua sem freios, às vezes o colocava em saia justa.

O fato mais marcante protagonizado pelo soldado Silvério na nossa vida de caserna, naquele inesquecível ano de 77, aconteceu no início de uma tarde quente de fim de primavera…

Raspava 13:00h. A maioria dos 73 soldados já estavam sob a cobertura e adjacências da Bateria Comando se preparando para entrar em forma. Dali a instantes o cabo-de-dia iria apresentar os soldados ao sargento, que por sua vez apresentaria ao comandante Vargas, para o início do expediente da tarde. Silvério, que estivera tirando uma siesta no alojamento, foi um dos últimos a descer para a formalidade cotidiana. E desceu de má vontade, sonolento, parecendo estar de ressaca… No momento em que apareceu na porta do prédio rente à cobertura, enfadado por ter que mais uma vez entrar em forma e repetir toda aquela rotina que já durava quase um ano, o soldado soltou um sonoro impropério:

 

– Ô “caraaaaaaiiiiio”… Já está na hora de entrar em forma de novo!

 

Sua voz rasgada e ainda sonolenta soou alto ao pé do prédio da nossa bateria e entrou pela janela do segundo pavimento do prédio vizinho, onde o sisudo Capitão Meyer, comandante do NPOR, ‘caxias’ que era, já havia começado a instrução aos seus alunos!

O rechonchudo capitão – que dez mais tarde, já Ten. Cel. viria a ser comandante do 14º GAC – debruçou seu corpanzil na janela emoldurada de azul, encheu o peito e perguntou:

 

– Quem foi que gritou “caraio” aí?

 

O estrondo de uma granada não teria causado tamanho impacto sobre aqueles jovens soldados! Depois do estrondo veio o silencio ensurdecedor. Apoiado sobre os braços em curva, ocupando todo o parapeito da janela, o capitão aguardava a resposta!

Em pé, sentados ou encostados nas colunas sob a cobertura, nós soldados mal respirávamos!

Deu ruim!

Se o dono do “caraio” não se apresentasse, toda a bateria pagaria o pato!

O preço mais barato para aquele tipo de comportamento seria pernoite para a bateria inteira no final de semana!

Tensão total.

Ninguém tinha coragem de abrir a boca e caguetar o soldado 367…

E ele, o soldado vacilão, dono do “caraio”, se apresentaria… ou não?

O silencio sepulcral agigantara ainda mais a figura opulenta do capitão ocupando todo o espaço da janela de batentes azuis a poucos metros da nossa cobertura. Foi ele mesmo quem cortou o silencio…

 

– E então… O ‘boca suja’ não vai se apresentar?…

 

Nesse instante um bater de coturnos cortou o silencio. Sem olhar para ele, percebemos que Silvério juntara os calcanhares. Em seguida, ouvimos suas mãos espalmadas baterem em perfeita sincronia às suas coxas. No gesto seguinte ele virou-se de frente para a janela do capitão, em ‘posição de sentido’, levantou a cabeça com galhardia – como deve se portar um soldado, mesmo quando comete um vacilo – e respondeu alto e bom som:

 

– Fui eu capitão!

 

Alívio geral de todos nós soldados da BC. Ainda assim continuamos tensos, esperando a sentença do capitão.

Neste momento aconteceu o fato mais marcante que presenciei em toda minha passagem pelo exército! Talvez desconcertado com a resposta, com a coragem, ou quem sabe com a honradez e lealdade do soldado Silvério, o severo capitão engoliu em seco. Por um instante ficou sem palavras! Mas, não deixou a peteca cair! Ainda com os braços fortes curvados, apoiados no parapeito da janela, encheu o peito e disparou:

 

– Não é “caraio” que se fala não… é “Ca-ra-lho”!

 

Dito isso, virou as costas, saiu da janela e voltou para o interior da sala, como se nada tivesse acontecido!

Silvério, continuou mais alguns segundos em posição de sentido, de frente para o prédio do NPOR, custando acreditar que seu vacilo havia ficado tão barato!

No minuto seguinte o capitão Vargas, tão sisudo e bravo quanto o capitão Meyer, atravessou a rua, se aproximou e assumiu a bateria… sem entender por que seus soldados estavam tão calados!

O difícil para nós soldados da BC, foi esperar o fim do expediente para dar gargalhadas do colega Silvério…

Desde que demos baixa do exército, nunca mais vi o inesquecível soldado 367, de Cambui. Mas temos certeza: naquele dia ele aprendeu a falar … “baralho”!

 

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