Jeff… O Homem do Chapéu Furado

                                                                         CAPITULO III

 

Algumas milhas distantes da cidade.

– Vocês são uns imprestáveis! – dizia furioso o rancheiro a seus vaqueiros.

– Calma patrão! Não tivemos culpa. O homem é terrível…

– Terrível coisa nenhuma. Vocês é que são uns patifes, umas bestas, palhaços… Deixarem-se vencer por apenas dois homens.

– O que está acontecendo?  – Perguntou Brad Macgree, que acabara de chegar de Spring Benson, onde fora fazer compras. Porque você está tão furioso George – acrescentou.

– É por causa destes imbecis, incompetentes…

– Afinal, o que eles fizeram?

– Deixaram-se surpreender pelo forasteiro que agora é delegado. Eu os mandei à cidade  dar cabo dele e do xerife Morrison e eles, além de falharem, levaram uma tremenda surra  dos dois!

– Você os mandou dar cabo do forasteiro? Isso não é bom…

– Não se preocupe. Foi indiretamente. Nossos homens incitaram os frequentadores do saloon a agredir o Xerife, acusando-o de contratar um pistoleiro para ser seu ajudante e no meio da briga Ted Slim atirou no forasteiro, através da janela. Mas falhou…

– Ele foi descoberto?

– Se tivesse sido agora só restaria seu cadáver. O que você acha de chamarmos “Ben” para liquidar o delegado?

– Melhor não… Vamos agir com cautela. Amanhã temos um serviço.

– Um serviço?…

– … Uma carroça da companhia da estrada de ferro contendo o pagamento dos operários vai passar por aqui…

– De onde vem?

– Virá da capital do estado, passará por Carson City, Spring Benson até chegar a Tucson, onde está acampado o pessoal da ferrovia.

– A quantia é boa?

– Qualquer quantia interessa.

– Certo. Hei Ted… avisa o pessoal que temos ‘serviço’ amanhã…

No dia seguinte.

Debaixo do sol que já ia alto, os quatro cavalos puxavam a carroça, à galope cadenciado, seguidos de perto pela escolta. Jeff ia na frente cavalgando seu baio.  A certa altura da estrada, parou e acenou para o grupo.

– Alto! Esta região está infestada de bandoleiros… E esta viagem está muito calma até agora. Esse silencio significa barulho. Todo cuidado é pouco. Vamos seguir com cautela… e atentos!

Mal os cavalos se movimentaram Jeff gritou:

– Esperem, esperem … Estou me lembrando de algo. – Jeff se lembrou dos rastros que descoberto por acaso no dia anterior, há menos de uma milha adiante, e disse:

– É melhor sairmos da estrada principal e entrarmos na planície à esquerda!

– Por que isso? – quis saber o contador da companhia.

– Pressinto que há bandidos nos esperando a menos de uma milha, perto das rochas. É melhor pegar outro caminho.

– Isso irá nos atrasar em várias horas! – exclamou o cocheiro.

– O que você prefere: chegar atrasado vivo, com o dinheiro, ou chegar na hora sem um tostão, com uma bala no crânio?

– Parece que não temos muita escolha. Mas afinal, em que se baseia sua suspeita de que há bandidos logo adiante nos esperando? Tem alguma evidência ou é apenas palpite? – quis saber o cocheiro.

– Ontem eu descobri casualmente rastros de cavalos, muitos cavalos, e um lenço fora da estrada perto das rochas. Hoje eu ia investigar, mas…

– Está bem… Por precaução, vamos sair da estrada principal – concordou a contragosto, John Calvey, o contador.

Duas horas depois, longe dali, retomaram sem incidentes a estrada principal que levava a Spring Benson.

– Pronto – disse Jeff. Atrasamos um pouco a viagem, mas agora estamos seguros. A esta hora os bandidos já devem ter desistido do assalto, pensando que não viremos.

Enquanto isso, milhas atrás Ted Slim e seus comparsas estavam impacientes…

– Não é possível! – dizia ele. Algo deve ter acontecido. Estão mais de duas horas atrasados…

– Alguém de nós deveria ter seguido a carroça desde Carson City – comentou um do bando.

– Acho melhor voltar e relatar ao chefe o que está acontecendo – sugeriu McCoy.

– Está louco!! O chefe consideraria isso mais uma falha nossa! Ele vai nos fritar vivos!

– Então o que você sugere Ted?

– Calem-se! Estou pensando.

Depois de alguns instantes de impaciente silencio, Ted ordenou:

– McCoy, Catlow, Smith, peguem os melhores cavalos e venham comigo. Vamos a Carson City. Os outros fiquem esperando aqui e façam o serviço conforme o combinado… se eles passarem.

Depois de percorrerem pouco mais de uma milha na estrada arenosa que levava a Carson City, Smith gritou:

– Hei Ted, veja… Marcas de rodas de carroça!

– Hum… Maldição! Rastros de cavalos! Então é isso a causa do atraso. Eles saíram da estrada antes da tocaia… Como souberam que estávamos esperando por eles! Muito espertos. Realmente muito espertos! Por pouco eles nos enganam…

– E agora? Que faremos? – indagou McCoy

– Vamos no encalço deles.  Se eles saíram da estrada aqui devem tê-la retomado há poucas milhas daqui, perto da Rocha do Abutre! Ou seja: pouco mais de duas horas daqui. E devem estar com os cavalos cansados… Atrás deles. Vamos fazer-lhe uma surpresa!

Minutos depois os dois grupos se reuniram na estrada. Após colocar os cúmplices a par do ocorrido, partiram em disparada pela estrada principal no encalço da carroça recheada de dólares.

A viagem transcorria tranquila apesar do calor causticante. Eram cerca de duas da tarde.

– Poxa como faz calor – comentou o cocheiro limpando o suor do rosto com o lenço encardido.

– Está quente mesmo… Quando o sol se deitar, refresca. À noite faz um frio danado   – comentou Jeff, que conhecia bem aquela região.

– Porque tão brusca mudança de temperatura em apenas vinte quatro horas – quis saber John Calvey, responsável pelo pagamento dos operários da companhia férrea.

– É que estamos à borda do deserto – explicou Jeff. No deserto, durante o dia ´calor é insuportável. Porém à noite a temperatura cai repentinamente chegando a níveis muito baixos, às vezes próximo de zero!

– Xerife… – interrompeu Carson. Acho que temos companhia!

– O que está havendo?

– Tive a impressão de ter visto uma nuvem de poeira algumas milhas atrás.

– Será que é a nós que estão seguindo? – perguntou o condutor da carroça.

– Certamente. Devem ser os bandidos que nos esperaram de tocaia e descobriram nossa manobra. Continuem pela estrada. Vou verificar…

Minutos depois o agente da lei voltou a galope.

– Então, viu-os? – Perguntou Calvey apreensivo, com os olhinhos brilhantes atrás dos óculos redondos.

– Sim. São dez ou doze… E vem a todo galope. Pela toada eles querem nos alcançar.

– Chiiii… estamos encrencados! – Choramingou Jed, enquanto Newton, outro escolta pedia ao delegado uma solução.

– Tenho um plano! Saiam um de cada vez da estrada e entrem na pradaria. Você cocheiro, quando achar um ponto da estrada onde o terreno não deixe marcas da carroça, faça o mesmo, para que eles não percebam que saímos da estrada novamente…

Em poucos minutos a estrada ficou deserta, sem vestígios de nada. A menos de uma milha dali, atrás de um pequeno bosque, Jeff e seu comboio viram o bando de Ted Slim passar em disparada pela estrada a caminho de Spring Benson. Tão logo a poeira baixou o pequeno e valioso comboio retomou a viagem pela estradinha batida e poeirenta.

No entanto, logo adiante…

– Você teve sorte em avistar um dos escoltas quando ele subia a elevação para checar a nossa poeira, Ted – comentou Smith.

– Tem razão. Agora eles seguirão viagem tranquilamente pela estrada pensando ter nos enganado. Vamos preparar a emboscada.

Meia hora depois a viagem prosseguia tranquila, quando de repente:

– Cuidado… saltem ao chão – gritou Jeff ao perceber o brilho de um fuzil contra o sol. Ato contínuo abandonou o arreio do baio e saltou para o chão duro à margem da estrada e rolou para o abrigo das rochas. Os outros o imitaram atônitos, mas o cocheiro não teve a mesma sorte e agilidade. Um projétil certeiro foi alojar-se em seu peito tirando-lhe a vida instantaneamente. Teve início um tiroteio selvagem. O primeiro disparo de Jeff acertou a cabeça do assassino do cocheiro.

– Por ora estamos abrigados – disse John – mas não podemos ficar parados aqui.

– Você tem razão John – concordou Jeff. Dentro de poucas horas será noite. Como são o dobro de nós, seremos presas fáceis.

– Então, que faremos?

– Tenho um plano.

– Exponha-o.

– Antes de tudo carreguem suas armas muito bem. John e Jed ficam aqui, Carson e Newton, deem a volta por trás deles, cautelosamente, estejam preparados. Vou me expor… Enquanto tentam me alvejar, vocês os abatem…

– O plano é bom, muito engenhoso, bom mesmo! Mas você ficará igual a uma peneira após o tiroteio. Por isso é melhor nos despedirmos já. – Disse Calvey com ironia.

– Não se preocupem comigo. Estejam atentos.

Minutos depois, tendo Newton e Carson se posicionado, Jeff saiu correndo em zigue-zague na direção dos bandidos até se jogar ao chão e rolar como uma bola abrindo fogo. Na arriscada ação fulminou dois dos assaltantes que mostraram as caras. Protegido pelas rochas Ted Slim berrou furioso:

– Liquidem-no seus idiotas! Ele é apenas um homem.

– Faça-o você, imbecil! O que acha que estamos tentando fazer – retorquiu um dos seus homens.

John acabara de mandar Catlow visitar satanás, quando um projétil lhe arrancou o chapéu, fazendo-o esbravejar:

– Diabos!! Quase me estragam o chapéu novo!

Jed recarregava seu rifle quando um dos bandoleiros lhe fez pontaria. No exato momento em que apertou o gatilho, caiu fulminado por uma bala de Carson, que gritou:

– Mãos ao alto… Não se movam!

Apesar de surpresos com a aparição de Carson à retaguarda, os assaltantes não acataram o apelo e trataram de fugir, ao comando de um deles. Correndo em zigue-zague procuraram freneticamente os cavalos, debaixo da saraivada de balas de Carson e Newton.

– Acertei um – gritou Newton eufórico.

– Lá vai mais um – acrescentou Jeff há poucos metros dali, enquanto pedia – Deem-me um rifle, rápido!

– Segure-o. Só tem duas balas.

Jeff fez pontaria e acionou o gatilho. A primeira bala acertou a nuca de MacCoy. A segunda, como Jeff planejara, atingiu o cavalo de Smith arremessando-o ao chão.

– Puxa, xerife… você é terrível! É mais rápido que um lince das montanhas de Nevada – comentou alegremente o miúdo contador John Calvey.

– Nem tanto… – modestou Jeff. Vamos interrogar este coiote.

– Quem é você e para quem você trabalha? – interpelou Jeff.

Smith continuou mudo.

– Pra quem você trabalha? – interrogou o xerife esbofeteando o assaltante subjugado.

– Pensa que sou tolo a esse ponto, xerife? – Rosnou sarcasticamente o prisioneiro.

– Pode não ser, mas parece e muito. Bem, agora não temos tempo para interrogatórios. Mas não se vanglorie. Você ainda soltará a língua. O xerife Morrison ficará contente em tê-lo como seu primeiro hospede. E não se preocupe com a solidão… Logo, logo seus companheiros irão lhe fazer companhia no ‘hotel da justiça’. Bem John, estamos a poucas milhas de Spring Benson. Creio que não há mais bandoleiros à frente. Os três que escaparam foram em direção oposta… Não voltarão a atacar. Vou voltar para Carson City enquanto é dia.

– E mesmo que tivessem ido em outra direção, imaginando você conosco, eles não se aproximariam – acrescentou Newton, o mais velho escolta.

– Tem razão – confirmou John –, depois de sua atuação estamos mais encorajados.

– Ótimo. Então sigam em frente que eu vou levar este facínora para o xerife. Até a vista. – Despediu-se Jeff.

 

* A aventura de Jeff, o homem do chapéu furado em Carson City, continua na próxima segunda-feira,10.

Falando em Caubóis…

“Jeff… O Homem do Chapéu Furado” será publicado, aqui, em onze capítulos.

 

Foi na década de 70, “Década de Ouro da Humanidade”, que eu conheci os caubóis, através dos filmes do gênero. Havia para todo gosto. Havia o caubói sério e carrancudo em busca de vingança, (Clint Eastwood); havia o caubói sarcástico e aventureiro (George Hilton e Johnny Garko); o caubói vilão, que aprontava, aprontava e sempre morria no fim (William Berger, Lee Van Cleef e Klaus Kinski); havia também o caubói desbravador, que aceitava empreitadas de conduzir caravanas ou resgatar pessoa sequestrada pelos índios, guias de comboios ( John Wayne, Burt Lancaster, Kirk Douglas); havia ainda o caubói de olhar doce e romântico que usava o colt apenas para se defender durante suas aventuras no Oeste sem lei, (Giuliano Gemma); havia o caubói que, depois das andanças – e matanças -, queria apenas construir um rancho ao pé da colina, perto do riacho e viver em paz sua doce morena; havia também o caubói jogador de pôquer, que sempre trazia na manga um ás de ouro: nunca perdia! O caubói mais comum era o justiceiro caçador de recompensas!

Além destes caubóis que inspiravam nossa vida adolescente, outros tantos, tão ou mais famosos deixaram rastros nos cinemas de Pouso Alegre – e naturalmente Brasil afora. Alguns eram associados aos personagens que encarnavam. John Garko era o “Sartana” eternamente perseguido pelo loiro de meia idade William Berger. Franco Nero deu vida a Django, um dos mais famosos personagens do velho oeste. George Hilton com sua cara de deboche deu vida ao bonachão Ringo. Terence Hill Terence Hill encarnou “Trinity”. Com seu ingênuo sorriso infantil e seu inseparável irmão Bud Spencer, gordo, barbudo e carrancudo, e suas trapalhadas transformaram as salas de cinema num festival de gargalhadas. Já o lendário “Billy The Kid” teve tantos intérpretes que nenhum deles o eternizou. Quem chegou mais perto foi o bonitão Paul Newman na película “Um de nós morrerá”, em 1958.

Enfim, são tantos os caubóis do Velho Oeste que desfilaram nos cinemas de Pouso Alegre e do Brasil na década de 70 que eu precisaria de mais cinco décadas para falar seus nomes.

Dentre os ‘caubóis’ acima – e tantos outros que encheram os olhos de adolescentes apaixonados pelo gênero como eu, difícil dizer qual foi o mais famoso, o mais cativante, o mais… ‘herói’.

No entanto, qualquer frequentador do “Cine Gloria” ou do “Cine Eldorado” em Pouso Alegre nas décadas de 70 e 80, dirão que o mais marcante foi Clint Eastwood! Embora a maioria dos seus filmes tais como “A Marca da Forca”, “Por um punhado de dólares”, “Três Homens em Conflito”, “A marca da forca” tenham sido produzidos na década de 60, volta e meia podíamos ouvir seus tiros certeiros e mortais nas telas dos cinemas nas noites de sábado e nas matinês de domingo. O cavaleiro solitário é, de longe, o mais longevo caubói da história do Velho Oeste.

Em 2021 Clint Eastwood estrelou um novo filme de western. Na película “Cry Macho: O caminho para a redenção”, o sisudo caubói, aos 91 anos saca – pela última vez – um trezoitão!

Com tantos filmes de caubóis na “Década de Ouro da Humanidade”, década que eu tive a felicidade de atravessar com três faixas etárias diferentes – infância, adolescência e adulta -, eu não poderia ser uma pessoa ‘normal’. Minha professora de português já havia vaticinado:

“Airton, você tem ‘veia’… você será escritor”!

Eu acreditei nela. Em meados daquela década, resolvi escrever a minha própria estória de caubói!

A obra foi gestada no ano 1977 quando eu servia o exército. O parto aconteceu no mês de julho daquele ano. Nos meus turnos de guarda nas guaritas do quartel e do Paiol, em três semanas escrevi a historia do caubói Jeff, em um caderninho espiral. Dez anos depois, quando trabalhava como escrivão em Silvianópolis, datilografei a historia na máquina Olivetti línea 88 da delegacia. O original esteve guardado desde então. Meu primeiro e único livro de caubói tem um título bem original:

 

“Jeff… O Homem do Chapéu Furado”.

 

A historia se passa em Carson City, uma pequena cidade do norte do Texas nos idos de 1870. Um jovem chega à cidade no final da tarde e na mesma noite, no saloon, manda um pistoleiro de estopim curto para o andar de baixo. Apesar do assassinato, no dia seguinte o forasteiro se torna auxiliar do xerife da cidade. A estrela no peito vai facilitar a missão secreta do caubói na cidadezinha dominada por uma violenta quadrilha de malfeitores.

Depois de 46 anos finalmente resolvi presentear os leitores, como eu, aficionados em histórias de Faroeste. Mas é só para quem gosta de histórias de caubóis. Se você não gosta, ocupe seu tempo com outra leitura, pois, tempo é a terceira maior riqueza que Deus nos deu. Devemos usar nosso curto tempo na terra para fazer ou apreciar aquilo que gostamos!

“Jeff… O Homem do Chapéu Furado” será publicado semanalmente aqui no Blog e no face do Blog, em onze capítulos.

Eu o desafio, caubói… Saque rápido e boa leitura!

Maneco, o Crack e a Sarjeta

Tão rápido quanto foi ao céu… ele chegou ao fundo do poço!

Anos atrás fui levar meu carro para um Recall em Campinas. Enquanto aguardava o serviço, saí andando pela cidade e fui parar no hall da estação rodoviária. De repente um sujeito com aparência e indumentária de mendigo parou na minha frente, olhou-me por alguns segundos e meio timidamente falou meu nome. Fixei o olhar na sua fisionomia, fiz uma rápida busca pela memória e o reconheci… Era meu amigo Leo, o qual eu não via há mais de quinze anos. Sentamo-nos num dos bancos e encetamos uma prosa. Conversa vai, conversa vem, Leo passou a contar-me a triste história de um amigo de adolescência. Calejado com mais de trinta anos no meio policial, antes que ele chegasse ao meio, deduzi o final da história. Embora os jovens somente deem ouvidos aos coroas depois de passar pelas mesmas experiências, não custa nada colocá-las nestas poucas linhas. Dizia ele:

– Conheci o Maneco no final da adolescência. Durante vários anos seguimos os mesmos caminhos até que eu fui trabalhar no garimpo no Pará. Ficamos mais de cinco anos sem nos ver. Quando voltei à Campinas encontrei meu amigo trabalhando numa farmácia no centro da cidade. Reatamos a velha amizade e curtimos bons momentos juntos durante muitos meses, até que eu fui morar em Poços de Caldas. Dois anos depois, ao visitar os familiares em Campinas, encontrei o Maneco na mesma farmácia… Ele era o gerente!

– Bacana… – falei, contente com o sucesso do amigo do meu amigo.

– Vai vendo como são as coisas – disse Leo, e continuou. Dois anos mais tarde estive novamente com o Léo… Ele havia se tornado sócio da farmácia!

– Caramba! – exclamei.

– Um ano depois, quando tornei a voltar à Campinas, Leo era o único dono da grande loja de medicamentos e perfumarias no centro da maior cidade do interior de São Paulo. Com a morte do pai, a mãe o havia ajudado a comprar a outra parte da farmácia.

Apertei o queixo, arregalei os olhos e balancei a cabeça, admirado com o rápido sucesso do amigo do meu amigo. Mas continuei em silencio, aguardado o desfecho da história. Leo se calou por um instante. Parecia ter chegado no alto de um morro. Agora tinha que descer. Verificou os freios, contraiu as rugas do rosto como quem vai comer uma comida que conhece e não gosta, e recomeçou a história do Maneco.

– De Poços mudei para o Recife e alguns anos mais tarde voltei em visita à Campinas mas, não tive tempo de rever meu amigo. No entanto, soube que ele havia vendido uma parte da farmácia. Um ano depois voltei a morar definitivamente em Campinas e fui procurar o Maneco. Não o encontrei. Ele havia vendido o que restava da farmácia e ninguém deu notícias dele…

Olhei admirado para Leo. Ele respirou fundo e continuou a narrativa.

– Meses depois encontrei meu amigo. Ele estava trabalhando numa pequena farmácia perto da rodoviária… era empregado! Maneco não era mais o mesmo. Seus 42 anos pareciam 60! Sua barriga, antes saliente de homem rico, agora parecia mais a de um conterrâneo do Chico Anísio, recém-chegado do nordeste. Seu rosto que antes era corado e juvenil… agora parecia uma máscara pálida e descorada. As conversas antes alegres e altruístas… agora eram pouco mais que resmungos ou, às vezes, uma interminável repetição das mesmas malfeitas frases. A moto e o carrão esportivo se reduziram a um gol 93, com aparência de 84. As roupas, além de bregas e simplórias, traziam dias de uso e um indisfarçável e indefinível cheiro de sabão e amoníaco queimado…

Tornei a arregalar os olhos fingindo surpresa. E interrompi a narrativa.

– O que aconteceu com ele? Azar na Bolsa de Valores? Jogo de carteado? Farras com mulheres?

Leo esboçou um pálido sorriso, balançou a cabeça na horizontal e foi direto ao ponto.

– Maneco havia mergulhado até o pescoço nas drogas. Começou com a irresponsável e sorridente cannabis sativa e de repente pulou direto para a pedrinha bege fedorenta, sem fazer estágio na farinha do capeta. A droga, os fornecedores, os advogados, os amigos da onça em poucos anos tiraram dele a farmácia, os carros, as economias… Mais rápido do que subiu Maneco desceu. Perdeu tudo! Os poucos amigos se afastaram… Mal sobrou um restinho da dignidade pessoal – concluiu Leo desviando o olhar para que eu não visse sua tristeza… ou vergonha!

Olhei para ele em silencio, procurando uma palavra de consolo, até que perguntei:

– Você, alguém… tentou ajudá-lo?

– Maneco não se sentia em dificuldade. Não queria ajuda. Ele achava que a qualquer momento poderia parar de usar drogas e se levantar… Mas nunca mais se levantou… – tornou a falar Leo sem olhar pra mim.

Fiquei alguns instantes em silencio, com pena da tristeza do meu amigo Leo. Com pena do amigo do meu amigo… que parecia um só! Até que perguntei:

– Você tem visto seu amigo Maneco?

– Dois meses depois, quando voltei à farmácia perto da rodoviária, ele não estava mais lá. Havia sido demitido. Sumiu. Quase um ano depois, numa madrugada fria, ao passar ali perto fui interpelado por policiais. Eles queriam que eu presenciasse um arrastão de desocupados. Eram mais de 15 mulambentos maltrapilhos e fedorentos, parecidos com aqueles que rondam o mercado municipal da Duque de Caxias, bem piores que os antigos frequentadores do muquifo do João Natal. Entre os nóias estava o meu velho amigo Maneco. Depois da triagem na delegacia de polícia, como ele não tinha nenhum crime e foi liberado, eu me prontifiquei a levar Maneco até a casa de sua mãe. No trajeto, quase mudo, fui pensando em como contar a ela onde encontrei seu filho. Desnecessário meu constrangimento. Na sala da casa simples do bairro de classe média, a abatida e resignada mãe contou que fazia três semanas que não via o filho, mas aquilo já era rotina. “De vez em quando ele volta pra casa, trazido pela policia ou por um amigo da família, sempre nesse estado que você está vendo”, contou Noêmia.

– A sofrida idosa, viúva, contou também que três ou quatro dias depois Maneco saía de casa novamente, modesta mas decentemente vestido, com alguns trocados no bolso, prometendo voltar em duas ou três horas… E voltava semanas depois naquelas circunstâncias – concluiu meu amigo Leo, com os olhos tão baixos que quase encostavam no chão.

Após meia dúzia de palavras minhas, de pesar e consolo, Leo continuou a triste história do amigo.

– Contrariando as estatísticas que dizem que o crack mata em poucos meses Maneco vivia na constante nóia há quase sete anos. Na verdade, sobrevivia, vegetava nas imediações dos lixões e viadutos de Campinas. Policiais, amigos ou conhecidos da família já não o levam mais para casa.

– Ele não procura a mãe? A mãe dele não o vê mais? – perguntei.

– De vez em quando… Agora, quando o coração aperta demais, dona Noêmia toma um táxi e roda pelas ruas periféricas da cidade para matar a saudade do filho. Às vezes o traz de volta… para tê-lo por três ou quatro dias. Outras vezes leva uma marmita de comida e uma muda de roupa. Do banco traseiro do táxi, debaixo de um viaduto qualquer, entrega a marmita ao filho e às vezes fica alguns minutos observando melancólica e letargicamente o filho comer. Não tem mais palavras … ou lágrimas. Somente uma silenciosa prece à Deus para levá-los… ou ele, ou ela, pois já não pode mais mudar o destino do filho.

Ao concluir a história do amigo Maneco, Léo virou o rosto… para que eu não visse seus olhos!

 

A história de Maneco, um jovem de berço, que tinha de tudo que o dinheiro pode comprar e que o homem pode conquistar, até conhecer a pedrinha bege fedorenta, me comoveu, mas não me surpreendeu. Nem me surpreendi ao concluir, no silencio do meu carro de volta para casa, que o ‘nóia’ Maneco, era fruto da imaginação de Leo. A triste e verídica história, era a vida do próprio amigo Léo que a contava!      

Mendigo .40

Tarde quente e manhosa de fim de março

Na escadaria dura, irregular e suja da favela do Morro, na capital paulista, o mendigo está inquieto. De bermuda jeans suja e rasgada, camiseta em pior estado, com o pezão 42 sujo no chão, ele não sabe se senta ou se deita! Com movimentos lentos e desconexos, franzindo constantemente a testa tentando manter os olhos abertos, ele parece mamado… ou chapado! Ao seu lado, à direita, há uma sacolinha, dessas de supermercado, amassada. Do lado esquerdo, apoiada no concreto malfeito, há um corote. De vez em quando o mendigo de boné escuro amassado leva o corote à boca, entorna, faz uma careta e em seguida pega outra garrafinha que parece ser coca-cola e toma uma golada para desfazer o gosto que veio do corote. De tempos em tempos enfia a mão suja na sacolinha – que mais parece um saco de lixo – pega um sanduíche, talvez de mortadela, tira uma mordida e torna a guardá-lo na sacolinha.

 

Em situação de penúria e decadência semelhantes, outros dois mendigos espreguiçam na sarjeta numa ruela abaixo.

O tempo passa lentamente…

O calor de fim de março na favela é quase insuportável. Em dado momento, a alguns metros da escada, uma voz de mulher de vinte poucos anos, talvez, se despede de uma pessoa cujo nome parece familiar ao mendigo. Por baixo da aba do boné ele vê a mulher entrar num golzinho bola e se afastar do local.

Depois de consumir quase todo o conteúdo quente das duas garrafinhas e parte do sanduíche, o mendigo ouve o movimento de uma janela e de uma porta se abrindo no muquifo de onde saíra a mulher uma hora antes.

Sacudindo a cabeça, como se isso diminuísse o efeito do suco de gerereba, ele vê um sujeito sair da casa com um saco de lixo e leva-lo até a esquina a poucos metros dali.

Desacorçoado o mendigo se levanta meio cambaleante, pega sua sacolinha de ‘lixo’ quase vazia, vai em direção à casa e quando o sujeito vai entrar, enfia a mão na sacolinha e… ao invés de sanduíche azedo aparece uma pistola .40!

– Perdeu Mané… perdeu! – Diz o mendigo ao sujeito – Já era! Deita no chão…

– Qualé, mano, tá maluco?!… Caralho, é você? Tô diboa, tô diboa… – choraminga o favelado reconhecendo o ‘mendigo’, enquanto se deita de cara no chão!

– É melhor ficar de diboa mesmo – retruca o mendigo, enquanto saca o celular com a mão esquerda e diz apenas:

– Tá na mão…

Em exatos 48 segundos os dois mendigos da ruela de baixo chegam ao local. Cada um trás na algibeira larga da bermuda suja uma pulseira… de prata!

Um minuto e meio depois dois carros param ao lado deles e resgatam os três mendigos e o favelado!

 

Cenas de um filme policial feito na favela?

Enredo do meu próximo livro de ‘Romance Policial’ ou crônicas policiais?

Nana… nina… não!

São cenas reais de uma tensa operação da PC para prender um “patrão” do tráfico de Pouso Alegre.  Outros 33 traficantes – em operações menos glamourosas, todos pegos de pijama ou nos braços de Morfeu – receberiam também as pulseiras de prata da lei.

 

Antes do sol modorrento e melancólico daquela segunda-feira de fim de março de 2012 se deitar atrás da Serra da Cantareira, os pupilos do delegado Gilson Baldassari deixaram a capital paulista trazendo na rabeira do táxi do contribuinte um dos maiores distribuidores de drogas de Pouso Alegre.

A investigação conduzida pela delegacia regional da PC, rendeu ao bando cerca de 400 anos de ‘sol quadrado’ no hotel do contribuinte.

A tensa e arriscada prisão feita pelo ‘mendigo’ mineiro na porta do muquifo na favela paulista, garantiu ao ‘favelado’ Fabão 18 anos e meio de hospedagem gratuita no Hotel do Juquinha.

Pra rir… Ou pra chorar?

 

Solta ele!… Senão eu vou chamar a policia!

A corrida era frenética. Meu fugitivo tinha uma pequena dianteira, pois apesar de ter pedalado os últimos três quarteirões, ele tomara a iniciativa. Quem toma a iniciativa sempre sai na frente!

Corríamos pelo elevado da linha férrea nos equilibrando para não escorregar nas pedras soltas do lado dos dormentes! Parecia que meu fujão iria escapar. A estação vazia se aproximava. Já estávamos chegando perto da escadinha da ruela Braz Vitale…

De repente meu fugitivo deu uma guinada e desceu pela escadinha! Desceu quase sem tocar os cinco degraus.

Eu desci sem tocar!

Desci pelo espaço… voando!

Caí lá embaixo com as duas mãos nas costas do fujão!

Toquei nas costas, mas não consegui segurá-lo! Ambos estávamos por demais molhados de suor e escorregadios!

Sua camiseta branca sem mangas em poucos segundos virou um trapo.

Durante um interminável minuto travamos uma ferrenha luta ali na ponta da viela…

Eu tentando dominá-lo para aplicar-lhe uma chave de braço e ele tentando se desembaraçar das malhas da lei…

Foi nesse momento que começou a parte cômica da história. Atraída pela balburdia da luta uma senhora saiu no alpendre da casa ao lado com uma vassoura na mão.

– Solta ele, moço! Solta senão eu vou chamar a policia! – disse a senhora brandindo a vassoura de piaçava.

Eu não sabia se ria ou se chorava… Quase perdi as forças!

O único pensamento foi: “Chama a policia logo, dona… E diga que é urgente”!

Pensei, mas não pude expressar. Um segundo de distração meu fugitivo escaparia!

Um gancho no estômago… ou um direto no queixo, certamente poria fim a resistência do meu prisioneiro. Mas o professor de defesa pessoal na Acadepol, meses antes, havia dito que o policial tem que dominar o meliante sem agredi-lo. Com poucos meses de policia, eu ainda não sabia que teoria e pratica são duas amigas inseparáveis, porém cínicas e maldosas!…

Continuei tentando imobilizá-lo. Durante a contenda subimos a velha escadinha de pedra de volta para a margem da linha férrea…

De repente surgiu lá na esquina da rua São José um gordinho cabeludo. Mais tarde eu saberia que ele era o Henriquinho Toledo. Pensei, em meio aos esperneios e esmaneios do meu quase prisioneiro:

“Que bom! O gordinho cabeludo tem cara de ser do bem… Ele vai me ajudar a dominar esse meliante teimoso!”

Ledo engano! Aconteceu o inverso!

Ao se aproximar, sem saber os motivos da abordagem, Henriquinho se condoeu do ‘pobre’ fujão e tentou libertá-lo.

“Solta ele, moço. Ele não fez nada”, dizia Henriquinho tentando desvencilhar meu prisioneiro dos meus braços! Mui amigo!

Eu já estava prestes a deixar escapar minha presa, quando finalmente surgiu uma luz no fim do túnel. Na verdade, surgiu lá na entrada do mata-burro do pátio do Freitas. Era o Ze Carlos, vizinho da delegacia. Ele veio andando rapidamente, curioso com aquela cena. Quando se aproximou e me reconheceu disparou:

– “Pó pará”! Esse baixinho sem camisa é ladrão de carro. O outro moço bonito é o Detetive Chips!

Finalmente Paulinho parou de espernear. A senhora da casa de baixo botou a viola, quero dizer, a vassoura debaixo do braço e saiu de fininho do alpendre. Henriquinho ajeitou as madeixas e ficou ali parado, com cara de tonto, olhando eu me afastar em direção à plataforma da estação levando meu prisioneiro numa chave de braço…

No minuto seguinte, depois da vaca morta, meus três parceiros surgiram na brasilinha verde ao lado da plataforma da Dr. Lisboa…

Os fantasmas do Velho Hotel da Silvestre Ferraz – Parte IV

 

Um Fantasma de 100 mil reais!

Início de uma madrugada de inverno de 2007. Nos sombrios e assustadores corredores do Velho Hotel reinava o silencio. Apenas o cheiro adocicado de maconha circulava por ali. Nalgumas celas ainda se podia ver a luz verde azulada de uma ou outra tevê, e ouvir o som abafado de um radinho. De repente uma figura soturna surgiu no corredor principal do prédio. Para chegar ao corredor a figura havia passado por quatro portões – dois do lado externo e dois já no prédio – todos trancados com grossos cadeados. O ‘fantasma’ daquela noite caminhou até a porta do X3, colocou a chave no cadeado Papaiz, abriu, levantou o trinco na fenda da parede longe do acesso dos presos, puxou o trinco para trás e abriu a pesada porta de ferro. Ao lado da porta, a pretexto de fumar um cigarro, a hóspede esperava sentada, tensa, com mochila básica aos seus pés. Levantou-se muda, pegou a mochila e saiu fumando, como se estivesse indo fumar lá fora. Numa rua lateral a poucos metros do velho hotel, um carro tão sombrio quanto o fantasma esperava por ela. A ‘ausência’ da traficante foi percebida no dia seguinte, na saída para o banho de sol.

Quem seria o fantasma que soltou a traficante?

Como ele conseguiu abrir quatro cadeados para soltá-la?

Por que teria feito isso?

Onde estava o policial que deveria estar na sala da carceragem?

A única resposta que circulou nos dias seguintes, e depois nas sindicâncias, foi o cachê… O ‘fantasma’ silencioso daquela madrugada teria recebido R$ 100 mil reais para soltar a detenta sem a necessidade de alvará!

A sindicância instaurada pelo delegado corregedor não conseguiu identificar o fantasma. As outras doze hospedes do X3, que não fizeram check-out naquela madrugada, poderiam ter esclarecido o mistério do fantasma silencioso, caso quisessem. Mas era conveniente ‘não querer’! Por isso alegaram que estavam nos braços de Morfeu e não viram nada. Algumas disseram que ouviram o barulho do ferrolho no movimento clássico de abrir e fechar a cela, mas não deram importância.

– Achei que fosse um alvará do Homem da Capa Preta! – disse uma das hóspedes. Além do mais o corredor estava na penumbra… E o fantasma talvez usasse capuz.

Vários policiais, especialmente os que estavam de plantão naquela noite foram investigados. Porém, o fantasma que abriu cadeados e portões e soltou a traficante não apareceu! Se tivesse sido identificado, o ‘fantasma’ seria processado por corrupção e poderia ir para a rua. Por falta de provas o crime ficou sem solução… E a única que foi pra a rua foi a traficante, sem necessidade de Alvará… Mas com cem mil reais a menos na conta… E o ‘fantasma’ da madrugada com cem mil reais na algibeira!

Os fantasmas do velho hotel da Silvestre Ferraz – Parte III

        O Sorveteiro

Essa historia começa nessa esquina, em frente o sobrado do Argentino de Paula… no final de 1969.

“Quando ensaiava os primeiros passos para se afastar do soturno prédio, um dos sujeitos pendurados na grade gritou”:

– Hei picolézeiro… Tem de groselha? Dá um aí!

Ficou na dúvida se podia ou deveria se aproximar. O pouco que sabia sobre cadeia e presos, sabia que não era um lugar comum, que não eram confiáveis. Se estavam atrás das grades é porque tinham matado ou roubado! Matá-lo certamente não podiam, mas será que não iriam roubá-lo? Enquanto pensava no que fazer, um preso de outra janela, com as pernas numa calça arregaçada e o dorso desnudo, gesticulando os dois braços através das grades, gritou irritado:

– Eu quero um de framboesa! Anda logo, pirralho!

Se o pequeno vendedor de picolés já flertava com o medo de se aproximar das janelas da cadeia, neste instante sentiu pavor! E agora? Atendia aos pedidos dos presos ou saia correndo ali? Foi salvo – ou encorajado – pelo gongo! Um sujeito que passava pela rua recebeu um pedido parecido…

– Ei ‘seu Zé’… Dá um cigarro aí! – pediu outro preso, um albino, na janela ao lado.

O sujeito de meia idade, empertigado, de calça caqui e camisa social azul clara, usando chapéu de feltro, subiu no pequeno murinho que circundava o tosco prédio, aproximou da janela, sacou da algibeira da camisa um maço de Parker de filtro amarelo e distribuiu vários cigarros. Antes mesmo de ouvir os agradecimentos, ou pedido, estendeu também um ‘bing’ para acender os cigarros e esperou a devolução. O garoto criou coragem. Afinal, levava pendurada no pescoço uma caixa de isopor cheia de picolés… Para vender! Não podia escolher os clientes… Desde que pagassem! Aproveitou a ‘segurança’ do ‘seu Zé’ e se aproximou das janelas. Vendeu nove picolés de frutas, coloridos, e dois de coco-queimado. O pagamento pelos picolés demorou. Só recebeu o dinheiro quando uma voz grossa saiu de dentro de uma das celas:

– Paga logo os sorvetes! O moleque está trabalhando… Ele não está com a vida ganha igual vocês não, seus talaricos! – disse a voz autoritária. O sorveteiro nunca soube se a voz era do carcereiro ou se de algum preso que mandava nos demais!

Esse foi o primeiro contato do garoto vendedor de picolés com o velho hotel da Silvestre Ferraz. Era verão de 1969. O velho presídio construído em 1932 tinha menos de quarenta anos de vida, mas já era velho na aparência. Paredes sujas e manchadas pela água escorrida das chuvas, trincas nos beirais no alto, e gigantescas janelas sem vidraças. “Se chover de vento deve alagar tudo lá dentro”, pensou o garoto. Tinha espaço digno para trinta e dois hospedes – cerca de zero vírgula um por cento da população da cidade, que beirava na época quarenta mil habitantes. No entanto, entre condenados, provisórios e correcionais, abrigava na ocasião pouco mais de vinte presos – a superlotação só chegaria trinta anos depois com a expansão das drogas, na virada do século. Os de bom comportamento, a maioria, ficava nas três celas da esquerda, de frente para a rua, onde podiam ter contato com transeuntes que passavam ressabiados ao lado do prédio, a poucos metros das janelas, e podiam conversar, pedir cigarros e até comprar picolés dos garotos que passavam por ali, como o assustado menino de dez anos de idade daquela tarde.

O vendedor de picolés voltaria ao velho presidio onze anos depois, em 1980. Desta vez, e de tantas outras, como policial. Nos anos seguintes o jovem Detetive de Policia e acadêmico de Direito, iniciando a carreira paralela de jornalista e cronista policial, batizaria a velha cadeia com o nome irônico e jocoso de “Velho Hotel da Silvestre Ferraz”! A partir de então, teria muita história pra contar…

O Sorriso de Teresa

A garota do semáforo.

Ela faz ponto no cruzamento da Santa Rosa com Antônio Carlos. Vende doces e queijos… para ganhar o pão!

Chega de manhãzinha, por volta da seis, a fim de pegar o maior fluxo de veículos das pessoas indo para o trabalho ou levar crianças pra escola. É como o “pássaro madrugador… pega as melhores minhocas”!

A cada dois minutos e meio ela tem cinquenta segundos para vender suas guloseimas. É o tempo que o sinal vermelho do cruzamento lhe dá para abordar os motoristas que param carrancudos nas quatro filas paralelas. A maioria nem abaixa o vidro escuro do carro para fazer o sinal negativo. Mesmo assim ela agradece com uma discreta deferência… e um sorriso!

Estatura mediana, negra, anca larga, obesa, ela se move lentamente entre os carros e evita ir até a terceira fila… para não ser surpreendida entre os carros e atrapalhar o trânsito quando o sinal se abrir.

E assim segue a manhã distribuindo sorrisos…

Um sorriso que encanta, que quebra o gelo!

Um sorriso que abre a carranca dos motoristas que param com seus carros fechados!

Um sorriso gratuito, que enriquece a manhã das pessoas que se dignam a olhar pra ela!

Assim é Teresa… Sorridente, respeitosa e gentil com todos que olham pra ela nas manhãzinhas no semáforo! Mesmo que não comprem nada… Que apenas olhe pra ela.

Foi assim que conheci Teresa nos primeiros dias de fevereiro do ano passado quando começou o ano letivo.

Foi assim que me acostumei com o sorriso de Teresa… Uma ilustre desconhecida vendedora de doces e queijos no semáforo!

Na volta das férias, em agosto, fui surpreendido com a gritante ausência de Teresa… e seu sorriso!

O que teria acontecido com Teresa?

Teria ganhado na Mega Sena e parado de trabalhar?

Teria mudado de ponto? De cidade?

Estaria doente?

Fiquei muito tempo sem resposta.

Na última semana de novembro, Teresa reapareceu. Voltou a iluminar o semáforo da Santa Rosa com Antônio Carlos!

Quando a vi abri a janela do carro, coloquei a cara para fora e fiz a tradicional pergunta, como se fôssemos velhos amigos:

– Você sumiu! O que aconteceu?

Teresa, com seu cestinho de doces e queijos, abriu ainda mais o costumeiro sorriso, sorriu com a boca e com os olhos, e deu a clássica resposta:

– É uma longa história!

Disse isso, mas olhou para o semáforo, se deu conta de que a luz havia acabado de ficar vermelha, notou que eu era o segundo da fila e que, portanto, ela tinha quase cinquenta segundos e começou contar sua história.

– Eu estava cuidando da minha mãe… Ela teve câncer, no útero, e acabou morrendo.

Mal abri a boca para me solidarizar, ela emendou:

– Logo depois da minha mãe, meu irmão também ficou doente… De repente ficou muito mal e descobriu que estava com câncer, no fígado… Ele bebia muito. Quando descobriu já era tarde. Acabou morrendo…

Triste por ela, deixei escapar algumas palavras de alento e … o sinal verdejou!

Antes que os carros se movessem na pista morna, Teresa se moveu para calçada fria e emendou resignada:

– É vida que segue …

Enquanto soltava o freio para me mover, pude ver seu aceno de mão e ouvir sua bênção, com o tradicional sotaque belorizontino:

– “… ‘cum’ Deus” – disse Teresa, exibindo seu melhor sorriso.

O Milagre da Porteira

     Vamos falar um pouquinho de Deus?

      Então falemos de milagres…

      Você conhece a expressão: “fulano escapou por um milagre”?

      E você?

      Você já ‘escapou’ por um milagre?

Passava pouco de dez horas de uma mormacenta manhã de segunda-feira quando cheguei ao pé da porteira no meio da serra. Fazia pouco mais de meia hora que eu saíra de casa pedalando minha pesada Mountain bike preta. Minha casa, lá na baixada, estava agora a quilômetros de distância. Encostei a bicicleta na porteira, me afastei uns metros, abri a braguilha, aliviei-me, peguei a garrafinha pet, sorvi generosos goles de água ainda fresca e fiquei por uns instantes contemplando o bairro distante lá embaixo.

Quando criança, dalguns pontos mais elevados do bairro eu fazia o inverso… Ficava uma eternidade olhando para aquela porteira branca, quase encravada no barranco vermelho feito à picareta e enxadão na encosta da serra. E pensava com meus olhos de criança: “Para onde será que vai aquela estrada”?

Há alguns anos eu havia descoberto que a velha, estreita, íngreme e pedregosa estradinha não ia a lugar nenhum. Na verdade, ia… Ia pouco além da porteira branca encravada no barranco vermelho. Ia a duas fazendas, a dos Alves e à dos Maximiliano.

Há muitos anos, no entanto, o êxodo rural havia expulsado as duas famílias dali. Agora a estradinha pedregosa levava a apenas um rancho e uma velha tapera onde vivia o ermitão Anselmo, para cuidar de um gado crioulo. Além da tapera, nos espigões acima, na divisa dos municípios de Congonhal, Pouso Alegre e Borda da Mata, ficavam as nascentes do Ribeirão Santo Antonio, que corta o bucólico bairro que me viu nascer.

Há anos o movimento de pessoas e de animais naquela estradinha tornou-se raro. Na verdade, ficou restrito ao ermitão Anselmo que, aos sábados, duas vezes por mês, com um embornal de lona pendurado no ombro, desce ao bairro cavalgando em pêlo sua eguinha castanha, para buscar pouco mais de que uma garrafa de suco de gerereba na vendinha. Mas deixemos a história do ermitão para outra ocasião, pois ela só, já paga outro ingresso!

Aquele lugar tão singelo, tão isolado e tão romântico das minhas lembranças pueris, tinha outro atrativo. Há cerca de cinquenta metros da porteira, o Ribeirão Santo Antonio despencava de quase cinquenta metros, formando uma linda cascata escondida entre arvores centenárias! Por um acesso bem mais fácil seguindo o curso d’água, eu já estivera ao pé da gelada cachoeira anteriormente. Dali, ao lado da porteira branca da minha infância, agora eu podia ouvir o dolente choro da cachoeira despencando em queda livre do alto da rocha.

Aproximei-me do barranco tentando ouvir melhor o triste lamento das águas límpidas batendo nas pedras duras e lisas e, quem sabe, avistar o véu branco balançando por entre os galhos das arvores.

Foi nesse momento que eu recebi… um inesperado empurrão!

Apoiei meus pés em um monte de pedregulhos quase encobertos por guanxuma, bem próximo da ribanceira, abri bem os olhos e tentei avistar a cortina d’água… Na verdade pensei fazer isso! Pois antes mesmo de inclinar ligeiramente o corpo, o corpo todo se foi! Partiu! Despencou no vazio!

Voou abismo abaixo!…

Meus pés deslizaram do monte de pedregulho como se desliza em uma poça invisível de sabão líquido na entrada da cozinha!

Tudo aconteceu como num piscar de olho…

Isso mesmo, ‘olho’!

Piscar de ‘olhos’ demoraria o dobro. Piscar apenas um demora metade do tempo!

E lá estava eu em queda livre num abismo de mais de cinquenta metros.

Não houve tempo para pensar no que havia acontecido!

No que estava acontecendo!

No que aconteceria!…

Só havia uma certeza: essa eu havia sentido nitidamente… um empurrão nas costas!

Antes mesmo do fim da queda eu já tinha uma pergunta formulada:

“Quem me empurrou”?

E antes de qualquer resposta… muito antes que eu me estatelasse nas pedras frias e disformes no pequeno poço escondido lá embaixo na mata… o milagre aconteceu!

Tão inesperado quanto o ‘empurrão’, o milagre aconteceu!… Eu estava parado, com os dois pés firmes sobre uma rocha, abraçado a uma arvore roliça e comprida cuja copa ultrapassava em muito o nível da estradinha pedregosa!

Parecia que a arvore havia sido colocada ali para conter minha queda. Parecia que a rocha havia sido colocada ali ao pé da arvore para apoiar meus pés!

Ainda abraçado à centenária arvore olhei para baixo à minha esquerda… O abismo continuava ali, traiçoeiro, silencioso, sombrio olhando de esgueio para mim! Se a arvore espigada não tivesse parado minha queda, certamente ele, o abismo, agora estaria com outra cor! E eu jamais poderia contar essa história!

Enquanto esperava minhas pernas retomarem a respiração, ainda abraçado a arvore, olhei para trás… A dois metros havia um barranco vermelho, carcomido pela erosão. Três metros acima estava a diminuta clareira por onde eu fizera o voo cego segundos antes. À minha direita, quando terminava a gigantesca rocha, começava uma pequena trilha batida, usada certamente por tatus, pacas e outros bichos que contornavam o abismo para descer em busca de água fresca. A estreita trilha em meio ao emaranhado de galhos e cipós desaguavam no pasto de capim braquiária há poucos metros dali.

Esperei alguns segundos abraçado à arvore, para ter certeza de que eu estava vivo… apalpei a bermuda para ver se não estava ‘molhada’, peguei a trilha, sai no pasto e voltei para a estradinha. Fui devagar, pois as pernas relutavam em me levar!

A estradinha pedregosa estava tão deserta quanto antes. Apenas um bem-te-vi na copa de uma arvore qualquer avisava: “eu bem te vi”!

Minha bicicleta preta continuava solenemente apoiada na velha porteira caiada de branco, à minha espera.

Parei ressabiado a uma distância segura do montinho de pedregulho, minha pista de decolagem, buscando uma explicação para o escorregão. Não encontrei. Eu havia mesmo sido empurrado! Mas por quem? e por quê?

A estradinha da minha infância, há décadas não leva quase ninguém para além da porteira, para as fazendas abandonadas. Nos últimos anos, só o ermitão passa por ali uma vez a cada quinze dias. Quando passasse por ali no sábado seguinte, ele veria minha bicicleta encostada na porteira, mas não tocaria nela. Pensaria que o dono teria entrado no mato para ‘fazer uma viagem’ e não daria importância à bicicleta. Quando voltasse da venda do bairro ao pé da noite, apesar da escuridão,  acostumado com a tênue luz da lamparina, veria a bicicleta preta encostada no coiceiro da portaria. Mas não daria importância. Não era dele. Não era da sua conta. Dali a quinze dias ele voltaria a passar pela porteira. A bicicleta preta estaria no mesmo lugar acumulando poeira. Ele comentaria o fato na vendinha do ‘Vilino’. As pessoas ligariam os fatos e … eu finalmente seria encontrado! O legista teria dificuldade para me identificar na forma da lei. A arcada dentária e os longos cabelos começando a branquear, únicos que estariam intactos, certamente ajudariam na identificação…

Me velório certamente seria bastante concorrido e comentado!

Mas nada disso aconteceu. Pois ao ser empurrado para o abismo, havia uma arvore e uma pedra gigante logo abaixo, no lugar certo, para evitar que eu chegasse ao fundo do abismo…

Sacudi a poeira, montei a bicicleta preta e segui meu caminho pedalando solitário pela serra. Passei pela tapera do ermitão, subi à direita pelo que restou de uma estradinha vermelha por onde passavam cavaleiros e carros de bois meio século antes, dobrei o espigão e desci no bairro das Almas. Conforme o roteiro traçado, passei em Congonhal e só voltei para casa no final do dia. Enquanto pedalava por trilhas e antigas estradas desertas, eu ia pensando com meus cabelos dançando ao vento…

– Quem me empurrou no abismo da cachoeira?

– Por que a arvore apareceu no meu caminho para segurar minha queda?

As respostas demoraram anos para chegar…

A resposta à primeira pergunta foi surpreendente! E foi necessário um segundo milagre para que eu compreendesse o primeiro.

Em 2001 eu entrei embaixo da principal queda d’agua da ‘Cachoeira das Quinze Quedas’ para fazer uma oração. Ao terminar minha conversa e tentar sair de entre a pedras traiçoeiras e escorregadias, ouvi uma voz me ordenando que voltasse à posição anterior e continuasse a orar! A ordem se repetiu três vezes, o que me consumiu mais de cinco minutos. Foi o tempo necessário para que o perigo – literalmente – passasse… e eu pudesse continuar contando histórias! Essa história está no livro “Quem matou o suicida” com o titulo “Milagre na cachoeira”. Mesmo assim demorou alguns anos para que eu compreendesse que havia sido salvo por um milagre!

Quando, num momento de reflexão e buscas por respostas, eu compreendi o Milagre da Cachoeira, eu me emocionei muito, me arrepiei, agradeci…

Foi nesse momento de emoção que eu compreendi o primeiro milagre, o milagre do ‘empurrão do abismo’! Foi nesse momento que o ‘autor’ do empurrão me disse:

“Fui eu que te empurrei”!

– Mas por quê?

– “Você olhava para a frente procurando ver a cachoeira por entre as arvores e não viu o perigo a um palmo dos seus pés. Você estava entre a serpente e o abismo. A picada seria fatal. Quando ela armou o bote, a única maneira de tirá-lo dali era para baixo… Por isso eu te empurrei. Mas eu te empurrei na direção segura, na direção da arvore que reteve sua queda”!

Desde aquela conversa com Ele, tenho recebido muitas respostas… até mesmo para perguntas que não fiz. Desde então tenho percebido muitos milagres à minha volta!

“O dia em que dormi com Pelé”

“Nós pulamos juntos para cabecear a bola, eu era mais alto, saltava mais. Quando pisei de volta no chão, olhei espantado para o alto e Pelé continuava lá, cabeceando a bola. Era como se ele conseguisse ficar em suspensão pelo tempo que quisesse.”

 “Tentei me convencer de que ele era de carne e osso como todo mundo. Eu estava errado.”

Assisti a todos os jogos da Seleção Canarinho na Copa de 70, na tv preto-e-branco na casa do meu vizinho, no alto da rua São João. Esse foi meu primeiro contato com o mundo magico do futebol. De cara assisti às magias do maior jogador de futebol do mundo em todos os tempos. Em 78, quando a tv, ainda preto-e-branco, entrou na minha casa, o Rei já havia pendurado as chuteiras! Que pena! Pra mim Pelé poderia ter jogado na seleção até os 50, 60 anos!

 

Consumidor inveterado de notícias de telejornais, naturalmente acompanhei pela TV o drama do Rei Pelé e sua família até a morte do seu corpo no dia 29 passado. Antes mesmo do desencarne, o qual eu sabia que seria inevitável por aqueles dias, passei a perguntar a mim mesmo qual o tamanho da homenagem que a mídia nacional e estrangeira faria ao nosso rei.

Hoje tive a resposta.

Recebi do amigo Kenith um texto da lavra de João Moreira Sales, que mostra a real dimensão do que foi Pelé, o Rei do Futebol. Trono do qual nenhum outro jogador do mundo, por mais magico ou fenomenal que seja ou tenha sido, sequer chegou perto!

O texto é longo. Se você não gosta de ler, não perca tempo começando.

Mas se você gosta de ler e entende o que lê, vale a pena usar dois ou três minutos para viajar no tempo e saborear o que o documentarista e fundador da Revista Piauí, após uma noite de insônia pensando nele, diz sobre o nosso Rei.

 

“O DIA EM QUE DORMI COM PELÉ

Numa noite de insônia, a gente se dá conta do que perdeu e ganhou com a morte do Rei

04jan2023_11h22

JOÃO MOREIRA SALLES

 

Pouco depois da meia-noite de 31 de dezembro eu já estava deitado, mas só adormeci por volta das cinco da manhã. Não foram os fogos nem os foliões do lado de fora que me mantiveram acordado. Foi Pelé. Ou, para ser mais exato, o que Pelé me fez pensar. A notícia havia chegado dois dias antes, e, do dia 29 de dezembro até a noite da virada do ano, eu, como milhões de pessoas, passaria horas tentando compreender a dimensão dessa morte, o tamanho do que vinha de desaparecer.

 

Logo ficou claro que a comoção não era só nossa, brasileira. A edição internacional do New York Times publicou um artigo tocante de José Miguel Wisnik na dobra superior da capa. O obituário ocupou toda a página dois – cinco fotografias, seis colunas, do alto ao pé da versão impressa. O francês Libération deu capa e quatro páginas, logo as quatro primeiras, em geral tomadas por assuntos políticos. No jornal esportivo L´Équipe, foram 24 páginas. Até o Financial Times, que provavelmente se interessa mais pela cadeia produtiva da bola do que pela bola, pôs Pelé na capa.

 

Um amigo, o n. 1, me escreveu o seguinte: “Eu tenho chorado de forma intermitente desde ontem. É arrebatador. Não tinha ideia de que seria assim.” A confissão veio acompanhada da capa do jornal italiano Domani, na qual se lia: “Morreu Pelé, o homem que inventou o Brasil” – “A manchete definitiva”, cravou esse amigo, “porque o Brasil que o mundo aprendeu a amar (feliz, criativo, majestoso, quente e tolerante) não existiria sem a ascensão de Pelé.” Do amigo n. 2 recebi um e-mail intitulado “A melhor capa veio da Bolívia”. Era do diário La Razón: “Murió Pelé, el fútbol se queda con 10” – um achado de difícil tradução, querendo dizer que dali em diante o futebol viveria para sempre com uma ausência em campo, não mais onze jogadores por equipe, apenas dez, o número da camisa do Rei.

 

Nenhum brasileiro jamais mereceu tratamento igual, nenhum causou tanto espanto. Por essa medida, então, Pelé foi o maior de todos os brasileiros, mas a prova dos nove, claro, está no que ele fez em campo. De certa forma, está nas imagens que sobreviveram, está nos arquivos de sua arte.

 

Eu não vi Pelé jogar. Tinha oito anos em 1970 e, por motivos que não vem ao caso explicar, não assisti aos jogos da Copa do Mundo do México, apesar de tê-los vivido intensamente. Ir atrás dessas imagens significava rever as jogadas mais clássicas de Pelé, aquelas que vivem na memória de qualquer amante do futebol, quase todas da Copa de 70, mas também, e talvez principalmente, descobrir o que ele fazia de forma rotineira nas partidas menos vistosas de sua carreira. Do amigo n. 1, dei a sorte de receber um fio de Twitter com “estatísticas desconcertantes e dois vídeos sensacionais”. Foi esse fio que vi e revi.

 

Muita gente se pergunta se Pelé conseguiria se impor no futebol de hoje, um esporte mais rápido, mais técnico e mais exigente fisicamente. Basta meia hora assistindo às suas jogadas para concluir que a pergunta não faz sentido. É exatamente o contrário. O certo seria perguntar se os grandes jogadores de hoje conseguiriam jogar tão bem nas condições de antigamente. Walter Casagrande, outro que se emocionou ao se recordar de Pelé, desmontou rapidamente a ideia de que hoje Pelé não seria Pelé. Tudo era mais precário na época em que ele jogou. As chuteiras eram pesadas, a bola deixava de ser redonda à medida que o jogo corria, a arbitragem não tinha instrumentos para coibir a violência. Cartões amarelos e vermelhos foram introduzidos apenas na Copa de 1970, e ao craque daqueles anos cabia não só a tarefa de levar o time à vitória, mas também a de sobreviver às pancadas recebidas ao longo de 90 minutos. Era jogo e era luta.

 

Isso sem falar nos campos. As imagens são impressionantes. Alguns jogos aconteciam não em gramados, tampouco em relvados nus, mas em lamaçais. Nos casos mais extremos, quase pântanos. Apesar disso, lá está Pelé, conduzindo a bola como quem passeia o seu cão bem treinado. A bola segue fielmente o pé, obedece, não foge.

Todo o repertório do futebol moderno parece estar à sua disposição, do arranque de Mbappé, ao drible curto de Messi, ao empuxe balístico e obstinado de Ronaldo Fenômeno em direção ao gol. No artigo para o NYT, Wisnik resumiu com precisão esse repertório:

Ninguém reuniu como ele as capacidades do drible e da velocidade, do chute com as duas pernas, do cabeceio preciso e fulminante, do jogo rasteiro e do jogo aéreo, do senso mágico do tempo de bola, do entendimento instantâneo do que sucedia à sua volta, tudo baseado numa constituição atlética vigorosa e rigorosamente equilibrada. Mesmo assim, o efeito-Pelé não se resume a uma soma, ainda que única, de habilidades quantificáveis. Um poeta e ensaísta observou que ele parecia arrastar o campo consigo, como uma extensão de sua pele, em direção ao gol adversário […] A beleza e a inteligência do corpo em ato, mais o olho de lince e a imprevisibilidade do pulo do gato, faziam com que Pelé parecesse funcionar numa frequência diferente da dos demais jogadores, assistindo em câmera lenta ao mesmo jogo do qual estava participando em alta velocidade, enquanto outros, em torno dele, pareciam estar, tantas vezes, assistindo ao jogo em alta velocidade e jogando em câmera lenta.

 

Pelé tinha a intuição de como o espaço se configuraria no instante seguinte, e assim construía a jogada não para a situação presente, mas para a situação futura, sabendo antes onde todos estariam dali a pouco. Além do drible, dominava também a finta, a forma mais bonita do engano, na qual a bola fica onde sempre esteve e é o corpo que sugere o movimento que não fará, levando o adversário a correr para o lado onde encontrará apenas o vazio, ninguém.

A finta é questão de espaço – sugere que o caminho é por aqui, quando na verdade será por lá. Pelé também era capaz de fazer o diabo com o tempo. Um dos seus movimentos mais típicos era abrir o compasso das pernas, deixando a bola no centro delas, enquanto os defensores, como uma matilha de lobos, se aproximavam de todos os lados, prontos para o bote. Pelé então inclina o corpo, anunciando a arrancada – que não vem. A perna de controle – que pode ser a direita ou a esquerda, pois ele tinha as duas – se aproxima da bola, mas nada faz, vibra apenas, afirma a potência sem entregar o ato. É como um respiro no tempo, uma pausa – uma pausa não, uma suspensão. Lembra a fermata musical, aquele momento em que, na tensão crescente, a orquestra interrompe a música e produz um hiato – o silêncio antes da resolução. Pelé faz isso com o jogo. Os outros 21 jogadores, talvez hipnotizados, talvez com medo de tomar a decisão errada, são forçados a parar, como se num tableau vivant. Tudo é interrompido e reorganizado segundo o desejo de Pelé. Ele faz com o tempo e o espaço o que a gente faz com um chiclete: comprime, expande, estica, aperta.

 

Rory Smith, repórter de futebol do NYT, reproduziu no jornal algumas histórias de jogadores que receberam a tarefa de enfrentar Pelé. “Nós pulamos juntos para cabecear a bola”, disse o zagueiro italiano Giacinto Facchetti, “eu era mais alto, saltava mais. Quando pisei de volta no chão, olhei espantado para o alto e Pelé continuava lá, cabeceando a bola. Era como se ele conseguisse ficar em suspensão pelo tempo que quisesse.” Tarcisio Burgnich, companheiro de Facchetti, sintetizou: “Tentei me convencer de que ele era de carne e osso como todo mundo. Eu estava errado.” O goleiro Costa Pereira cruzou o caminho de Pelé numa final entre o seu Benfica, campeão europeu, e o Santos, campeão sul-americano . “Entrei em campo esperando parar um grande homem”, contaria depois. “Deixei o campo convencido de que fui superado por alguém que não tinha nascido neste planeta como o resto de nós.”

 

Então, foi isso o que se perdeu, e a constatação dessa perda, da sua dimensão, foi o que tirou o sono na noite de ano-novo?

Não exatamente.

“E mais uma coisa”, escreveu o amigo n.3: “Deve ser [a soma de] tudo o mais que acontece neste país atrapalhado, mas o Pelé ter desaparecido me dá uma tristeza… Não pensei que fosse ficar assim. Mas fiquei.” Ao que respondeu o amigo n. 4, o último deste relato: “Não desapareceu, não, reapareceu (e apareceu) para os olhos de milhões. O fio que o João mandou” – eu circulara o tuíte mandado pelo amigo n.1 – “é impressionante.” O amigo n. 4 estava certo: a chave é esse reaparecimento de Pelé.

 

Tom Jobim dizia que o Brasil amava Garrincha, mas precisava aprender a amar Pelé. De fato, gostar de Garrincha é mais fácil. Garrincha é trágico, foi explorado em vida e morreu precocemente, bêbado e triste. Garrincha não desafia quem o admira. Foi imenso durante certo tempo, mas voltou para o nosso plano e terminou na nossa escala. Essa queda permite que seja amado com piedade, esse sentimento essencialmente hierárquico em que o piedoso olha do alto para o objeto de sua compaixão. Compadecer-se da dor de Garrincha faz bem à autoimagem. Estamos do lado de quem sofre, somos boas almas.

 

Amar Pelé foi sempre mais difícil. Pelé jamais caiu. Ao contrário, subiu, subiu e lá ficou. É uma altura que oprime. Sendo impossível não gostar do jogador, o homem se tornou o alvo. Edson Arantes do Nascimento, o inocente útil que serviu aos interesses da ditadura; a celebridade ingênua que, sem falar de política, pedia que o Brasil cuidasse das crianças nas ruas. (Na época parecia demagogia, mas, como escreveu Paulo César Vasconcelos no Globo, “o tempo passou, e os bisnetos daquelas crianças continuam nas ruas”.) Pelé era mais admirado do que amado.

Mas aí é que está. Como observou o amigo n. 4, nos dias que se seguiram à morte de Pelé, nos demos conta não do que desapareceu, mas do que nos foi presenteado. A suprema beleza do que ele fez em campo, a alegria que deriva dessa beleza, isso é nosso, nos pertence. Por causa dele, o Brasil se tornou a referência máxima do esporte mais popular do mundo. Um dos nossos dominou o jogo como nenhum outro. Uma supremacia que não se assenta em armas ou truculência, mas em brincadeira e graça.

Sempre foi esse o seu dom, e, como lembrou Wisnik no NYT, nada disso estava desconectado do Brasil: “Já se disse que um gol de Pelé, uma curva arquitetônica de Oscar Niemeyer e uma canção de Tom Jobim cantada por João Gilberto soavam então como ‘promessa de felicidade’, da parte de um exótico país marginal que parecia oferecer ao mundo a passagem leve e profunda da linguagem popular à arte moderna sem arcar com os custos da Revolução Industrial.”

 

Esses dias mostraram o que já parecia esquecido: que o Brasil é capaz disso.

 

E que a reaparição fulgurante do seu legado tenha se dado quase simultaneamente a este outro evento – a fuga, a bordo de um avião da FAB, do que o Brasil tem de pior – iluminou, com uma clareza que chega a cegar, aquilo que ainda podemos ser e aquilo que precisamos desesperadamente evitar.

 

Pelé promete, sim, essa felicidade que ainda nos cabe cumprir. Nada está dado, tudo ainda é possível. É uma constatação que acelera o pulso, que causa euforia e explica uma noite de insônia durante a qual, de olhos fechados, alguém, num quarto escuro, com festa do lado de fora, compreende que Pelé é mesmo tudo o que dizem e conclui que, se ele é daqui, se foi um dos nossos, então o Brasil jamais estará perdido”.