Nos dias atuais, se fossemos dar nome a cada rua onde ocorreu um crime violento, de repercussão social, certamente sobrariam poucas ruas na cidade para homenagear feitos e figuras relevantes da nossa terra. A média de homicídio em Pouso Alegre estacionou já há algum tempo perto dos 15 ao ano. Mas já tivemos anos mais violentos. O século XXI na verdade começou assustador. Em 2001, entre latrocínios, suicídios e homicídios, começando com roubo de taxista, passando por acertos de contas entre bandidos no velho Aterrado e desacerto por causa de drogas e liderança no velho hotel da Silvestre Ferraz, 29 pessoas voltaram mais cedo para os braços do Criador … Ou pelos menos para o limbo cavernoso do Umbral.
Um crime, no entanto deu nome, ou pelos menos apelido a uma pequena via e a tornou referencia para quem busca se localizar no centro da cidade. “O Beco do Crime”. No velho Aterrado, onde acontece atualmente metade dos homicídios da cidade, certamente ninguém se lembra da esquina da cerca de taquara e da poça de lama onde os irmãos Reanir de Lima mataram o policial Marcos Alves da Silva em novembro de 1983, usando a própria arma do policial que os perseguia. Poucos também se lembrarão do boteco na porta do qual, no mesmo bairro, três jovens meliantes – Flavio Cagão, André Cabinho e Elton Mateus se mataram por motivos passionais e vingança há seis anos e tiveram seus corpos vilipendiados pelos parentes de Elton. O assassinato traiçoeiro e brutal do detetive Marcos Paixão há sete anos, chocou a cidade e comoveu a classe policial, porém, pouca gente sabe onde o funesto crime aconteceu. No dia 13 de novembro de 2003, ao meio dia, três guampudos de 16, 17 e 18 anos assaltaram a Lotérica da Garcia Coutinho e vazaram calma e sorrateiramente à pé pela Bom Jesus. Paixão voltava para casa pela Adolfo Olinto, alheio ao crime, quando viu pelo retrovisor do seu carro, um guampudo ajeitando um revolver na cintura. Ele rapidamente encostou o carro ao meio fio e ao tentar fazer a abordagem foi alvejado na nuca, sem dó e sem piedade, por outro meliante que já estava do outro lado da rua. Antes do final do dia os três latrocidas estavam atrás das grades. No dia seguinte sepultamos o colega, um dos mais intrépidos e atuantes detetives que Pouso Alegre já conheceu. E o fato aconteceu ali, na esquina do beco do crime, que recebera tal batismo meio século antes, num momento completamente diferente da nossa historia. Numa época em que matar era proibido por lei e por princípios. Numa época em que tirar a vida de alguém ainda não era um ato corriqueiro e banal.
Da torre da Catedral Metropolitana ou da janela do Colégio Santa Doroteia, os únicos prédios da época com mais de dois andares, podia-se avistar todos os limites da cidade. Depois do sobrado amarelo com a figura do belíssimo cavalo alazão na parede do alpendre do Sr. Argentino de Paula, na esquina da Com. Jose Garcia com Alfredo Custodio de Paula, o que sobrava era apenas uma arremedo de cidade. Logo ao lado estava o Estádio da Lema desde 1928, em seguida o hospital Samuel Libanio desde 1921, a vila São Vicente de Paula com suas humildes casinhas amarelas e a sorveteria do Gerôncio em frente o cemitério municipal na desmilinguida Taipas. A partir dali apenas estradinhas vermelhas seguiam para o Fátima, o Faisqueira, para a fazenda do Policarpo Campos e para o Cascalho. Desde as costas do ‘sobrado amarelo’ até o Esplanada e da esquina do Pinto Cobra até a Perimetral, tudo era fazenda de gado leiteiro.
Além da fabrica de macarrão do Orlando Chiarini em frente o Estádio da Lema, uma fabrica de manteiga e outra de banha suína somavam suas parcas riquezas à agropecuária, principal atividade econômica do município. Senador Jose Bento já pusera Pouso Alegre no mapa do Estado e do Brasil, mas o progresso econômico somente chegaria duas décadas depois com Simão Pedro Toledo.
Olhando da direita da novíssima e majestosa Catedral inaugurada três anos antes, era perceptível que o 8º Regimento de Artilharia Montada, instalado lá longe, perto do Jardim Yara em 1918, fizera a cidade caminhar mais naquela direção, passando pelo Colégio São Jose que já era um respeitável cinquentão. A “Vendinha” era uma pequena vila com pouco mais de 1.500 moradores – hoje virou bairro São João e tem quase 30 mil habitantes – o jardim Noronha era bairro novo e a Rua David Campista, famosa “Zona Boemia”, há um quarteirão do Santuário, já era um antro de boemia e perdição.
O bairro São Geraldo ainda não recebera este batismo. Era chamado pelo apelido que o originou: “Aterrado” e podia ser visto num relance só, pois tinha apenas a disforme Avenida Vereador Antonio Costa Rios, ora larga, ora estreita. As centenas de ruas e vielas que o tornaria o mais violento bairro distribuidor de drogas da região, abrigava ainda capituvas, pastagens, sangra-dáguas e mata típica de vargem ribeirinha. Depois da curva do Japonês eram só fazendas de gado.
A principal diversão dos jovens de todas as idades consistia em passear no Parque Municipal, na Praça João Pinheiro, onde se instalara há dois anos o Conservatório Estadual de Musica. Os homens menos refinados e mais arrojados se divertiam nadando nos poços do Lava-cavalos atrás do Vasquinho e no límpido e piscoso Rio Mandu, que corria bem mais perto do centro, onde se estende hoje a Avenida Perimetral. Na época das enchentes ficava ainda mais divertido pular de cima da ponte… – alguns anos mais tarde eu também pularia ali. Mas tinha também o Clube literário tal qual é hoje, o Cine Gloria do outro lado da praça e na Dr.Lisboa o imponente Teatro Municipal que serviu de delegacia de Policia. O mercado municipal com outra roupagem e muito mais modesto, mas não menos dinâmico e importante para a economia do município, já estava ali atrás da igreja, cercado de charretes, bagageiras e carros de bois. A principal fonte de energia das cozinhas das donas de casa; a lenha, era distribuída na cidade pelo Zé Fidelis no Jardim Yara e João Brunhara, na Santos Dumont, no quarteirão de cima do Beco do Crime.
Apesar de pequenina, Pouso Alegre já produzira muitos homens públicos que levaram seu nome além das fronteiras do município e do Estado. Mas tinha pouco mais de meia dúzia de médicos; Dr. Alaor Cobra, Dr. Gabriel, Dr. Lisboa, Dr. Omar Barbosa Lima, Dr. Vitor Romeiro, Dr. Jesus Pires… e meia dúzia de advogados, entre eles um que ganharia projeção justamente por defender o assassino do Beco do Crime; Rômulo Coelho. Alexandre Araújo ainda trabalharia mais vinte e poucos anos no DNER antes de se aposentar, mas já começava colecionar fatos, fotos e objetos que iriam contar nossa historia no riquíssimo Museu Tuany Toledo que ele próprio fundaria mais tarde. Juscelino Kubitschek de Oliveira e os ‘candangos’ já se preparavam para rasgar o cerrado do planalto para construir Brasília, mas quem mandava no país ainda era o Sr. Nereu Ramos. O cinquentão Palácio da Liberdade era ocupado por Clovis Salgado da Gama e cá nas terras banhadas pelo piscoso e manso Mandu quem dava as cartas era o bondoso medico Custodio Ribeiro de Miranda. Embora nascido em Congonhal, nosso mais ilustre cidadão na época era o jovem Milton Reis, que aos 26 anos representava Pouso Alegre na Assembléia Legislativa do Estado.
Crimes? Ah, já existiam. Tirando os mais moderninhos, os da internet e os de ‘colarinho branco’ – Brasília ainda estava no papel – quase todos os demais imaginados pelo homo sapiens já grassavam nas terras manduanas. A diferença de hoje ficava na estatística. Passava-se meses, anos e até décadas entre um crime e outro. O velho Hotel da Silvestre Ferraz já existia e era quase cinquentão. Conhecia de tudo, menos superlotação. Nem precisava de muro externo. Seus hospedes podiam passar o dia todo tomando sol, pendurados nas janelas, conversando com as pessoas que passavam na rua. È claro que os transeuntes não se aproximavam muito, pois todo preso naquela época era bandido perigoso, marginal, pária social, perverso e assustador. – O que mudou? – Quem se aproximasse e mantivesse contato com eles poderia se confundido com comparsa de seus hediondos crimes e seria discriminado pela sociedade. Chegar até a janela da cadeia para entregar um maço de Parquer ou Continental sem filtro ou mesmo um cigarrinho de palha recheado com carapiá e uma caixa de fósforos Ipiranga, era um ato de bravura que o transeunte fazia por medo… medo de não atender o pedido do preso e ser ‘marcado’ por ele. O bom mesmo era evitar passar pela Monsenhor Mendonça.
Era época em que os casais namoravam na sala – os mais íntimos iam para a cozinha tomar café quente e cheiroso com broa – sempre na presença dos pais da mocinha virgem, cada um numa ponta do sofá ou da mesa. Se o namoro fosse proibido, o mocinho esperava na esquina da rua de baixo ou na encruzilhada da estrada. Se a mocinha tivesse irmão e fossem amigos tudo era mais fácil. Mas se não se bicassem, o rapaz tinha que primeiro ‘domar’ o futuro cunhado para depois chegar ao pai da moça. Se o homem passasse dos vinte sem casar é porque tinha alguma doença… esterilidade talvez e já deixava de ser um bom partido. A menina se passasse dos 17, ou ia para o convento ou ficava para titia. A pequena frota de automóveis do município tinha apenas quatro carros de ‘praça’ e o único “motor” que rodava na cidade, nos fins de semana, era a Harley Davidson do Sr. Valdemar Moura. Pouso alegre era uma respeitável senhora de 107 anos com cerca de 30 mil alegres e pacatos filhos biológicos ou adotivos que atendia pelo charmoso e honroso epíteto de “Princesa do Sul”. Eu? Era ainda um mero sonho do jovem casal Eva/Daniel Ferreira de Matos. Era o ano da graça de N.S.Jesus Cristo de 1955.
A melhor vista panorâmica da cidade ficava justamente num local – que ironia!!! – onde os moradores já não podiam mais abrir os olhos; o antigo cemitério municipal no Alto das Cruzes. Sentado no seu portão podia-se contemplar o verdadeiro mar em que se transformava o bairro do Aterrado de dezembro a março, na época das chuvas. Atravessando a rua Carijós, da janela da casa do meu tio Joaquim Paula, podia-se ver o trem de ferro surgir lento e manhoso no bairro Belo Horizonte, sobre o rio Sapucaí e segui-lo com os olhos até que ele parasse, vinte minutos depois, fungando que nem cavalo velho e soltando canudos de fumaça branca pelas ventas da Maria Fumaça na estação da Avenida Brasil.
Foi ali mesmo, no Alto das Cruzes, no ‘triangulo geográfico’ formado pelas ruas São Pedro e Tupinambás – a Tupinambás sobe pela direita, passa por trás do Palácio da Carijós, antigo cemitério, depois Cemig e desce do outro lado até a João Vaz de Lima – que nasceu o mais famoso ‘triangulo amoroso’ de que se tem noticia em Pouso Alegre. Ou pelo menos o mais trágico. Na base do vértice morava a jovem donzela Jacira, pouco mais que uma menina, apenas 13 anos de pureza, beleza e sonhos. Na subida da Tupinambás o intrépido jovem Jesus Damasceno.
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