Conheci o Carneiro ainda menino, de calças curtas e pés no chão, no final da rua Mons. Dutra, no bairro Primavera. Do meio de uma renka de irmãos e irmãs, o garotinho branquelinho, de sorriso fácil, deve ter ganho seu apelido por causa dos cabelos loiros cacheados, parecendo o fornecedor de lã… Apesar de nos conhecermos da rua e sermos ‘malungos’, nunca estreitamos relacionamento. Nos aproximamos em 1990, quando eu dirigia a LEPA e ele foi levado pelo Jose Maria Simões, para ser o ‘barateiro’ do ‘carteado’ na sede da liga.
Foi ali que conheci também o Lobo, companheiro inseparável do Carneiro…
Por mais que Carneiro desprezasse e tentasse se ver livre do fiel amigo, ele sempre seguia seus passos e na maioria das vezes, apenas o seu cheiro… E sempre estava à seu lado. Era baixo, forte, troncudo, pêlos grossos e compridos quase se arrastando pelo chão. Pêlos desarrumados e sujos… Acho que nunca viu um chuveiro ou mesmo uma mangueira no quintal. Banho!!! Só quando chovia.
Carneiro almoçava cedo em casa no Santo Antonio e descia a pé até os barzinhos em volta do Mercado Municipal. Podia-se contar nos dedos – da mão esquerda – os dias da vida de Carneiro em que ele não virou um copo de Suco de Gerereba… E o fiel Lobo descia a Getulio Vargas ou Otavio Meyer ao seu lado. Às vezes na frente, às vezes arfante, atrás… O dia que Carneiro estava atrasado para o trabalho e descia de onibus, Lobo vinha correndo no rastro. Minutos depois de sua chegada na Liga, Lobo chegava com a língua de fora. As vezes chegava antes do Carneiro. E se deitava como de habito na varanda da Liga na Mons. Jose Paulino.
Enquanto Carneiro cuidava do carteado, do meio dia até a madrugada, Lobo ficava na varanda do prédio. Dormia de roncar o dia inteiro… De noite fingia dormir, mas estava sempre atento. Se chegava um conhecido na liga, ele apenas abria os olhos sem mexer com a cabeça. Se fosse estranho, imediatamente Lobo se levantava, se empertigava e latia forte para avisar o dono e até impedir a passagem…
Certa tarde de muito calor, notei pequenas pintas marrons na parede bege da Liga. Coisa à toa, não dei importância. No dia seguinte pela manhã as pintas não estavam mais lá. Também não dei importância. Outro dia, por acaso voltei a perceber as mesmas pintas na parede. Passei a observar e vi que as pintas redondas e achatadas, do tamanho de uma tampa de canetas bic, outras maiores, estavam… se mexendo!!! Observei melhor… Eram carrapatos!!! Três, cinco, oito…? Não…!!! Eram 18, 20, 25 carrapatos da cor de chocolate, de variados tamanhos! Eles subiam lentamente pela parede bege propiciando uma bela combinação de tons de cores, até sumir próximo ao telhado… Aquela debandada de parasitas estava abandonando o Lobo. Nem os carrapatos suportaram a falta de higiene do velho, peludo e dócil Lobo!!!
Menos mal que estavam abandonando o corpo peludo do Lobo! O problema era… Para onde iriam? Dentro do escritório, das salas de jogos, da cozinha nenhum carrapato foi visto. Mas, havia a questão do nojo, da falta de higiene! Era preciso dar um fim nos carrapatos… ou no seu hospedeiro!
Carneiro, era o típico bom carneiro, nunca berrava. Não sei por inteligência ou por natureza, era de falar pouco e escutar muito. Ele não era meu subordinado, mas nosso relacionamento era respeitoso e cordial. No entanto, sempre pareceu que ele tinha medo de mim, embora não tivesse motivo.
Quando pedi a ele para não trazer mais o Lobo – e seus carrapatos – para o trabalho ele não objetou. Mas a separação era praticamente impossível. Nos primeiros dias Lobo atrasou um pouco mais para chegar à Liga… precisou de alguns minutos para roer as cordas que o prendiam e as tabuas do portão, antes de descer calmamente a Otavio Meyer, parar no bar no da Maria, na esquina do mercado e seguir em frente, o cheiro do dono.
No outro dia Carneiro amarrou Lobo a uma corrente. Que problema!!! Ninguém dormiu na vizinhança enquanto Carneiro não chegou. Lobo latiu, chorou e uivou até ouvir a voz do dono… de madrugada!
A única maneira de livrar-se do Lobo era doá-lo a alguém. Mas ninguém queria um cachorro de meia idade, com porte de Beagle e pelagem de Pequinês, encardido, mesmo que não soubessem que ele era o maior taxista de carrapato da cidade! O jeito então era abandoná-lo longe de casa.
Na madrugada seguinte, depois de encerrar a sessão de carteado, Carneiro colocou Lobo no porta malas do carro de um amigo e ele o soltou na entrada do Pantâno. Naquela mesma madrugada, antes do galo cantar, Carneiro precisou se levantar ainda grogue, exalando seu característico cheiro de bagaço de cana, para abrir o portão… O amigo Lobo estava lá arranhando o portão, tentando entrar para proteger a casa do dono!
Carneiro ainda fez mais duas ou três tentativas de despachar Lobo, mas ele sempre voltava para casa… E com ele os carrapatos! Até que;
– Carneiro, embale o Lobo para viagem. Amanha é dia de ir à Silvianopolis… Vou levar o Lobo e jogá-lo no Rio Cervo. Quero ver ele trazer os carrapatos para cá de novo…!!!
Se pensam que Carneiro se amofinou! Se enganaram carrapatamente!
A uma da tarde do dia seguinte Carneiro estava, como de habito, sorridente na porta da liga me esperando. Dentro do saco de estopa marron, imóvel, alheio ao seu destino, podia-se ouvir a respiração ofegante de Lobo…
Parei o Escort prata sobre a ponte do Rio Cervo, na divisa dos municípios de Pouso Alegre com Espírito Santo do Dourado. Abri o porta-malas, desatei lentamente a cordinha que amarrava o saco de estopa… Lobo havia se ajeitado na traseira do carro. Estava sentado dentro do saco. A língua de fora… Não disse uma palavra, não fez um movimento. Apenas fitou-me seu par de olhos pidões! Afastei-me um metro da traseira do carro, apoiei as mãos no parapeito da ponte da estrada deserta e olhei para baixo. As águas sujas do pequenino Rio Cervo desciam rápidas lá embaixo, se desviando de pedras e de galhos podres de arvores, seguindo seu inexorável destino em direção ao mar… Nenhum animal sobreviveria àquelas pedras fincadas em pouco mais do que uma lamina de água suja. Esperei um minuto, que pareceu uma eternidade, ali encostado na ponte, torcendo para meu amigo Lobo pular do porta-malas, sair correndo até se enfurnar numa chácara qualquer da beira da estrada… Mas ele permaneceu imóvel dentro do saco. Seus olhos tristes pareciam querer dizer;
– Estou em suas mãos… Faça o que mandar seu coração!
Não esperei que ele repetisse… Mudo como ele, fechei a tampa do carro, entrei, dei partida e fui embora.
Quando o cabo Pinheiro passou ao longo do corredor da cadeia de Silvianopolis no inicio da tarde daquela terça feira, notou que as três celas sempre vazias, desta vez tinha um preso e perguntou;
– Qual o B.O. deste pobre diabo?
– Trafico ilícito de carrapatos…! Respondi
– Quanto tempo ele vai ficar aí?
– Até que alguém pague sua fiança e o leve para uma casa de tratamento e recuperação! Quer tentar?
No dia seguinte, quando Carneiro perguntou do Lobo, respondi curto, grosso e sério;
– Se a correnteza tiver andado bem, seu cãozinho carrapatento já deve estar chegando ao Rio Sapucaí, lá embaixo, nos Vitorinos…
Na quinta feira quando cheguei para trabalhar na Delegacia de Silvianópolis o baixinho cabo Pinheiro, de arrastado sotaque carioca, já estava no Destacamento, contiguo à delegacia e cadeia. Ao seu lado havia um cachorro cochilando. Era baixote, marrudo, imensos pêlos lisos escovados e tosados, cor de mel… Quando ele abriu os olhos preguiçosos para olhar-me de esgueio e mexeu levemente a ponta do longo rabo, lembrei do Lobo. Antes que pergunta chegasse à boca e ganhasse som a conclusão chegou ao cérebro… Vendo minha mudez sem olhar para mim, o cabo ‘carioca’ emendou com uma ponta de ironia e sarcasmo…
– Ele só precisava de banho, tosa e escova… Eu mesmo fiz!
A viagem de volta do Lobo foi bem mais confortável. Ele veio cochilando de rosquinha no tapete, na frente do banco do passageiro. Quando passamos sobre a ponte do Rio Cervo dei uma olhada discreta pela janela e outra para ele… Acho que vi seus olhos se abrir e fechar lentamente! Não sei se ele quis dizer:
– Viu o que você quase fez?
Ou se:
– E aí, valeu a pena?
Ou quem sabe…
– Obrigado por ter me dado uma segunda chance…
Difícil foi agüentar a boca aberta do carneiro nos dias seguintes. Ele, que já era risonho, não parava de sorrir!!! Embasbacou-se no momento em que viu Lobo, lindo, louro belo e faceiro cor de mel – e sem carrapatos – entrando na varanda da Liga.
Meses depois eu deixei a liga e perdi o contato com os dois amigos. Alguns anos mais tarde eu soube que a singela amizade havia chegado ao fim. Carneiro, na casa dos 30 anos, morreu precocemente, como era esperado. Seu fígado não suportou mais o banho diário de álcool. Cirrose hepática!!!
Lobo, que resistira ao ataque diário de dezenas de carrapatos e escapara do vôo cego no Rio Cervo, não resistiu ao inexorável passar dos anos. Já era bem maduro na época destes fatos. Pelo seu porte físico, deve ter vivido mais uns cinco anos, até os treze ou catorze anos…
Será que Lobo & Carneiro se encontraram no outro mundo?