A enchente das goiabas…

 

E o ultimo mergulho do Catimbau

A chuva caiu mansa a semana inteira. Lentamente as águas frias e sujas foram enchendo o leito do rio Mandu e subindo até sair penas margens ribeirinhas, preenchendo os espaços vazios, os buracos, as depressões, a várzea. Na madrugada do sábado finalmente a chuva parou de cair. Agora só rolava. Rolava lentamente procurando lugares que ainda não haviam sido alcançados. Tudo em redor da cidade estava alagado. A vargem do Aterrado parecia um mar. Até a chácara do Pedro Artur, à esquerda, na direção da Vigor, a qual havia recebido centenas de basculantes de terra anos antes, estava ilhada. Para se chegar às fazendas ao sul da cidade, depois da vargem, só de canoa. As famílias que moravam no Aterrado e na vargem haviam sido retiradas de lá dias antes, pelos caminhões do exército e da prefeitura. Estavam alojadas na Rinha. Demorariam dias para voltar para casa. O sábado amanheceu ensolarado e fresco. A tarde esquentou. Alguns nadadores de rio foram até a ponte do Aterrado nadar como sempre faziam por ocasião das enchentes. Desta vez, no entanto, nenhum deles se arriscou. O movimento lento das águas era assustador. Levados pelas águas serenas, de vez em quando passava por ali, boiando sob a flor d’agua um tronco de arvore podre, um pedaço de armário, um trapo qualquer, um cavalo ou um porco sem vida dividindo o espaço com as goiabas parcialmente comidas por passarinhos. Era a última enchente do ano, a famosa “enchente das goiabas”! Os jovens acostumados a belos saltos ornamentais de cima da ponte formavam grupinhos, conversavam, comentavam, desafiavam, ensaiavam, mas ninguém se aventurava a entrar na água.

Em dado momento perceberam a figura do Catimbau …

O moço surgiu do nada, entre as pessoas que contemplavam a enchente, com seu jeito sempre taciturno e calado. Decerto viera da cidade, da Rinha onde devia estar arranchado desde o meio da semana. Caminhou lentamente até metade da ponte. Apesar de solitário e discreto, não conseguiu evitar os olhares curiosos.

– Será que ele iria nadar naquela enchente? Será que ele teria coragem de saltar naquele dia? – interrogavam-se as pessoas com uma ponta de inveja.

Catimbau olhou para o oeste, de onde surgia o rio Mandu algumas braças atrás do campo do Vasquinho. Atravessou a pequena ponte… olhou para o leste, para onde ele descia reto até fazer a curva no fundo da Vigor. Olhou para a chácara ilhada mais à direita. Lentamente tirou a camisa de tergal esverdeada, pendurou na mureta da ponte, verificou se não se aproximava numa canoa, afastou-se de costas até a outra extremidade, tomou posição de largada, correu, saltou para a mureta, encostou os dois pés, aproveitou o embalo e… saltou no espaço! Saltou mais para a frente do que para o alto. Saltou longe de encontro às águas amarelas do rio mandu… As pessoas – naquele sábado ainda não eram tantas como de costume por ocasião das enchentes – e os nadadores de rio ficaram olhando, alguns admirados, outros perplexos com a coragem; outros com olhar de censura pela irresponsabilidade! Alguns torcendo para o aventureiro se dar mal! Outros torcendo para que os anjos o protegessem … E catimbau desapareceu!

Ele havia pulado contra a correnteza. Era natural que submergisse rio abaixo, debaixo da ponte, ou do outro lado. Algumas pessoas correram do lado de baixo esperando vê-lo surgir ofegante e buscar a margem.

Mas… nada!

De repente… aplausos!

Catimbau surgiu longe dali. Surgiu a poucos metros da margem direita do rio, quase no quintal da chácara do Chiquinho de Freitas. Saiu à rua, voltou para a ponte, caminhou até sua camisa, jogou-a no ombro e foi embora, tão solitário quanto chegou, deixando atrás de si um emaranhado de minhocas tontas zanzando na cabeça das pessoas.

Quase nada se sabia sobre Catimbau. Certo dia um rapazinho pardo, franzino, média estatura apareceu na Olaria do Chico Derige. Chegou ressabiado, sondando à distância. Sentou-se num toco podre de um ingazeiro ali perto e ficou um longo tempo observando os oleiros trabalharem até que se aproximou de Chico Derige e perguntou:

– Precisa de camarada?

Chico não precisava de empregado. Muito menos de um garoto franzino que certamente não teria força para misturar uma masseira de argila. Aquele menino com certeza não conseguiria virar uma forma de tijolo cru sobre a bancada. Ele, no entanto, havia notado a presença do menino sentado no tronco observando de longe a rotina. Quem sabe o menino não seria útil nas pequenas tarefas? – pensou. Sem tirar os olhos dos tijolos que empilhava começando a base da caieira que teria que queimar na noite seguinte, perguntou:

– Onde você mora, menino?

– Se o sr. der emprego, vou morar aqui.

A resposta surpreendeu Chico. Ele interrompeu por um instante o que fazia, percorreu o garoto de cima a baixo, olhou ao seu redor e tornou a perguntar.

– Sua família… de onde você vem? Já passou pelo Regimento?

– Não. Não tenho idade… Mas eu não vou servir a pátria. Família tenho não.

Chico Derige continuou seus afazeres como se não tivesse ninguém ali. Quando terminou de trançar os tijolos queimados na base da caieira, voltou a perguntar:

– Qual o seu nome?

– Catimbau.

– Catimbau de que?

– Só catimbau… minha mãe falou.

O velho oleiro coçou a cabeça branca, ajeitou o chapéu de palha e falou:

– Pago três cruzeiros por semana. Se quiser ficar aqui vai ter que fazer o seu rancho e a sua comida.

Catimbau descontraiu o rosto pardo e magro, esboçou um sorriso e falou fazendo uma ligeira mesura:

– Deus lhe pague, patrão.

Estava empregado.

Os anos passaram. Muitas enchentes das goiabas haviam se passado. Catimbau continuava o mesmo. Estava mais alto e mais encorpado. Mas só. Pardo, olhos escuros, fundos, cútis queimada pelo sol. Cabelos lisos e longos escorridos, cortados por ele mesmo com faca. Parecia um ‘indinho’! No entanto os traços fisionômicos: queixo, nariz, boca, sobrancelhas delicadas eram de branco, filho de branco… ou branca, europeu.

Essa era, talvez, a sétima ou oitava enchente das goiabas que expulsava Catimbau do seu ranchinho na olaria do Chico Derige. A mudança para a Rinha era fácil: saía de casa com a água pelas canelas e uma pequena trouxa de roupas nas costas. Só isso. Enquanto esperava a enchente baixar, de manhã, andava taciturno pela cidade. Perambulava pelo mercado. Era comum vê-lo sentado no fundo da catedral do São Bom Jesus com os olhos pregados na cruz. À tarde passava horas sentado na grama no Alto das Cruzes olhando de longe os movimentos da enchente, esperando o momento de voltar para casa. Dali podia avistar apenas a comunheira da olaria onde morava, mergulhada imóvel no mar da baixada do Mandu. Quando a chuva parava e o sol abria a porta ele descia para nadar na enchente, na ponte. Era ali que dava seus shows de saltos ornamentais nas águas amarelas que desciam das serras da Borda para se unirem ao Rio Sapucaí. Ninguém saltava tão alto, com tanta desenvoltura. Parecia parar no espaço. Ninguém ficava tanto tempo submerso quanto ele. Às vezes saltava para longe, as vezes para o alto… as vezes mal tocava a água e tornava a emergir tal qual uma tabarana em dia de Piracema! Às vezes desaparecia nas águas e ficava uma eternidade submerso, causando tensão e suspense até surgir distante do local onde mergulhara. Mulheres, sempre mais sensíveis, com a demora do nadador, levavam a mão à boca e exclamavam já com os olhos nadando:

– Ohhh… desta vez ele morreu!!!

No domingo seguinte Catimbau voltou à ponte do Mandu. Não chovia há mais de trinta horas. As águas haviam parado de subir. Mas não baixara. Demoraria mais de uma semana para voltar ao nível normal deixando apenas o cheiro indelével de sua passagem. O entorno da ponte estava abarrotado de gente. Pessoas nas janelas vizinhas, na sombra da arvores nas margens. Muitas se protegendo do sol sob suas coloridas sombrinhas. Era dia de festa, festa de gala. Muitos homens usavam ternos… mulheres desfilavam seus vestidos longos. Vários barcos de aluguel levavam quem quisesse para passear na enchente. Nadadores de todos os cantos da cidade estavam ali, dispersos ou em grupinhos, usando trajes de banho, buscando coragem para saltar na água, para exibir seus dotes.

Catimbau chegou discreto como sempre. Usava a costumeira indumentária: bermuda de brim cru da cor da terra com a qual fazia tijolos, cortada a faca nas canelas, e camisa verde-água, encardida. Os pés, que nunca foram apresentados a nenhum tipo de sapato, com as solas grossas e calejadas, tocavam livremente o concreto sujo da ponte. Parou à distância olhando para a plateia. Talvez buscasse alguém! Caminhou lentamente para o vão da ponte. Alheio aos olhares curiosos se dirigiu até a mureta do lado de baixo, observou o movimento das águas, o entorno rio abaixo, atravessou os poucos metros e parou na mureta do lado de cima. Tornou a observar. Seus movimentos estavam mais lentos e pausados naquela tarde. Parecia estar se despedindo… À sua esquerda os galhos dos chorões brincavam com a correnteza. Catimbau olhou para aqueles galhos que resistiam à força das águas. Ele e aqueles galhos tão pequenos e frágeis tinham algo em comum: podiam brincar o quanto quisessem com a correnteza que jamais seriam vencidos… A menos que quisessem se deixar levar! Virando-se para sua direita pousou seus olhos tristes na imensa plateia nos barrancos, nas janelas… Homens, mulheres, donzelas… Todos estavam ali para apreciar o espetáculo da natureza… a natureza dos homens! Apoiado na mureta da ponte, Catimbau deixou os olhos vagarem na plateia… Parecia procurar alguém, talvez um rosto conhecido. Ou então… se despedir daquela gente, daquela enchente, daquele rio que tão bem conhecia. Nesse momento recuou de costas até a mureta de baixo… alongou os braços, as pernas, o tronco… parecia que ia saltar. Caminhou decidido até a mureta de frente, parou, olhou para as águas, recuou novamente, aqueceu, tomou posição de corrida, atravessou a ponte e subiu com um movimento só na mureta, juntou os pés e … saltou no espaço! Saltou muito alto. Mais alto do que jamais havia saltado. Parecia que ia subir para o céu. De repente, quando o impulso acabou, Catimbau dobrou o corpo, por um instante ficou na horizontal, depois tornou a esticar e desceu quase reto em direção às águas. Desceu quase tão lento quanto havia subido! E com os braços estendidos tocou na água. E desapareceu!

Durante vários minutos a plateia permaneceu imóvel… esperando ver Catimbau surgir nalgum ponto do rio, no meio da enchente. Mas ele não surgiu. Seu corpo nunca mais foi visto.

Uma semana depois os desabrigados da enchente das goiabas, a maior daquela década, começaram a voltar para casa.

Um dos moradores da baixada do Mandu não voltou. No casebre de um cômodo só, habitado por Catimbau, preso à linha do telhado Chico Derige encontrou um minúsculo saco plástico amarrado pela boca. Dentro dele havia uma fotografia, aliás, duas… uma colada no verso da outra. Ambas as fotos eram de mulheres, ambas lindas, apaixonantemente lindas, brancas. Uma, séria, aparentava uma senhora de meia idade. Outra, sorrindo, uma menina na adolescência.

O detetive que investigou o caso do sumiço de Catimbau, com base nos seus parcos conhecimentos freudianos, sugeriu que a bela mulher madura poderia ser sua mãe. A outra, de sorriso doce e angelical, inatingível, deveria ser um amor platônico… causa do seu último mergulho na enchente das goiabas no Rio Mandu.

COPA BELATO de Futebol Regional

O que você vai ler agora, é o único registro que resta do maior campeonato de futebol do Sul de Minas!  

Belato, (camisa verde) patrocinador do evento, Airton Chips (pulôver listrado), Presidente da Lepa, e o troféu na abertura da 4a Copa Belato em Ouro Fino em 1990, troféu que seria levantado meses depois pelo S.C.Cantareira.

Em 1892, dois anos antes de o anglo-brasileiro Charles Miller voltar ao Brasil com duas bolas de capotão debaixo do braço e realizar a primeira partida de futebol em um clube em São Paulo, o futebol já era conhecido e praticado como recreação em um colégio de Pouso Alegre. O esporte Bretão, que apaixona crianças e jovens de todas as idades, e movimenta milhões de dólares todo ano, está presente em Pouso Alegre há 132 anos!

No entanto, pouco se sabe de sua história!

E sabem por quê?

Por desleixo.

Por descaso!

Porque não há registros dos seus movimentos, dos fatos, dos campeonatos através dos anos.

Não é possível saber, por exemplo, quem foi o campeão de futebol amador do ano de 1950! Ninguém sabe quem foi o campeão de futebol infantil de Pouso Alegre no ano de 1990. Tampouco se sabe quem eram os jogadores que encantavam a torcida com seus dribles nos campos da cidade na década de 70! Enfim, a história, as pessoas que marcaram uma época no esporte são abandonadas ao esquecimento! No entanto, preservar a memória, preservar a história, preservar o passado é importante. É o passado que norteia o futuro!

Poucos, no entanto, conhecem o passado recente.

Por exemplo:

Você sabe o que há em comum entre o Pouso Alegre F.C. e S.C. Cantareira?

Certamente nem sabe quem é ou quem foi o Cantareira!

Ambos têm vários pontos em comum. Os dois mais relevantes: ambos são rubro-negros.

O Pousão, hoje centenário, teve sua maior gloria no século passado, em 1990, quando fez a segunda maior campanha do interior no campeonato mineiro daquele ano. Além da brilhante campanha, o Dragão pôs água no chopp do meu Galo em pleno Mineirão no dia em o clube comemorava seus 82 anos: 2 x 1 – eu vi de perto esse jogo com estes meus olhos cor de mel!

Naquele mesmo ano o jovem S.C.Cantareira, do bairro São João de Pouso Alegre, sagrou-se campeão da Copa Belato de Futebol Regional!

 

      Ao longo da sua história, o futebol amador e o profissional de Pouso Alegre, nalguns momentos andaram juntos. Ora somando, ora dividindo, ora atrapalhando o outro… Em 1990 amador e profissional posaram juntos para a mesma foto, no alto. O profissional (PAFC) fazendo bonito na elite do futebol mineiro, e o amador (Cantareira) sagrando-se campeão regional da Copa Belato.

 

Mas voltemos ao título da matéria.

Campeonato Mineiro tudo mundo sabe o que é!

 

Mas o que vem a ser essa tal Copa Belato?

– Foi o mais completo campeonato de futebol amador do Sul de Minas de todos os tempos.

– Foi realizado entre os anos de 1987 e 1992 pela Liga Esportiva de Pouso Alegre – LEPA.

– Era disputado por clubes ou seleções das cidades num raio de 100 quilômetros no entorno de Pouso Alegre.

– As equipes eram divididas em grupos de 4, formato semelhante ao do Campeonato Brasileiro da época, com jogos de ida e volta, até chegar à final disputada em dois jogos.

Para entender melhor a dimensão da Copa Belato, é preciso conhecer um pouco a história do futebol de Pouso Alegre. Essa história pode ser dividida em três períodos distintos.

. O primeiro vai dos seus primórdios, ainda na infância do século XX, até o final dos anos 70, passando pela criação do PAFC em 1913, com a doação do terreno pela família ‘pinto cobra’ para construção do estádio no alto da Comendador em 1928, o qual viria ser conhecido por Estádio da LEMA, período aliás, de pouquíssimos registros. Passa também pela criação da LEMA – Liga Esportiva Municipal de Amadores em 1947.

. O auge dessa primeira fase do nosso futebol aconteceu entre os anos 1950 e 1960. Clubes como Facit, Manchester, Madureira, Flamengo do Quartel, Rodoviários, Bangu, São Paulo e outros marcaram aquela época.

O declínio aconteceu, ironicamente, com o auge do PAFC profissional! É sempre assim: tudo que sobe… desce! Às vezes despenca…

Depois de galgar à primeira Divisão de profissionais do Estado, em 68 o PAFC perdeu, no tapetão, a vaga para disputar o mineiro de 69 e o futebol da cidade, profissional e amador, caíram no ostracismo.

O futebol – amador – voltou a brilhar no final da década dos anos 70, com o campeonato regional disputado no Estádio da Lema.

Disputado em apenas um estádio era um campeonato de grandes bilheterias e de grande nível técnico. Porém com regulamento frouxo … começava com jogadores amadores de Pouso Alegre e terminava sendo decidido por profissionais da Caldense, do Guarani e da Ponte Preta de Campinas. À medida que o campeonato ia afunilando, os times iam se reforçando com jogadores profissionais dos clubes tradicionais da região, de acordo com o poder aquisitivo e vaidade dos cartolas. Quem tinha mais dinheiro para contratar mais craques levantava o caneco.

. Era muito bom para o torcedor, que podia assistir grandes espetáculos no Estádio da Lema …

. … Mas era péssimo para o futebol da cidade, que, ao desprestigiar seus jogadores que jogavam de graça, esvaziava o futebol nos anos seguintes.

O segundo período de Pouso Alegre, começou com a ressurreição do PAFC, em 82, curiosamente treinando no campo da Escola Profissional. No ano seguinte o clube seria campeão estadual amador e em 84 voltaria a disputar o campeonato profissional da Segunda Divisão até conseguir o acesso à Primeira em 88. Em 90, no seu segundo ano na elite do futebol profissional, o PAFC teve sua melhor performance, ficando em segundo lugar do interior, depois de vencer o Atlético em pleno Mineirão no dia do seu aniversário.

O retorno do PAFC ao futebol profissional em 84, forçou a reestruturação da Lema – Liga Esportiva Municipal de Amadores, para cuidar estritamente do futebol amador. Começa aqui o segundo período do futebol amador de Pouso Alegre.

Foram realizadas incontáveis reuniões com cartolas e aficionados do futebol buscando sua reestruturação. As reuniões aconteciam semanalmente na antessala da Rádio Clube de Pouso Alegre e no escritório da Distribuidora Brahma, do radialista Paulo Roberto, discutindo o que, como e quem fazer, até que se definiu a nova diretoria da Liga, sendo escolhido para dirigi-la o inesquecível Aguinaldo Maranhão Cordeiro Falcão. “Sô” Aguinaldo, como era chamado pelos boleiros, recebia dirigentes e jogadores amadores a qualquer hora do dia e da noite em sua própria casa na Manoel Matias no bairro Primavera. Além do presidente, os cartolas elegeram também o vice-presidente, tesoureiros, secretários, diretor de esportes, Presidente da Junta de Justiça Desportiva e conselheiros. Nos anos seguintes, 85 e 86, a Lema realizou dois campeonatos municipais na cidade, nas categorias Aspirante e Titular.

As dificuldades para realizar um campeonato estritamente municipal, com tantos clubes desestruturados, em campos ruins, quase sem apoio comercial e sem apoio dos órgãos públicos, e ainda concorrendo com a estrela principal que era o futebol profissional, arrefeceu os ânimos dos diretores da Lema. Em 86 a diretoria resolveu fazer apenas a categoria Titular, ainda assim, com apenas 12 clubes. Fizeram mais, aliás, menos… No final do segundo ano de retorno da Liga, a diretoria reduziu o próprio mandato, que era trienal, e promoveu eleições para a sua sucessão.

Foi aí que a Gestão 87/92 entrou em cena para fazer história no futebol amador de Pouso Alegre e da região, criando a Copa Belato de Futebol Regional!

Congonhal particcipou de cinco das seis edições da Copa Belato. Levantou 2 troféus. Campeão em 88 e vice em 90.

DESCRÉDITO E DESANIMO

     O formato dos campeonatos regionais disputados até o início da década de 80, trouxeram um grande descrédito e desânimo para os atletas e dirigentes. O futebol, como o nome diz, era amador. Jogava-se de graça, por amor ao esporte e à camisa. Ninguém ganhava nada, muito menos os cartolas. Ao contrário. Os cartolas tinham despesas. Já naquela época bolas, camisas, redes, tintas para marcar campo, transporte, etc, custavam dinheiro. E nem sempre havia patrocinadores. Os custos saiam quase sempre do bolso do cartola apaixonado.

 

Ouro Fino levou o caneco de 89…

OS DESAFIOS DA COPA BELATO

Cantareira: único dos três clubes de Pouso Alegre a disputar o certame. Levou o caneco de 90.

O primeiro desafio para implantar na região um campeonato entre as cidades, no formato do Campeonato Brasileiro, disputado por um clube ou seleção da cidade, com jogos em seus respectivos campos, com bilheteria, com Regulamento rigoroso limitando a cada clube contratar apenas três (03) jogadores de fora, ainda amador, foi convencer os demais diretores da Lema da viabilidade da competição. Alguns diretores não acreditavam na credibilidade e capacidade do presidente para conduzir e realizar o evento.

– “É muita responsabilidade! São muitos os enroscos. Se a liga não conseguir resolver os pepinos que irão surgir e o campeonato não chegar ao final, a Lema cairá em descrédito na região”, disseram alguns dirigentes desconfiados.

– “Mas se você achar que dá conta, faça um contrato de gaveta assumindo toda responsabilidade sobre o evento. Se der lucro é seu, se der prejuízo… você paga!”, aconselhou um tesoureiro da Lepa.

O jovem e obstinado presidente, apesar do descrédito, acreditava nos seus ideais. Por isso calçou as chuteiras e entrou em campo.

Monte Sião. A Associação Atlética Montessionense estava se preparando para disputar a Terceira Divisão da FMF quando descobriu a Copa Belato…

 

COMO CHEGAR AOS DIRIGENTES DA REGIÃO

Jacutinga: esse time, de 88, tinha vários jogadores remanescentes do futebol profissional. Levou o ultimo caneco da edição.

O desafio maior foi contactar e convencer os dirigentes das cidades vizinhas a participarem do campeonato. Naquela época o celular ainda não havia saído da mente de Steve Jobs. O computador ainda era a tradicional máquina Olivetti Linea 98 – que a Lepa nem isso possuía! Os regulamentos e as sumulas dos jogos eram, portanto, datilografadas e reproduzidas no mimeógrafo, ou então na máquina de xerox da papelaria Dom Nery. Os contatos com os cartolas dessas cidades eram feitos através do velho telefone fixo – que poucos tinham. Nalgumas delas o telefone ainda era de três dígitos, via telefonista. O contato com prefeituras, secretarias de esportes, ou simplesmente ‘donos de times’ da região, que ainda mantinham alguma ilusão com o futebol, tinha que ser feito pessoalmente, nas respectivas cidades.

Bueno Brandão tinha jogadores como o centroavante “Nego” (primeiro agachado ao lado da bola), que não devia um centavo para os craques milionários de hoje.

“Teve início uma epopeia, cidade por cidade, tentando reunir os desportistas para ressuscitar o futebol da região! Em duas semanas visitei cerca de 50 cidades no entorno de Pouso Alegre, para, ao final, reunir 08 (oito) seleções! Fiz as viagens, algumas sozinho e outras na companhia do meu fiel escudeiro Masaharu Sato, a bordo do meu chevette 74. O chevettinho mais rodado do que bolsinha da Perimetral, tinha um buraco no assoalho. Na serrinha de Heliodora para Natércia, já no início da noite, tentando escapar de uma chuva que subia a serra, entrou tanta poeira no carro que quase não enxerguei as curvas. Quando chegamos a Natércia estávamos amarelos de poeira! Rsrsrsrs… No dia seguinte, depois de terminar os contatos na cidade de Munhoz, eu pretendia seguir para Toledo e de lá voltar pela Fernão Dias. No entanto, meu sexto sentido me aconselhou a voltar para casa por Inconfidentes. Durante o percurso pela MG 290, percebi que o volante estava meio fora de lugar, mas não dei importância ao fato. Ao distorcê-lo para entrar na garagem em casa, descobri por que ele estava torto! A barra de direção havia quebrado na estrada de terra entre Monte Sião e Bueno Brandão! Felizmente meus anjos da guarda me aconselharam a desistir da viagem a Toledo e voltar para casa!

Munhoz, bancado pelo batateiro Peres, tem muitas histórias para contar, dentre elas: era campeão de público e renda. Qualquer jogo levava mais de 800 torcedores ao estádio! Chegou à semi final de 92, mas caiu no ‘tapetão’ da JJD da Lepa. Motivo: o regulamento da Copa Belato permitia (03) três ‘jogadores de fora’. O time tinha 08. Três juniores do Mogi Mirim, o goleiro Neneca (aposentado do Bragantino) e outros quatro das cidades vizinhas.

 

“Após quase duas semanas visitando velhos cartolas e descobrindo outros novos, em dezenas de cidades, consegui reunir 07 (sete) para realizar meu sonho de integrar o futebol amador da região do extremo sul do Estado. Participaram do primeiro certame as seleções de Espírito Santo do Dourado(João Neto), Machado(Helio), Heliodora (Chumbinho), Ouro Fino(Tonhão e Josias), Ipuiuna(Dininho) e Monte Sião(Simão) e os clubes Juventus do Ze Maria e Guarani do Niquinho, de Pouso Alegre.

 

Conceição dos Ouros, bancado pelo comerciante João Toureiro(camisa azul), disputou duas edições.

Nos anos seguintes outras cidades foram aderindo à Copa Belato tais como São João da Mata, Silvianópolis(Heleno), São Gonçalo do Sapucaí, Careaçu (Pedrinho), Conceição dos Ouros(João Toureiro), Paraisópolis (Secr. Esportes), Estiva (Fuscao e Salvador), Cambui (Claudio Manni) Camanducaia( Celio Santos), Itapeva (Neguinho da Copasa), Extrema (Sansão), Borda da Mata (Lua), Inconfidentes (João Língua), Bueno Brandão (Kleber), Munhoz(Dito Perez) e Jacutinga(Soleo).

Borda da Mata tinha no elenco grandes jogadores, mas não conseguiu o apoio dos velhos cartolas da cidade e nem da torcida. Tirou Munhoz no ‘tapetão’ e foi à semi final, mas parou por aí.

Na ultima edição da Copa Belato, realizada no último ano de mandato da Liga, em 1992, chegamos a 24 equipes de 22 cidades”.

 

CESAL – Time de garotos do treinador Salvador Lopes (de boné), tinha apoio de cartolas da região como Ernani Braga e Rogerinho da Borda e da torcida.

ARBITRAGEM

     Os árbitros, inicialmente, eram de Pouso Alegre. Com o crescimento dos campeonatos, trouxemos um trio de árbitros de Santa Rita do Sapucaí e outro de Ouro Fino. Para tal, realizamos neste período três cursos de arbitragem ministrados pelo professor Juarez Chaves Salgado, da FMF.

 

Trio de elite: Carlos Roberto de Oliveira, Vinicius Gonçalves Mariano (que nada devia aos melhores árbitros do profissional da CBF) e o saudoso e quase lendário Masaharu Sato…

PREMIAÇÃO DO CAMPEONATO

     Em todos os anos a LEPA premiou com troféus medalhas o campeão, o vice, o artilheiro da competição, o goleiro menos vazado, o destaque do campeonato, e, para incentivar os policiais a garantir a segurança nos estádios, instituiu o troféu “melhor policiamento de campo” – a PM de Congonhal abocanhou quase todos!

 

Troféu exposto na abertura da 4a edição do campeonato, no Estádio Municipal de Ouro Fino, com a presença do patrocinador do evento, Deputado Jose Adamo Belato. Meses depois o troféu foi entregue ao campeão Cantareira em Borda da Mata.

STATUS DE FEDERAÇÃO

 

“Em novembro de 1987 mudei a denominação da LEMA- Liga Esportiva Municipal de Amadores para LEPA – Liga Esportiva de Pouso Alegre. A seriedade e firmeza da organização do campeonato regional e o brilho das competições deram à entidade regional o status de FEDERAÇÃO. Onde o representante da LEPA e o trio de árbitros chegavam, eram tratados como autoridades.

– “Olha o pessoal da Federação chegando”, diziam diretores e torcedores das cidades vizinhas!

Nos últimos anos, a confiança depositada na Lepa na organização da Copa Belato era tanta, que alguns dirigentes nem se davam ao trabalho de participar do arbitral.

– “O que vocês decidirem aí tá bom pra nós. E só mandar a tabela e o regulamento que nós estamos de acordo”, dizia Soleo, Secretário de Esportes de Jacutinga, que já havia participado da 3ª Divisão de Profissionais da FMF.

Guarani (Pouso Alegre): Cipozinho (com a bola) foi o responsável por marcar o GOL 10 MIL da Lepa na gestão 87/92.

     O período mais retumbante desse segundo capítulo do futebol de Pouso Alegre, talvez o mais marcante de toda sua história, foi de 87 a 92. Além da mudança na denominação, dando-lhe IDENTIDADE REGIONAL, a liga ganhou caráter eclético passando a promover outras modalidades esportivas além do futebol tais como VOLEY, FUTSAL e CICLISMO. Em 1988 promoveu o JEPA. Nessas duas gestões foram criadas e realizadas todas as categorias básicas do futebol: Fraldinha, Mirim, Infantil, Juvenil, Junior, Veteranos. Nos últimos anos da gestão foi criada a SEGUNDA DIVISAO do futebol amador da cidade. Durante os seis anos dos dois mandatos, foram realizados mais de sessenta (60) campeonatos de futebol e outros eventos de voleibol, futsal e ciclismo.

      Nesse curto período foram assinalados 11.480 gols em competições oficiais da LEPA.

     O “gol 10 mil” daquela gestão – 87/92 – aconteceu dentro da Copa Belato. Foi assinalado às 17:27h do dia 7 de abril de 1991 no campo da Escola Profissional. Foi o segundo da goleada de 5 x 0 imposta pelo Guarani do São Geraldo à seleção de Bueno Brandão.

     O histórico gol “10 MIL” foi marcado pelo camisa 7, CIPOZINHO, da equipe alviverde de Pouso Alegre.

Itapeva (do cartola Negrinho), participou de quase todas as edições com brilhantes campanhas.

 

OS CAMPEÕES da COPA BELATO

 

– 1987 Espírito Santo do Dourado (Douradense) – Vice Heliodora

– 1988 Congonhal                                                    – Vice Douradense

– 1989 Ouro Fino                                                     – Vice Ipuiuna

– 1990 Pouso Alegre (S.C. Cantareira)                  – Vice Congonhal

– 1991 Monte Sião (A.A.Montessionense)             – Vice Jacutinga

– 1992 Jacutinga                                                      – Vice Monte Sião

      A partir de 1993, e até meados da segunda década deste século, o futebol amador e o profissional de Pouso Alegre estiveram adormecidos. Em 2018 o futebol profissional (PAFC) retomou sua história, nos gramados, e tem brilhado cada vez mais.

     O futebol amador continua adormecido – senão morto!

 

*** O que você acabou de ler não está escrito em nenhum arquivo público… Infelizmente!

Tudo que foi realizado – e não foi pouca coisa! – entre os anos 1987 e 1992, quase 80 eventos esportivos, perdeu-se em folhas de papel datilografadas. Não há mais registros!

*** Jose Adamo Belato – Deputado Estadual -, de Monsenhor Paulo, foi o patrocinador da premiação do campeonato, por isso seu nome na competição regional.

Mauritana Furtado… meu anjo da Borda!

Naquela noite fiz o melhor banquete da minha vida: arroz, feijão e bife… servido em um prato de louça, raso, com garfo e faca! 

Passava pouco de 13h quando encontrei meu amigo Rui de Paula em frente o Palácio do Bispo em Pouso Alegre.

– Está tendo festa na Borda! Vamos vender pipoca lá? – convidou ele.

– Vamos … – respondi eu, sem pensar duas vezes… e sem ter a menor ideia de onde ficava essa tal Borda!

Como se estivéssemos indo ao bairro vizinho iniciamos a caminhada. Pegamos a Silviano Brandão, a Alferes Gomes de Medela, passamos pela Remonta, passamos pela entrada da Vendinha e pegamos a estrada. No meio da tarde estávamos na baixada do bairro Anhumas. Aquele carrinho branco todo enfeitado de pipocas coloridas empurrado por dois garotos, passando lentamente pela estrada, atraiu a atenção de uma dúzia de lavradores numa plantação ali na várzea. Eles pararam de capinar o arrozal e vieram até a beira da estrada, curiosos, querendo entender o que era aquilo! Alguns deles tinham dinheiro na algibeira … e todos comeram pipoca doces coloridas e amendoim torrado coberto com chocolates!

 

Às sete da noite entramos na rua principal de Borda da Mata, bastante cansados, empurrando o carrinho de guloseimas. Quinze minutos depois entramos numa ruazinha transversal onde algumas crianças brincavam. Ali o carrinho de doces começou a esvaziar.

 

Foi ali naquela ruazinha transversal que eu a conheci.

 

Atraída pelo burburinho da criançada ‘que nem formiga no doce’, ela apareceu no portão de uma casa com grades na frente. Era a senhora Mauritana Lopes Furtado. Na verdade, eu só guardei o sobrenome “Furtado”. Mas nunca esqueci o gesto daquela senhora. Muito menos o que ela nos ofereceu!

 

Curiosa para saber de onde vinham aqueles dois meninos franzinos empurrando aquele vistoso carrinho de doces, ela se aproximou e puxou prosa. Minutos depois, quando a criançada se afastou lambuzada e feliz, a bela senhora morena, de meia idade, apareceu com o nosso jantar. Sentados no passeio defronte sua casa, eu e o Rui, degustamos o banquete! Não me lembro de ter comido, até então, uma comida tão chic e gostosa: arroz, feijão e bife em um prato raso de louça branco, com garfo e faca. Até aquele dia eu só conhecia prato fundo esmaltado… e colher! Não foi somente o prato de comida deliciosa que a boa e linda senhora morena nos deu. Deu também um pouco de carinho, de afeto… de amor. Depois de seis horas empurrando o carrinho de pipocas pela estrada, precisávamos de tudo isso. Minutos depois chegamos à praça central da cidade, completamente lotada, comemorando o dia da padroeira N.S.do Carmo. Era dia 16 de julho de 1971. Eu já era um mocinho… tinha 13 anos!

 

No dia 17 de setembro de 2014, um mês depois de publicar meu primeiro livro de crônicas policiais, voltei à Borda da Mata. Desta vez fui sozinho, de carro. Fui visitar meu anjo da Borda e pagar aquele jantar com um presente. Dei-lhe um exemplar do livro “Meninos que vi crescer”, no qual eu citava seu nome naquele longínquo ano de 1971. Mauritana morava na mesma casa onde fiz a melhor refeição da vida, 43 anos atrás! Não era hora de jantar, mas não saí de lá sem mimos e o afeto da senhora Mauritana Furtado, já octogenária.

Entre nós foram apenas estes dois encontros… o suficiente par fazer morada em meu peito.

Nesta terça-feira, 08 de abril, Mauritana foi chamada se volta à Casa do Pai. Voltou para os braços do Criador, onde sempre teve lugar cativo.

Boa viagem meu anjo Mauritana.

Sequestro em Borda da Mata…

 

     Os pretensos sequestradores só não imaginavam que o prefeito tinha estreita amizade com o famoso Delegado Fleury, caçador de subversivos!   

     O imbróglio aconteceu no início de janeiro quando um proeminente político da cidade recebeu ameaça de sequestro!

– “Queremos 100 milhões de cruzeiros, caso contrário vamos sequestrar sua neta. Se avisar a polícia, será pior” – dizia o bilhete dos sequestradores.

Apesar de apavorado com o possível sequestro, o político procurou um amigo do DOPS em São Paulo e pediu orientação sobre como agir. O tal amigo paladino da lei era ninguém menos do que o delegado Sergio Paranhos Fleury, incansável perseguidor de subversivos e um dos responsáveis pela morte do revolucionário Carlos Marighela, anos antes, em São Paulo. O notório paladino da lei então orientou o político bordiano a dar corda para os sequestradores.

– “Negocie… faça parecer que você está morrendo de medo! Mas concorde em pagar o solicitado… e nos mantenha informado sobre dia, horário e local do pagamento. Vamos montar uma “casa de caboclo” para os sequestradores”.

O local e horário da entrega da bufunfa foi marcado para o início da manhã na encruzilhada de uma estrada rural no município de Borda.

– “Deixe o saco com o dinheiro no ‘ponto de leite’” na encruzilhada e desapareça – orientou o sequestrador com voz de homem mau.

Assim foi feito. De manhãzinha um empregado do político deixou o saco cheio de papel no referido ponto de leite e se afastou. Enquanto isso, alongados no matagal nas imediações, vários detetives do DOPS de São Paulo, a mando do temível delegado Fleury, aguardavam atentos para dar o pulão no primeiro que colocasse as mãos no saco de dinheiro.

Enquanto os policiais mocosados no mato desde a madrugada, aguardavam tensos o lento movimento dos ponteiros do relógio, prontos para prender ou trocar tiros com os sequestradores, um pacato retireiro se aproximou do local. Chegou numa bagageira velha cheirando a leite azedo, puxada por um cavalinho baio trazendo um latão de leite como fazia todos os dias. Depois de depositar o latão encardido cheio do precioso líquido branco sobre o pequeno deque de madeira respingado de barro, o sitiante notou a presença do saco ali ao lado. Curioso como todo mineiro – ainda mais mineiro da roça! – pegou o saco, sacoalhou, – deve ser daí que surgiu a expressão ‘sacoalhar’ – sentiu o peso, encostou na orelha pra ver se mexia, se falava, se estava vivo, e lentamente desatou a cordinha do saco para ver o que havia dentro.

Neste momento os agentes armados até os dentes, saíram do mato e pularam sobre o perigoso ‘sequestrador’! Sem entender o que estava acontecendo, o humilde sitiante esperneou, esmaneou, mas acabou recebendo as pulseiras de prata. Enquanto aguardavam a viatura chapa fria que havia sido chamada através do rádio Walkie-Talkie, Pedro Leite tentava explicar aos carrancudos agentes que ele era apenas o sitiante, dono do sítio Pedra Mansa, logo depois da curva da nascente do Rio Mandu. Mas ‘não teve choro e nem vela e nem fita amarela’. O leite azedou, quero dizer, a coisa azedou para Pedro Leite! Tratado como um perigoso e disfarçado sequestrador, ele foi colocado no porta-malas do taxi do contribuinte paulista e levado direto para a sede do DOPS em São Paulo.

Cavalos, mesmos os mais pacatos, não costumam acatar ordens para ir a algum lugar. Muitas vezes precisam do ‘carinho’ do acoite para obedecer. No entanto, para voltar para casa nem precisam de ordens. Tão logo sentiu a ausência do dono, o cavalinho baio, que conhecia de cor e salteado o caminho do sítio, voltou passo a passo para casa. A chegada da bagageira vazia encheu Maria de interrogações!

Onde estaria seu marido?

Teria caído da bagageira e morrido naquele pequeno trajeto?

Teria ficado pelo caminho jogando conversa fora com algum sitiante vizinho?

Teria sido abduzido por um OVNI?

Teria abandonado o lar e fugido com aquela lambisgoia filha do fazendeiro goiano?

Teria sido levado para o além pelo ‘Chiquinho da Borda’?

Com a demora do sitiante em voltar para casa, um mirrado menino de pés no chão seguiu os passos inversos do cavalinho baio até o ‘ponto de leite’ à sua procura. Algumas horas de mistério depois, o Jipe do vizinho Abrão levou dona Maria e sua ansiedade ao quartel da polícia militar na cidade. Em poucas horas o sumiço de Pedro Leite reuniu todos os policiais da cidade – um sargento, um cabo e tres soldados – além de meia dúzia de curiosos.

Enquanto o ‘perigoso’ sequestrador era levado pelos agentes para São Paulo, o restante da equipe do delegado Fleury ficou espalhado por Borda da Mata, disfarçados de vendedores de cortes de fazenda, para tentar descobrir o restante da quadrilha. Naquela mesma noite outros quatros suspeitos de extorsão receberam as pulseiras de prata dos homens do delegado Fleury, e entraram na manguara. No dia seguinte, desfeita a ‘varada n’água’, os quatro suspeitos, com o lombo ardendo, voltaram para casa.

O pacato sitiante Pedro Leite, que teve a curiosidade de abrir o saco de papel picado no ponto de leite, não teve a mesma sorte. Ele desapareceu. Quatro dias depois ele foi encontrado numa cela correcional da delegacia Regional de Polícia de Pouso de Pouso Alegre. Ninguém soube explicar como ele foi parar ali. Sem muito alarde, o sitiante voltou a tirar seu leitinho de cada dia no Sitio Pedra Mansa, perto da nascente do Rio Mandu. E ficou o dito pelo não dito.

Era o auge da ditadura militar. Equívocos eram comuns. Explicações eram dispensáveis. O imbróglio do sequestro da Borda, incluindo as arbitrariedades praticadas pelo delegado Sergio Fleury fora de sua jurisdição, chegou até o General Newton Cruz, comandante da AD4 em Pouso Alegre. No entanto, o sisudo general, que era simpático às ações dos policiais que combatiam subversivos, fez vista grossa. Nunca se soube como e porque os sequestradores escaparam das garras do temível delegado Fleury. Talvez eles tenham percebido a arapuca em que estavam prestes a cair e abortaram o sequestro da neta do prefeito. O fato é que o imbróglio nunca foi esclarecido… sequer comentado na cidade. Mas isso não é novidade em Borda da Mata. Apesar de ter ganhado o Brasil e o mundo, a famosa história do “Coisa Ruim da Borda” foi enterrada, sem explicações, tão logo o espírito secular do Chiquinho abandonou a fazenda da Ponte de Pedra. Se o Conego Edson Oriolo, muitas décadas depois, na tentativa de arrebanhar mais fiéis para sua igreja, não tivesse ressuscitado a história do sepulcro do ‘sagrado’ “Livro do Tombo”, dando publicidade aos fatos quase meio século depois – fatos posteriormente investigados pelo detetive Airton Chips e contados no livro ‘Meninos que vi crescer’ -, hoje nada saberíamos da passagem do Chiquinho pela capital do pijama.

      A história do sequestro da neta do ilustre político não foi parar no Livro do Tombo. Por essa razão, certamente, o imbróglio foi parar no “Livro do Esquecimento”. Tal qual a história do Chiquinho, sepultado na noite do dia 23 de abril de 1953, o obnubilado imbróglio do sequestro da Borda e prisão equivocada de inocentes e até policiais, permanecem vivas apenas nas crônicas policiais de alguns abnegados abelhudos que insistem em preservar fatos que marcam a história da nossa região.

 

*** Embora o imbróglio do sequestro de Borda permaneça tacitamente sob absoluto sigilo, ele aparece em ao menos um capítulo no livro “Borda da Mata e sua história”, escrito pelo Sr. João Bertolaccini. O historiador, no entanto, dá outra roupagem à passagem do Delegado Fleury por Borda da Mata no alvorecer do ano de 1977.

… E assim surgiu o Coisa Ruim da Borda!

“Se eu ficar rico logo, a primeira filha mulher que eu tiver darei em casamento ao capeta!”

* Os bastidores dessa investigação, a ojeriza dos bordianos ao seu personagem ‘mais ilustre’, as curiosidades, os medos que a família do Portuga passou – e eu também! Os depoimentos das pessoas que se arrepiaram com a presença do “Chiquinho” na fazenda da Ponte de Pedra… Tudo isso está no meu primeiro livro de crônicas policiais, “Meninos que vi crescer”, com o título “O mistério do Coisa ruim da Borda”!

Pouso Alegre, apesar de ter soprado quase oitenta velinhas, ainda era uma criança. Criança alegre, sorridente, viçosa, pujante… Naquele início de século já dava mostras de que cresceria e se tornaria referência no Sul de Minas e no Estado das Geraes. Criança também era a noite daquele longínquo sábado de outono quando o caminhãozinho Chevrolet preto – ignição à manivela – estacionou rente ao canteiro da Avenida Duque de Caxias, no coração da cidade. Os dois amigos desceram do caminhão, pegaram suas pequenas tralhas, atravessaram a avenida e em poucos passos entraram na “Pensão da Vovó”. Fazia pouco mais de seis meses que moravam num quartinho dos fundos da velha pensão de paredes pintadas de verde, na esquina da Duque de Caxias com Bueno Brandão, de frente para o santuário. Estavam cansados. Haviam trabalhado desde as primeiras horas da manhã transportando mudanças na cidade e arrabaldes. Era o único caminhão apropriado para esse tipo de transporte na cidade. Não tiveram dificuldades para tomar banho no banheiro coletivo da pensão naquela noite. Eram os únicos hospedes naquele final de semana.

Joaquim e “Manuel” haviam chegado ao Brasil a cerca de um ano. Os dois amigos trouxeram nas guaiacas apenas o suficiente para a subsistência de alguns meses e, quem sabe, para iniciar um pequeno negócio. Desembarcaram em Santos, mas não criaram raízes na Baixada. Subiram a serra, ficaram alguns meses em São Paulo e subiram para o Sul de Minas. Acreditavam que o grande estado mineiro tinha mais a oferecer a dois jovens aventureiros com tino comercial como eles. Por isso fixaram residência na hospitaleira Pouso Alegre, única cidade banhada pelo pequenino, piscoso e charmoso Rio Mandu.

Os negócios iam de vento em popa. Quase metade do caminhão já havia sido pago. O restante, conseguido à juros junto a um patrício, seria quitado na segunda feira seguinte. O dinheiro, guardado em um rústico saco de estopa, era levado atrás do banco do caminhão para todo lugar que iam. À noite, o saco dormia em segurança debaixo da cama, ora de um, ora de outro. Os dois amigos tinham por hábito, todo sábado, visitar as “primas” a dois quarteirões da pensão, na Rua David Campista. Naquela noite, no entanto, estavam muito cansados e sem vontade de sair para satisfazer os desejos da carne. Não foram para os braços e abraços – comprados – das ‘mademoiselles’ da Zona Boemia, mas não abriram mão da sedutora ‘Severina do Popote’. Durante o jantar solitário na saleta térrea da Pensão da Vovó, se esbaldaram no suco de gerereba, principalmente “Manuel”. Joaquim, sorrateiramente, mais observava o socio e amigo do que bebia.

Naquele domingo “Manuel” acordou tarde. Acordou com o sino do santuário chamando os fiéis para a missa das nove. Custou a abrir os olhos. E quando abriu notou que o amigo Joaquim já havia se levantado. Notou também que sua pequena cama a pouco mais de um metro da dele, estava arrumada. Sentou-se na beira da cama com a cabeça entre as mãos. Lembrou-se de Severina do Popote. ‘Moreninha’ era sua cachaça preferida… mas bebera demais na noite anterior! A cabeça latejava! Mal sabia ele que sua dor de cabeça iria aumentar muito mais. A caminho do banheiro coletivo, com a toalhinha encardida no ombro, para lavar o rosto como fazia toda manhã, “Manuel” interpelou a dona da pensão.

– Bom dia Vovó. Sabe se meu sócio foi à missa?

– Bom dia ‘seu’ “Manuel”… Não. Joaquim saiu cedinho levando uma mala. Pelo jeito ia viajar… – respondeu a simpática e obesa senhora com seus cabelos turvos amarrados em tranças acentuado seu ar de vovó.

As palavras ‘cedinho’, ‘mala’, ‘viajar’ bateram como balas de canhão na cabeça de “Manuel”. Por um instante ele ficou paralisado, com a boca aberta, o queixo caído, os olhos arregalados, como se estivesse viajando para um lugar desconhecido qualquer. Foi a voz doce da velha senhora que o trouxe de volta.

– Aconteceu alguma coisa? O sr. está se sentindo bem?

Ao despertar do breve estado letárgico “Manuel” correu de volta ao quartinho dos fundos. A resposta às perguntas da dona da pensão veio segundos depois… e veio aos berros, impropérios e maldiçoes!

– O saco com o dinheiro não está aqui! Maldito Joaquim! O salafrário roubou meu dinheiro. Aquele filho de uma égua roubou o dinheiro que suei tanto para ganhar! Ele vai arder nas chamas do inferno, ora pois, se vai! Desejo que um raio caia na sua cabeça antes que ele use o meu dinheiro… Safado, ladrão, porco, filho de mariposa, covarde. Foi pra isso que ele me fez beber tanto ontem à noite! Mas o capeta vai fazer justiça. Ele há de perder tudo rapidinho e sofrer como eu estou sofrendo agora! Maldito, maldito, maldito – dizia “Manuel” esmurrando com as duas mãos a própria cabeça.

Sem o sócio e amigo – da onça – para dividir as tarefas da ‘transportadora’ e sem o dinheiro para pagar o empréstimo que fizera para comprar o caminhão, “Manuel” teve que vende-lo. Envergonhado e desiludido com a traição do conterrâneo, ele mudou-se da Pensão da Vovó e de Pouso Alegre. Após vender o caminhão e quitar a dívida com o agiota, com a pequena quantia que sobrou, o portuga arrendou um pequeno sitio nos arredores de Borda da Mata e ali recomeçou sua vida. Desta vez sem sócios! Se o amigo e compatriota Joaquim o fez chorar de raiva, a vida, os negócios o fizeram sorrir. Estava predestinado a ganhar dinheiro com o seu trabalho. Mas tinha pressa! A vontade de ficar rico, a disposição para o trabalho e o tino para os negócios, alavancaram o seu sucesso. Em poucos anos passou de arrendatário a proprietário do sítio. E a fazenda no alto da serra da “Ponte de Pedra” foi crescendo.

Não se tem notícia de que “Manuel” tenha sido desonesto com alguém, mas era avaro e jamais jogava no lixo uma oportunidade de levar vantagem nos negócios. Certamente “Manuel” não foi o criador do “jeitinho brasileiro”, mas foi, com certeza, um dos mais ferrenhos fomentadores dessa prática, hoje pejorativa. Embora fosse religioso, frequentava a igreja católica apenas por conveniência social. Trabalhador sacudido e talhado para os negócios, qualquer deus que pudesse lhe dar alguma vantagem nos negócios, poderia ser seu Deus. E parecia não estar preocupado com as consequências desse comportamento às vezes mesquinho e materialista. Foi assim que certo dia, já casado e com família constituída, com os negócios se expandindo e a fazenda crescendo, ele proferiu uma frase que colocaria a pequenina Borda da Mata no mapa do Estado e do país.

“Se eu ficar rico logo, a primeira filha mulher que eu tiver darei em casamento ao capeta!”

As pessoas que ouviram tal blasfêmia em tom de mofa, não deram atenção à ‘promessa’. Mas o capeta ouviu… e anotou na sua agenda!

A ‘prometida’ nasceu em 1940. Treze anos depois, ao chegar à idade casadoira – comum naquela época – Mocinha começou a receber as visitas e cortejos do seu… “Príncipe das Trevas”! Era meado de janeiro quando o Coisa Ruim da Borda apareceu para cobrar a promessa do portuga!

O assédio do “Chiquinho” deixou a cidade em polvorosa e atraiu a atenção de toda imprensa nacional e até estrangeira. Durante meses, meia dúzia de padres da região e centenas de jornalistas desfilaram pela pequenina “terra do pijama” tentando desvendar o mistério do Coisa Ruim da Borda.

Em 2010 eu visitei a cidade algumas vezes. Estive no velho casarão da fazenda onde tudo aconteceu, resgatando a velha história. Durante minhas investigações, em pelo duas ocasiões, pude sentir um pouco do medo que a família do Portuga sentiu em meados do século passado.

O maior mistério, no entanto, é a rejeição que os bordianos tem da própria história. Eles não gostam nem de ouvir a menção ao coisa ruim. Se você perguntar a um bordiano alguma coisa sobre o Coisa Ruim, ele vai fazer o mesmo que o ‘espírito brincalhão’ fez há 70 anos… vai fugir de você como ‘Chiquinho’ fugiu da cruz do padre Pedro Cintra!

Um tiro à sangue frio!

      O motivo demoraria alguns anos para ser compreendido…

A pantera negra deslizava suavemente pelo asfalto quente da rodovia naquele início de tarde. De repente meu pequeno passageiro, que parecia cochilar, acordou o assunto que dormia há quase uma semana.

– Você pode contar agora a história do seu vizinho, aquele que evoluiu em relação aos cães igual ao Osvaldo – perguntou ele voltando ao assunto interrompido na chegada à Pouso Alegre na semana anterior.

– Hein… Ah sim, posso. Mas tenho de avisá-lo que a história, apesar de … instrutiva, é um tanto triste! Está preparado para ouvir?

Daniel se ajeitou bem no banco e fez uma carinha dramática antes de responder.

– Eu estou com onze anos. Já aprendi que a roseira, além de rosas, também tem espinhos.

Olhei surpreso para meu filho. Surpreso com sua citação filosófica, embora soasse como frase feita! Mas nada comentei. Entrei direto na história antes aludida.

– Bem, filho… essa história eu vivenciei quando eu era pequeno… Acho que eu tinha a sua idade. Como eu te falei antes, a relação do homem com seus cães, naquele tempo, era apenas de serventia… O cão não podia ‘trazer problemas’ para o seu dono. Se isso acontecesse, o cão perdia o ‘emprego’ e, não raro… a vida!

Daniel olhou rápido para mim, mas nada disse. Continuei.

– Briosa era o nome da nossa heroína. Ela pertencia a um sisudo sitiante com o qual eu avizinhei na infância, quando ainda usava calça curta e cortava o cabelo na ‘cabaça’. Briosa teve a infelicidade de nascer no século passado, bem lá atrás! – fiz uma pequena pausa para ultrapassar uma fila de carretas na subida. Tão logo a pista clareou à minha frente retomei a narrativa.

– Como eu disse antes, a importância e afinidade dos ‘pets’ na vida das pessoas é coisa recente, coisa do século XXI, resultado natural da evolução da espécie humana. Até poucas décadas atrás os cães só tinham uma utilidade: servir ao homem, especialmente na zona rural. O cão servia apenas para vigiar o quintal, espantar bichos à noite, tanger o gado… A única recompensa por estes serviços eram duas refeições diárias – restos de comida colocada numa tigela velha ou na tampa da marmita na roça. Os cães de hoje têm nomes pomposos e pertencem ao ‘gênero’ ‘pets’! Até o século passado eles pertenciam ao gênero ‘cachorro’… Eram batizados ou rebatizados com os nomes de Lulu, Leão, Bolinha, Briosa, Brilhante, Rajado, Peludo, Pantera, Risonha, de acordo com a aparência, característica ou habito de cada um. Briosa era uma cadelinha do ‘gênero cachorro’. Era malhada de branco e amarelo, pequena, alegre, obediente, acanhada e dedicada ‘recepcionista’… ninguém se aproximava da varanda do seu dono sem ser anunciado por ela! Por isso mesmo era muito querida pela família. Tinha grande serventia no sítio… desde que não levasse ‘problemas’ para casa! Não podia correr atrás de galinhas – a menos que o dono quisesse encantoar a galinha para pegá-la -, não podia comer ovo no ninho, não podia morder visitas ou vizinhos, não podia aumentar a prole…

– O que é prole? – interrompeu meu ouvinte.

– Filhos. Para o seu dono, Briosa não deveria engravidar e ter filhos. Pelo seu porte físico e estilo de vida livre, leve e solta, Briosa teria vivido seguramente uns quinze anos, mas… Cometeu um pecado! Pecado natural e inevitável a toda espécie animal: entrou no cio! Nesse dia ela selou seu destino.

Daniel franziu a testa e fixou os olhos em mim. Continuei, agora com um toque de mistério.

– Como a maioria dos cães da roça, Briosa costumava acompanhar seu dono na lida no pasto, na lavoura. O dono não precisava dar nenhuma ordem. Bastava se afastar do quintal que a cadelinha seguia atras dele… às vezes na frente. Naquela manhã, ao sair para cuidar da lavoura junto com seus filhos imberbes, meu vizinho levou dois objetos estranhos à rotina: um pedaço de corda de pouco mais de um metro e a velha espingarda cartucheira. Alheia aos objetos estranhos e sua utilidade, Briosa seguiu tranquila ao lado dos donos, ora na frente, ora ao lado, ora atras, ora espantando um passarinho ou simplesmente sorrindo com a língua pra fora atendendo um chamado ou assovio dos meninos.

Meu ouvinte registrava cada palavra que ouvia. Atento.

– Ao chegar ao local da lida, não muito distante da moradia, meu vizinho passou a cordinha no pescoço da cadelinha, amarrou a outra ponta no pé de um arbusto numa elevação do terreno, retirou a espingarda do ombro, aproximou o cano a pouco mais de um metro da cabeça dela, fez mira!…

Daniel engoliu em seco. Mas não abriu a boca para não interromper a narrativa.

– Briosa, com a língua de fora, ainda arfante do esforço para acompanhá-los, ficou olhando curiosa para o cano escuro da espingarda, tentando adivinhar que tipo de brincadeira nova era aquela. O indicador da mão direita do dono foi pressionando lentamente o gatilho da espingarda, até que … Buuummmm!

O meu ‘bum’ inevitavelmente saiu com um volume bem mais alto. Daniel deu um pulo na poltrona. E continuou calado, torcendo para que eu não confirmasse o que ele imaginava. Baixei o tom e minimizei o fato.

– Briosa não deve ter ouvido nada. Se ouviu, não compreendeu… Não teve tempo de compreender. Os filhos do sitiante, meninos malungos meus, também de calça curta e cabelos cortados na cabaça, ouviram o estrondo e viram a cena… Mas também não compreenderam!

Meu filho quis fazer perguntas, confirmar o que havia entendido, mas a voz não saiu. Continuei no mesmo tom sutil.

– O restante da manhã seguiu sem incidentes, em silencio. No final do trabalho pai e filhos, a cordinha com alguns respingos de sangue ressecados e a espingarda ainda cheirando à pólvora, voltaram para casa – falei lentamente.

Daniel se remexeu, limpou a garganta, mas antes que as perguntas brotassem eu respondi…

– Briosa ficou lá, rente à cerca da divisa… debaixo de dois palmos de terra!

Meu pequeno passageiro afundou-se na poltrona. Precisava de silencio para acalmar seus sentimentos. Tentei sintonizá-lo com os sentimentos dos meninos que assistiram a cena.

– Levaria alguns anos para os meninos loirinhos entenderem o crime cometido pela cadelinha malhada. Ou o crime seria do seu dono?

Rodamos vários quilômetros de Fernão Dias em completo silencio…

 

* Esse texto é parte integrante de um novo livro que está em fase de revisão.

“Os Fantasmas do Velho Hotel… “

Construída em 1932, a velha cadeia testemunhou infindáveis, maquiavélicas e fantasmagóricas histórias. Desativado em 2009, o carcomido prédio ainda abriga em seus sombrios corredores muitos… ‘fantasmas’!

“Pedro Louco” é um deles!

      Pedro Louco protagonizou um dos fatos mais marcantes da história do Velho Hotel da Silvestre Ferraz. O fato aconteceu nos idos de 1970, no tempo em que puxar cadeia ainda era vergonhoso, mas de certa forma era também bucólico, romântico e principalmente educativo!

     Pedro Louco não era bandido. Ao contrário, era um sujeito honesto, trabalhador e honrado. Honra daquelas que se lava com sangue. Certa vez um conhecido caminhoneiro, aproveitando sua ausência, passou uma ‘cantada’ na sua esposa, na borracharia onde ela o ajudava. Ao tomar conhecimento da ofensa, Pedro Louco pegou seu trabuco e foi atrás do caminhoneiro abusado. A honra foi lavada na subida da serra de Ipuiuna. Desde então Pedro Louco tornou-se hóspede do Velho Hotel da Silvestre Ferraz.

     Com menos de trinta hóspedes no velho hotel naquela década, gozando do privilégio de preso ‘cela livre’, após distribuir os ‘bandecos’ e varrer os corredores, Pedro Louco descia para a delegacia, onde também fazia limpeza. De lá, eventualmente, dobrava a esquina e se dirigia ao bar do Vaguinho Dorigatti na Com. Jose Garcia, para abraçar a estonteante “Severina do Popote”. Ia e voltava sempre acompanhado de um detetive… que também gostava do famigerado suco de gerereba com torresmo!

Numa tardinha fresca de 78, quando Pedro Louco saía do bar do Vaguinho ao lado de um detetive, um irmão do caminhoneiro se aproximou sorrateiro e, sem alarde, descarregou o trabuco na cabeça do borracheiro! A fumaça dos tiros entrou pelas narinas do detetive antes que ele esboçasse qualquer reação.

Cumprida a vingança pela morte do irmão, o assassino entregou a arma ainda fumegante ao detetive e foi ocupar o lugar de Pedro Louco no Velho Hotel da Silvestre Ferraz!

 

* Pedro Louco é apenas um dos “Fantasmas do Velho Hotel da Silvestre Ferraz”.

No livro “Quem matou o suicida” há muitos outros”!

… Mariana, mãe do nóia JC

 

(Imagem ilustrativa)

“De repente a campainha do telefone arrancou Mariana dos seus pensamentos. Levou um susto. Era tudo que esperava! Um telefonema, de algum lugar, com alguma notícia! Podia ser de qualquer lugar. Desde que fosse a respeito do filho. Da varanda até a estante onde estava o aparelho não gastou três segundos! Pegou o aparelho e o apertou junto à orelha…

– Aê dona, seguinte… Seu filho tá agarrado aqui no muquifo, cheio de pedra. Se você não pagar o que ele me deve dentro de uma hora, vou encher ele de furo, tá ligado?

– Como é que é? Não entendi… meu filho… – tentou argumentar Mariana, mas foi interrompida pelo interlocutor com a voz ainda mais tenebrosa e incisiva:

– Seguinte dona, ‘prestenção’ que só vou falar uma vez… Faz dois dias que o vacilão do seu filho está aqui na baixada queimando a pedra. Conheço ele. Sei que ele não para, não. O nóia tá me devendo trezentas pratas! Se essa grana não estiver aqui dentro de uma hora, vou fazer picadinho dele, tá entendendo?

Mariana sentiu um filete de gelo escorrer pela espinha. Na verdade, quando o traficante falou atabalhoado pela primeira vez, ela já havia entendido. Já ouvira aquelas ameaças e cobranças outras vezes. Era sempre o marido quem ia buscar o filho na sarjeta, mas era ela quem atendia o telefone. Não tinha trezentos reais na carteira. Aliás, há muito não deixava dinheiro na carteira! Enquanto ouvia as ameaças do traficante ia pensando no que fazer. Teve ímpetos de mandar o traficante catar coquinhos, de dizer que não estava nem aí para suas ameaças, que não importava mais com o filho. Teve vontade de simplesmente desligar o telefone e ver no que dava. Afastou o aparelho do ouvido, olhou para ele com desprezo e ódio e o depositou placidamente no gancho, sem dizer uma palavra. Sentou-se muda no sofá. Sentiu um certo torpor.

… Viu o menino franzino balbuciar desajeitadamente o ‘mãmã’ com pouco mais de um ano.

… Viu o filhinho com a roupinha humilde, mas limpa, acenando para ela na porta da escola no primeiro dia de aula.

… Ouviu a voz eufórica do filho falando dos novos amigos da escolinha… Viu o garoto adolescente, sorrateiro, tentando esconder o boletim escolar cheio de anotações em vermelho…

… Viu o menino sair de casa tantas vezes bem arrumado, usando bermuda, camiseta e tênis novos, perfumado…

… Viu o filho tantas vezes chegar a casa com a roupa suja, rasgada, as vezes a roupa nem era dele, fedendo, às vezes descalço.

… Viu o menino enfurnado no quarto, taciturno, arredio.

… Viu o menino tantas vezes entrar no carro com o pai, levando uma pequena mochila nas mãos, partir para mais uma clínica de recuperação.

… Viu o corpo do menino magro, ossudo, pele empalidecida num caixão tosco na funerária…

… Viu o aparelho telefônico vibrando na estante.

Demorou para ouvir o som do aparelho. Pegou-o e o levou lentamente ao ouvido, muda. Ouviu a mesma voz de antes…

– E aê, tia! Vai deixar o vacilão morrer aqui mermo?

Mariana continuou muda.

– Tá de sacanagem, né tia! Tá de sacanagem que não sabe o que vai acontecer com o seu nóia? – insistiu o traficante já mais exaltado. Escute – disse ele – vou te fazer um favor… Vou levar seu filho aí na porta da tua casa agora. Quando chegar aí quero minha grana. Se não estiver com as trezentas pratas na mão, furo seu garotão aí na sua porta, na sua frente, tá ligado?”

 

 

(Paulinho & Mariana, os pais do nóia JC /“Quem Matou o Suicida” – Airton Chips – primavera de 2020).

 

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Flagrante!!!

A cena paralisou suas mãos!

Imagem ilustrativa

Apesar de a noite ser ainda uma criança, fazia muito frio na rua. Na penumbra do interior do carro, ligeiramente oculta pela sombra de uma arvore, Joana esperava pacientemente. Chegara no início da tarde à cidade. Tivera tempo de sobra para fazer sua investigação. Descobrira onde era o escritório, parte da rotina, dos horários e agora estava ali, a poucos metros da porta da casa de Paula. Segundo seus levantamentos ela saia do trabalho por volta das seis da tarde e antes de ir para casa passava no supermercado. Já eram mais de sete horas… estava demorando! De repente um carro diminuiu a velocidade, sinalizou e parou na frente do seu carro. Joana percebeu que era um homem ao volante. Sentiu o coração disparar! Esperou alguns segundos. A porta do passageiro se abriu e uma mulher protegida por um grande casaco bege saiu tentando equilibrar nos braços um pacote de papeis. Quando ela se virou para contornar a frente do carro, Joana pode ver com certeza: Era Paula! Um ligeiro frio percorreu sua espinha. Nesse instante a porta do motorista se abriu e um homem, que já mexia no banco traseiro, fez movimentos de descer. O coração de Joana bateu a duzentos por minuto. O homem saiu do carro de costas pra ela…

Era Renato?

O grande casaco escuro aumentava sua silhueta… O rapaz alto e corpulento, cabelos curtos… era Renato!!

Ele deu um passo em direção à Paula, recolheu os papeis das mãos dela, juntou os dois pacotes e atravessaram o passeio em direção ao portão da casa da jovem advogada. Joana tinha os olhos colados no casal.

Num instante ela abriu o portão, virou-se para o homem e deu-lhe um longo beijo apaixonado.

Joana ia saltar do carro para surpreender o casal, mas de repente ficou paralisada. A cena foi muito forte. Um misto de sentimentos a invadiu naquele momento. Queria não ter visto aquilo. Sentiu um certo asco! Por um segundo desviou os olhos.

Quando voltou a olhar para o casal, Joana já havia fechado o portão e Renato estava entrando no seu carro.

Era mesmo Renato! Estava mais magro e usava barba, coisa que não fazia há anos.

Enquanto pensava no que fazer, o motorista deu partida, deu seta e saiu do local. Joana pensou em seguir o carro de Renato, mas seus dedos travaram, grudaram no molho de chaves e ela não conseguiu dar partida.

Quando finalmente conseguiu virar a chave no orifício da ignição, o carro de Renato já virava a esquina.

“Foi melhor assim”, pensou Joana. “Eu não ia conseguir dirigir. Ia acabar batendo o carro”. Ficou longos minutos ali olhando a rua silenciosa e fria. Baixou um palmo o vidro do motorista para deixar entrar o ar frio da noite. Pareceu ouvir o barulho do chuveiro de Paula. Viu-a nua, esfregando o sabonete pelo corpo, cantarolando uma canção qualquer debaixo do chuveiro. Viu Renato alto, forte, ereto entrando nu no chuveiro… tentou desviar o ‘olhar’ e instintivamente sacudiu a cabeça, querendo se afastar da cena! Com isso Paula e Renato sumiram do banheiro, sumiram da sua imaginação!

Só então se deu conta de que estava ali há quase dez minutos desde que vira o carro de Renato virar a esquina.

Mas será que era mesmo Renato? De costas, era o mesmo porte físico. Alto, ombros largos… De frente os ombros largos mantinham o casaco aberto fazendo uma figura corpulenta, mas parecia mais magro… ou seria mais jovem e atlético? Mas era Renato. Tinha certeza. Ou será que não? Ou será que apenas seu subconsciente viu Renato ali se despedindo de Paula com aquele beijo apaixonado?

Pensou em descer do carro, tocar a campainha e ir falar com Paula. Dizer que havia descoberto seu romance com seu marido. Mas de que adiantaria? Poderia ter dito isso mais cedo no escritório dela! Ou até por telefone, sem sair de casa! Ela certamente negaria. “Eu tinha que ter abordado os dois abraçados no portão”, pensou Joana. “Pegá-los em flagrante… e ver que explicação ele daria para ter abandonado a família de maneira tão covarde. Ver que recado ele daria para seus filhos adolescentes que sempre o tiveram como herói”! Assim pensando Joana rumou para o hotel. Precisava sair da rua, ficar entre quatro paredes, sozinha, para extravasar sua revolta, sua mágoa, sua dor… Precisava esmurrar alguma coisa. Chorar, talvez. Sim. Precisava chorar. Chorar bastante, até esvaziar todos aqueles sentimentos confusos que pressionavam seu peito… e seu cérebro! Tudo que precisava agora era de quatro paredes… para esconder suas lágrimas!

 

Esse pequeno trecho é parte integrante do romance policial de Airton Chips:

“UMA VIAGEM QUE NÃO CHEGOU AO FIM”.

O livro está disponível no site da ‘Editora Dialética’ ou, através do WhatsApp 35 9.9802-3113.

 

Sapucaia… A arvore que enganou o historiador!

Na região onde rios e cidades levam seu nome, não se tem a localização de um único pé nativo da famosa arvore.

Dos 125 pés de Sapucaia que enfeitam praças e jardins de Belo Horizonte, 35 estão na orla da lagoa da Pampulha.

Você que já viajou pelo Sul de Minas, com certeza cruzou cidades e rios com nomes originários na Sapucaia… São Gonçalo do Sapucaí, Santa Rita do Sapucaí, Porto Sapucaí. Se subir até a bela Campos do Jordão você passará por São Bento do Sapucaí, Sapucaí Mirim e poderá beber nas nascentes cristalinas dos rios Sapucaí e Sapucaí Mirim. Todas estas localidades e rios receberam esse batismo em homenagem à famosa Sapucaia, arvore de grandes copadas, supostamente abundante no Sul de Minas, principalmente nas margens baixas dos rios que levam seu nome.

Só que não!

A famosa Sapucaia, conhecida (e explorada) pelos europeus que aqui chegaram, desde o século XVI, originaria da Mata Atlântica, hoje anda pela beira da morte. Não se tem a localização de um único pé nativo no Sul de Minas.

O que o historiador chamou de Sapucaia, era, na verdade, o Óleo Copaíba!

Este sim, nativo e abundante na região onde batizou tanta ‘gente’!

As arvores são de fato parecidas, apenas no porte, porém muito diferentes na florada, na formação da casca (a Sapucaia tem formato de rusgas e fissuras, lembra a casca do cedro). O óleo copaíba tem a casca um pouco mais lisa e seu fruto é pequeno. O fruto da Sapucaia tem o tamanho de uma cabeça de cachorro médio. Se cair do galho a trinta metros de altura sobre um cachorro, pode aleijá-lo! O fruto da Sapucaia (semente) tem grande valor nutricional embora não seja comercializado. O óleo copaíba tem grande valor medicinal. Ambas as arvores, que podem passar de trinta metros de altura, podem forrar o chão da casa que você pisa!

Por engano ou não, o nome ficou. Todos estes lugares que eu citei foram batizados com o nome da Sapucaia. Mesmo não vendo a arvore, toda vez que você passar por ali, vai se lembrar do que acabou de ler!

Anos atrás a prefeitura de Belo Horizonte plantou 125 pés de Sapucaia em suas praças, jardins e logradouros públicos, inclusive na Praça da Liberdade. No entorno da Lagoa da Pampulha, por onde pedalo quase todos os dias, já contei até o momento 35 arvores!

Esta é época mais fácil de ‘percebê-las’… É a época da florada, ou melhor, da ‘folhada’! Sim. A Sapucaia não dá flores… No início da primavera as folhas verdes, novas, mudam de cor e durante cerca de duas semanas tingem suas copas de rosa e lilás. Por isso é fácil percebê-las… e contá-las.

Belo Horizonte é bastante arborizada e florida, especialmente na região da Pampulha. O ano todo sibipirunas, manacás, primaveras, flamboyants, jacarandás rosas, ipês de várias cores, sapucaias, cada um a seu tempo enchem nossos olhos – e corações – de cores! Na ilha da lagoa, no momento, tem três pés floridos que não consigo afirmar qual deles é ipê roxo ou Sapucaia.

Mas, voltando à Sapucaia, a arvore que enganou o historiador e acabou batizando rios e cidades no Sul de Minas, tem sim Sapucaia no Sul do Estado. Graças a um cidadão altruísta que resolveu preservar a espécie tão bela. Em Santa Rita do Sapucaí há dois belos espécimes da famosa arvore. E é muito fácil identificá-los. Quando entrar na cidade pelo acesso sul, pela ponte principal, quando estiver no final da ponte sobre o Rio Sapucaí, olhe para a margem à sua direita à frente. Ali – salvo engano no quintal de uma academia – duas belas arvores com suas copadas lilás irão encher seus olhos!

Dos 125 pés de Sapucaia que enfeitam praças e jardins de Belo Horizonte, 35 estão na orla da lagoa da Pampulha.

Agradeço a natureza todos os dias por tão belo espetáculo… E agradeço a Deus a sensibilidade para perceber as belezas que nos cercam e tornam nossa vida mais colorida, mais alegre, mais divertida, mais romântica…