Pai atira na filha pensando ser o bandido Fernando da Gata

        Madrugada alta em Pouso Alegre. Nas ruas não se vê uma viva alma. Apenas um gato ou outro se arrisca a fazer a corte à sua gata manhosa com miados apaixonados parecendo choro de bebê. Num canto ou outro da cidade um cão uiva triste parecendo pressentir que alguma coisa ruim vai acontecer. Não tem ninguem na rua, todos se recolheram ás suas casas mas poucos dormem. De repente o silencio quase sepulcral da noite é cortado por um disparo de arma de fogo no bairro Santa Doroteia. Na porta do quarto de uma rica residencia um corpo cai ferido de morte. Seria o famigerado bandido estuprador Fernando da Gata!!!??? Não. Era T.N.S., 13 anos, que fora buscar um afago no quarto do pai, porque não conseguia dormir de medo…

 

      Leia agora a segunda parte de “Os ultimos dias de Fernando da Gata”

Os ultimos dias de Fernando da Gata

       Fernando Soares Pereira nasceu em 1961 na pequena Russas-CE e aos 21 anos, depois de meteórica carreira na capital paulista e em Pouso Alegre, tornou-se a pessoa mais temida e mais popular do Brasil. Sua fama começou na própria Russas onde mais tarde ele voltaria de avião fretado pelo governo do Estado e, sob o ruflar de tambores seria….. enterrado, como herói e mártir. Suas estripulias, brincadeiras com a policia e abusos sexuais começaram ainda na adolescência e aos vinte anos Fernando já era o mais ilustre ladrão e estuprador da cidade… e o maior fujão do velho hotel de Russas. Prende-lo até que não era tão difícil. Bastava chantagea-lo. O difícil era mantê-lo na cadeia. Diziam que ele tinha parte com o demônio, praticava magia negra ou algo assim, pois simplesmente desaparecia da cadeia na hora que queria. Quando os policiais não conseguiam prende-lo, diante da pressão da população, prendiam algum de seus familiares e então ele se entregava e o chefe da policia o exibia na sacada da delegacia para acalmar a população. Esta ultima parte até que pode ter acontecido, pois naqueles tempos, antes do advento da Carta Magna do jurássico Ulisses Guimarães, nos mais distantes rincões do nosso brasilsão verde-amarelo, especialmente nas pequenas cidades, políticos e policia faziam as leis de acordo com suas conveniências – Faziam….?

      Mas o baixinho que na lá no Ceará gostava mesmo de meninas novas de família, cansou-se da farra, da rotina e da pobreza do nordeste e resolveu descer para o rico sudeste. Fixou residência na periferia de São Paulo e se tornou Manoel Rufino da Silva, trabalhador da construção civil. Casou-se com Maria de Fátima, mas logo recomeçou a vida de crimes contra o patrimônio e contra os costumes. Seis meses depois estava em todos os noticiários impressos, radiofônicos e televisivos do país. Agora, o Fantástico Show da Vida já o apresentava ao Brasil como o misterioso “Fernando da Gata”. Em São Paulo ele pulava muros e quintais usando apenas um calção, dominava cães ferozes com um simples estalar de dedos, entrava nas ricas mansões de revolver em punho, estuprava a dona da casa no seu quarto com o marido trancado no banheiro ao lado ou na presença dele mesmo, comia refeições frias ou quentes preparadas pela dona da casa. As vezes fazia xixi – e o ‘dois’ também – nos pratos e panelas e ia embora levando somente objetos que pudesse carregar nas mãos ou numa sacolinha presa à cintura; joias.

     Herói, bandido, demônio, mito, folclore. Não sabemos o que é fato e o que é boato, mas foi com este perfil que Fernando da Gata chegou a Pouso Alegre em meados de agosto de 82. Aqui começa a historia que podemos atestar sobre o maior bandido que conhecemos, o qual passou como um furacão por Pouso Alegre e morreu na margem direita do rio Sapucaí, no bairro Pouso do Campo, em Santa Rita do Sapucaí. Morreu tão solitário quanto sua vida criminosa, duas semanas depois de adentrar o Estado mais eficiente do Brasil no combate ao crime.

       Um pouco de sua fama era verdadeira, pois os mais famosos policiais de São Paulo vieram para Pouso Alegre tão logo souberam de sua presença… para espantá-lo.

Quando um próspero comerciante da cidade recebeu a visita sorrateira de um baixinho seminu, na calada da noite, sem ser incomodado pelos dobermans, o cão de guarda da época, a policia se lembrou da principal reportagem do Fantástico na noite anterior e ligou os fatos ao bandido. Mas somente depois…

Para continuar lendo esta historia, acesse “www.meninosquevicrescer.com.br”.

 

 

Sargento Campos e Airton Chips em novembro de 2009

 

 

Como foram os últimos dias de “Fernando da Gata”

Você já ouviu falar de Fernando da Gata?

O meliante solitário dominava cães ferozes nos quintais, nas quebradas da noite, invadia mansões de ricos empresários, roubava suas jóias, estuprava suas esposas e filhas e desaparecia durante o dia.

Seus crimes colocaram dezenas de policiais em sua sombra. Depois de fugir do cerco da policia em Pouso Alegre, o maior bandido que já pisou o ‘sul das geraes’, foi morto com um tiro no peito, nas margens do Rio Sapucaí, na fazenda do Huet Motreira, antes de chegar à cidade de Santa Rita.

Mesmo depois de morto ele continuou dando trabalho à policia. Foi velado na delegacia e exibido como trofeu.

Três semanas depois de sua morte, ele fez sua primeira e única viagem de avião… da morte, para ser sepultado, sem os dedos, sob aplausos da população do Vale do Jaguaribe, no Ceará, onde se tornou herói.

A partir desta segunda você vai conhecer a historia do bandido que passou como um vendaval por Pouso Alegre, aterrorizando ricaços,  levando sua jóias, sua honra e uma tenra vida. Quando rumou-se para Santa Rita, colocou até os bandidos para dormirem mais cedo, debaixo da cama, até ser baleado por um policial que o encarou sozinho, ao pé da noite, num matagal.

Na serie “Meninos que vi Crescer”, em três capítulos, você vai saber como foram “OS ULTIMOS DIAS DE FERNANDO DA GATA” no Sul de Minas.

Cálice sagrado ressuscita “Já Morreu”

     Ele tem 34 anos e desde os 16 vive na rua. Aos dezessete matou um colega de ‘ponte’ – moravam embaixo da ponte – e conseguiu casa, comida e roupa lavada de graça. Desde que deixou o hotel do contribuinte de Cambuí, há quase 15 anos, vive nas ruas de Pouso Alegre, no velho hotel da Silvestre Ferraz e agora no Hotel do Juquinha. Seus delitos são leves. Consumo imoderado de suco de gerereba, uma ou outra pedra bege fedorenta de vez em quando, uma briguinha com uma namorada  e um furtozinho pé-de-couve aqui e acolá. Nada que faça dele um bandido, mas sem duvida um marginal, destes que mais incomodam do que metem medo. Mas ele já teve momentos de fama.

         Em 2002 passava eu pela perimetral com o parceiro Fernando Jardim, quando deparamos com um tumulto na beira do velho Mandu, defronte a tapera da Vigor. Nas duas margens do poluído rio, com a enchente baixando, havia mais de mil pessoas sem contar uma dúzia de policiais militares e outra de Bombeiros. Lá no meio do rio segurando uma bela tocha e agarrado a uma corda atirada pelos prestativos bombeiros, com a água pelo pescoço, Adriano Carlos do Carmo, o JA MORREU, dava seu show. Havia brigado com a namoradinha Luciene e dizia que queria ‘morrer por amor’. A brincadeira era ameaçar soltar a corda e afundar se os bombeiros se aproximassem. Os bombeiros até que achavam divertidos os apupos da platéia. Além do que, nadar àquela hora da tarde, embora em águas sujas de enchente, era refrescante. Mas os PMs já estavam com água pela tampa com a zombaria do nóia. A esta altura Adriano Já Morreu temia sair das águas mornas do rio, pois sabia que ficaria com o lombo quente da manguara dos policiais. Eu conhecia Já Morreu de outros carnavais. Em diversas ocasiões eu havia sido seu anjo bom, inclusive numa delas, levei vestimenta completa do meu guarda roupa para ele quando a PM o conduziu completamente nu para a delegacia. Por isso, ao ouvir minha voz na beira do rio, mamado que estava, desandou a chorar e viu em mim a tabua de salvação. Veio nadando lentamente em minha direção, sem soltar a corda, tentando explicar em meio a chorumelas o que estava acontecendo, sob calorosos aplausos da galera. Parecia coisa de cinema. Ao chegar à margem, no entanto, o inevitável aconteceu. Enfurecidos com o dramalhão do nóia e enciumados com o desfecho inusitado – estavam ali há mais de meia hora tentando sem sucesso por fim ao show do pé-de-cana, de repente a um simples aceno de um civil, o nóia vem para seus braços!!!. – os policiais o agarraram e o arrastaram – literalmente – para a barca. Achei mais sensato não intervir naquele momento e segui para a delegacia. Bastava cruzar a Avenida Perimetral – que ainda não tinha canteiro divisório – e seguir em frente para chegar à DP, quatro quarteirões depois, cerca de dois ou três minutos de viagem. Chegaram com ele duas horas mais tarde. As marcas de botina e cacetete não apareciam tanto porque ele – acostumado a comer soberdas marmitas e PFs oferecidos por donas de casa nas imediaçoes do centro, muito mais por medo dele do que por solidariede –  era um mulato encorpado e marrudo. Estava só de calção e como não conseguia andar, foi novamente arrastado na sarjeta até o saguão da delegacia. Não recebeu mais sopapos, pontapés e borracha no lombo porque eu o levei imediatamente para o interior da DP. 

        Depois de passar algumas temporadas no velho hotel da Silvestre Ferraz e no Hotel do Juquinha, por crimes pés-de-couve, Já Morreu retomou a leve e descompromissada vida de indigente e voltou ao lar doce lar das vielas, marquises, prédios abandonados e pracinha da catedral, na companhia de outros colegas de ‘filosofia’.

        Outro dia ele e outros dois colegas de copo, resolveram ajudar o sacristão na coleta durante a missa na Catedral. E o dizimo, é claro se destinava à obras  assistenciais … dele e do seu grupo, naturalmente. Como já estavam mamados, sujos e maltrapilhos um seminarista julgou inconveniente suas presenças na Casa do Pai e pediu à Guarda Municipal que os convidassem a se retirar. Eles desistiram da coleta e se foram de mãos abanando. Mas já Morreu não estava morto. Voltou para a coleta no final da tarde, antes da missa das cinco, com a casa santa ainda vazia. Para evitar aborrecimentos e transtornos com a sacolinha, resolveu levar sua parte em ouro e prata. Sorrateiramente pegou um cálice no altar, colocou debaixo da camisa e foi saindo de fininho. Esbarrou numa Ministra de Eucaristia e para disfarçar, fez cara de pelamordedeus e perguntou se ela por acaso não tinha uma cesta básica para presenteá-lo. Lá fora encontrou os amigos Agnaldo Acassio Reis e Evaldo Camargo da Silva e antes de trocar o valioso cálice por duas ou três ‘pedrinhas’ beges fedorentas e um ‘litrão’ da marvada com um intrujão qualquer no velho Aterrado, convidou-os para um trago de suco de gerereba. Não seria com certeza nenhuma Anisio Ferreira e muito menos uma Havana de Salinas, mas o copo? Ah, este era especial, muito especial… Seria no cálice de ouro com detalhes de prata, surrupiado da igreja. Ao passar pela Praça Senador Bento com pinta de somongós, foram abordados pelos homens da lei. Não foi difícil para os policiais deduzirem a procedência do cálice sagrado, dourado e prateado, quase tão valioso quanto o do Indiana Jones. Em poucos minutos o seminarista Wellington Caproni, que já os expulsara da igreja de manhã, reconheceu o caríssimo artefato furtado na igreja.

       Tudo resolvido? Não. Ao sentar ao piano, Adriano Carlos do Carmo, que há muito não sabe o que é documentos, disse que se chamava Carlos Henrique do Carmo e com o nome do irmão mais velho foi autuado em flagrante e levado para o limbo do umbral da BR 459. Passou batido na PM e na PC, mas caiu na malha fina ao fazer o ‘check  in’ no hotel do Juquinha. Na terça ele voltou à DP para assinar mais um B.O.. Artigo 297 do CP, falsidade ideológica.

        Já Morreu e seus dois colegas de copo, embora não vivam sem o famigerado suco de gerereba, devem estar cantando Chico Buarque…. “Pai, afasta de mim este cálice…”.

Perfeito, a pistola e o panetone

      Cheguei a Pouso Alegre há 40 anos, quando a população mal somava 40 mil habitantes. Não cresci ainda o suficiente para retribuir as possibilidades que Deus me deu, mas cresci e vi a cidade crescer e quadruplicar. Sempre me alegrei com o crescimento das pessoas à minha volta, especialmente aquelas do meu convívio que se tornaram social e profissionalmente homens bem sucedidos, alguns com os quais tive a felicidade de compartilhar parte de minha infância, adolescência e juventude. 

        Se me alegro com o sucesso, me entristeço com a decadência de meninos, que do meu convívio estreito ou não, vi crescer à minha volta. Não sei dizer quantos, mas vi crescer muitos garotos certamente com sonhos iguais aos meus ou de meus amigos, mas que nas encruzilhadas da vida fizeram a opção errada. Muitos na verdade não fizeram opção alguma. Apenas não ouviram uma palavra amiga, não tiveram um afago paterno ou um braço firme e generoso no ombro para mostrar o caminho certo e seguiram sem rumo. Desviaram-se para o que parecia mais fácil, mas que se tornou doloroso, lamacento e quase sem volta caminho do crime. 

     C.A. da Silva era um desses garotos. Esperto, sonhador, franzino, criado numa rua estreita do bairro São João com vários outros irmãos. Tinha medo dos outros garotos de sua idade, pois era menor e mais fraco que eles, mas logo descobriu que se batesse primeiro poderia amedrontar os outros. Ainda impúbere C.A. ganhou um apelido que o acompanharia pela –  curta – vida toda; Perfeito.

     Conheci Perfeito por acaso numa situação totalmente inusitada. Certa manha de meados de dezembro descia eu lentamente uma rua do bairro São João, conduzindo a 6252 juntamente com meu parceiro e futuro afilhado Fernando, quando avistamos à nossa frente um garotinho de cerca de doze ou treze anos, entre outros da mesma faixa etária, exibindo uma pistola oxidada, como se estivesse prestes a disparar azeitonas quentes. Exibindo mesmo, tanto que me aproximei com cautela e com a mão esquerda, de dentro da viatura tomei-lhe a reluzente pistola… de plástico. Assustado, não tanto pelo fato de ser surpreendido pela policia, muito mais por ter perdido seu brinquedo, Perfeito mostrou-nos sua casa, alguns metros rua abaixo. Instantes depois sua mãe, sem muito constrangimento, explicou que dera ao filho dois reais para comprar um brinquedo e não sabia que ele queria comprar uma arma – E certamente não se importaria se ele tivesse dito.

         Depois do ameno sermão seguimos nossa rotina pelo bairro. Uma semana depois passamos novamente pela mesma rua, na ágil 6252 e lá estava Perfeito sentado na sombra da própria casa ladeado pelos amigos e irmãos. Como da vez anterior, de dentro da viatura fizemos o inverso. Entregamos ao franzino garoto uma bola de futebol e um panetone. Não disséramos nada quando tomamos a pistola, mas parece que Perfeito estivera ali todos os dias esperando por ‘aquela compensação’. Um dos garotos correu para dentro da casa para entregar à mãe o panetone e os outros imediatamente fizeram a bola rolar e quicar na rua poeirenta defronte sua casa como se fossem crianças!!! Não precisávamos de palavras, o gesto já dissera tudo mas, ao nos afastarmos, Perfeito desviou por um instante os olhos da bola que já estava manchada de poeira, levantou um dos braços e… acho que ele disse “obrigado”. Foi o melhor presente de Natal que já dei a alguem.

      Anos depois, ao folhear os BOs na Delegacia de Policia a procura de assuntos para meu programa “Direto da Policia”, encontrei um BO da noite anterior que narrava uma tentativa frustrada de assalto a um supermercado do bairro Santa Luzia. Segundo o relato dos policiais, o comerciante percebera a presença de um sujeitinho com pinta de somongó, espreitando sorrateiramente o estabelecimento e chamara os homens da lei. Na abordagem fora encontrado com o ‘futuro’ gatuno um trezoitão meia-vida, porém devidamente municiado, pronto para ameaçar e vomitar azeitonas quentes se fosse necessário. O frustrado assaltante era C.A.da Silva, o Perfeito, agora com 15 anos e… uma arma de verdade.

         Embora Perfeito já fosse conhecido por outros delitos mais leves, este foi meu primeiro contato com ele depois do presente de Natal. Muitos outros ainda aconteceriam. Furtos, uso e trafico de drogas, roubos, tentativas de homicídio ainda engrossariam a ficha criminal deste menino que vi crescer. Certa manha ao chegar para trabalhar no CPD, lá estava no banco da velha delegacia, o garotinho Perfeito, esperando uma formalidade para ser liberado, pois caíra nos braços da PM, fazendo um “aviãozinho” na madrugada e como ainda era inimputável, depois de enquadrado em ‘procedimento especial de menor’ voltaria para as ruas. Ao ver-me puxou prosa e com sorriso infantil e maroto de gato que acabou de comer o toucinho, desfiou a velha ladainha; “…parei com a nóia”. Vou arrumar um ´trampo´ e mudar de vida”. Eu ainda conversava com ele no corredor quando Teobaldo veio apagar seu sorriso, já um pouco sacana de quem diz: “fica na tua mané, daqui a meia hora ´tô´ na rua e já vou fazer outra parada”, “vocês nunca vão me pegar”. Neste momento ele foi pego. O detetive estendeu-lhe pulseiras de prata ao mesmo tempo que informava a mim e a ele; “ Você completou 18 anos ante-ontem ”. Agora você é “dimaior”. Vai ser fritado no 12 e ´subir´. E Perfeito que naturalmente já conhecia o velho hotel da Silvestre Ferraz por temporadas de custodia de 45 e  90 dias, perdeu completamente a vontade de exibir os alvos dentes. Subiu uma hora depois para o ‘lar, doce lar’ para uma temporada de 4 anos.  

         Na verdade não ficou tudo isso não. Dias depois na calada da noite fez um ´tatu´ no teto, subiu ao telhado, desceu pela ´tereza´ na frente do velho hotel e dobrou a serra do cajuru. Entre outras coisas, Perfeito foi pra rua acertar uma treta com Zezinho Fernandes, um velho desafeto do bairro… mas não foi perfeito. Na briga recebeu um golpe de lapiana na região abdominal e teve que adiar o acerto de contas. Levado para o PS, ele não morreu, mas voltou para o velho hotel e durante muitos meses carregou uma bolsa de colostomia presa à cintura. Mas nem isso tirou-lhe a mobilidade e nem abrandou seu coração insensível e sedento de poder. Jogava futebol daquele jeito mesmo no pateo da cadeia nos dias de banho de sol e certa vez quase matou um preso ´pé-de-couve´ que assistia a pelada da ´ventana´ do xadrez, apenas para mostrar que podia faze-lo. O homicídio por asfixia junto às barras de ferro da janela só não se perpetrou porque ouvimos os gritos abafados da vitima e de seu irmão que tentava puxar o homicida pelas pernas de volta para o pátio.

         Aos vinte e dois anos, um metro e sessenta, 52 quilos, ágil como um gato preto que era, Perfeito era um dos meliantes mais conhecidos da Policia e um dos mais temidos e respeitados do velho hotel. Mas ele não podia parar, pois a lógica é simples: quem para é ultrapassado e como liderança na prisão se conquista com força, violência e maldades, quem perde a liderança se torna um mortal comum e poderá ser a próxima vitima de quem busca o poder. Para manter-se em evidencia, na crista da onda, o pequeno meliante agitava diariamente o velho hotel, arrumando confusão com outros presos e a com a carceragem. A solução encontrada pela administração para baixar-lhe o facho foi transferi-lo para outra cadeia. Em Bueno Brandão Perfeito não tardou a colocar as manguinhas de fora… e superou-se, exagerou… colocou fogo na cadeia. Foi transferido para Cambuí. Local perfeito para a aprendizagem de Perfeito. Com meliantes paulistanos que todo dia descem a Fernão Dias com grandes cargas de drogas e acabam caindo nas malhas da séria e eficiente policia mineira, o garotão do panetone faria pós-graduação no crime. Na terra dos Lambert, Perfeito naturalmente quis mostrar que era um perfeito líder… um perfeito homem mau. Ao ouvir o comentário de um colega de hospedagem de que não gostava de tatuagem, embora tivesse varias pelo corpo, Perfeito tratou de ajuda-lo a desfaze-las e para isso usou uma lamina de gilete… sem anestesia. A ‘cirurgia’ pegou mal e causou agitação e revolta no velho hotel de Cambuí. Perfeito tornou-se ‘persona non grata’ e sua permanência ali perigava explodir o caldeirão. Com a superlotação reinante na região e a fama de agitador de cadeia, Camanducaia, Santa Rita, Albertina, Extrema, Ouro Fino, Borda ou São Gonçalo não o queriam nem pintado de ouro. O jeito foi devolve-lo à origem. E o pequeno grande meliante recebeu seu ultimo ‘bonde’; retornou a Pouso Alegre. Chegou numa sexta feira no final da tarde para sua ultima viagem. Seu destino já estava traçado.  Quem vai ao vento, perde o assento… Ele havia perdido seu posto de lider. A noite transcorreu aparentemente normal na cadeia. Apenas um som de ‘rap’ ou de tv mais alto numa ou noutra cela mas nada que fugisse à rotina. E ainda que a guarda fosse alertada, o que fazer quando vinte homens embrutecidos e fedidos num cubículo que cabem seis colchões estendidos no chão, decidem acertar suas contas? Na manha de sábado ao entrar na cadeia para a inspeção de rotina, o carcereiro foi informado que havia um “probleminha” no X 08. Enrolado em ‘cotonete’ – um lençol imitando uma camisa de força – Perfeito agora parecia perfeito; calado, inexpressivo e frio jazia pendurado por uma ´tereza´ na ventana.

      Uma bola de futebol e um panetone às vésperas do Natal, não foram suficientes para mostrar a C.A. da Silva, o Perfeito o caminho perfeito a seguir. No ‘torto’ ele não foi longe…

Zinho & Fonfon… nascidos para morrer

      Moravam numa casa simples no meio da subida da rua 09. Não havia muros na frente e nem nos fundos. Nas laterais os muros dos vizinhos serviam de divisa. A primeira vez que fui à casa deles levar-lhes uma intimação, mesmo que fosse necessário entregar-lhe pessoalmente, teria que entregar à sua avó, pois antes de descer da viatura ouvi o ranger de um sofá velho e o tropel de alguém correndo em direção ao quintal. Dona Bê ligeiramente confusa e aborrecida atendeu a porta e perguntou em tom desacorçoado; “Pra quem é desta vez?”. O ‘convite’ da Delegacia de Orientação a Menores, para esclarecer mais um furto na vizinhança, era para Zinho e Fonfon, pois a vitima não tinha certeza qual era qual.

       Foi assim que conheci W. e E.R. Pereira, os irmãos de vida desregrada e curta, no charmoso bairro conhecido por “Nem”… nem Pouso Alegre, nem santa Rita. Construído nos anos 90 com toda infra-estrutura, com ruas largas, asfaltadas, bem iluminadas, bem arborizado, escola municipal, moderna, igrejas, à margem de uma rodovia federal, agora com moderno trevo de acesso – falta apenas um campo de futebol e um ginásio poliesportivo – supermercados e muitos botecos, o bairro Cidade Jardim tem tudo a ver com o nome e faz inveja a dezenas de cidades do Estado de Minas em qualidade de vida e bem estar social. Com centenas de famílias honradas, honestas, ordeiras e cumpridoras dos seus deveres, que vieram realizar seus sonhos da casa própria e ter um cantinho para descansar após o labor, vieram também os desocupados, dissimulados, gatunos sorrateiros, larápios, traficantes, aviõezinhos e  nóias para atormentar a vida dos pacatos cidadãos.   

        Em 2004, dois deles conheceram o fim trágico da maioria dos adolescentes que enveredam pelas sendas do crime, e escreveram uma página negra na jovem história do Cidade Jardim. Os garotos, na flor da idade, provaram do próprio veneno que espalharam pelas ruas do bairro desde a puberdade. Zinho, 18 e Fonfon, 19 anos, eram figurinhas carimbadas na Delegacia de Orientação a Menores da 13ª DRSP. Furtos, roubos, brigas, ameaças, uso de drogas, tiros em via publica e até estupro faziam parte de seus currículos desde os treze anos. Embora sem estabilidade financeira, sempre gostaram de enxada de cabo longo… para ficarem longe do trabalho. Suas ocupações eram a cama, sempre nas quebradas da noite depois que as ruas ficavam desertas, sopas em pratos fundos, sombra e água fresca, comida quente e chamego, e “o que é seu é meu… e sai de baixo senão leva porrada”. Os irmãos viviam sob a tutela da avó, de expressão ranzinza e amarga e de um tio quarentão que parecia ter mais o que fazer do que cuidar de sobrinhos mal educados. Vieram de São Paulo. Os pais, nunca soubemos ao certo que destino levaram. Más línguas diziam que eram separados, outros diziam que haviam morrido no crime na capital paulista e outros afirmavam que tanto o pai quanto a mãe estavam hospedados em hotéis do contribuinteem São Paulo, por roubos e trafico de drogas. A avó que sempre acompanhava os pequenos meliantes nas audiências no gabinete da delegada Maria Inês Xavier, se limitava a dizer – com poucas palavras – que o filho e a nora estavam trabalhandoem São Paulo.Aliás, assistimos a metamorfose do humor e comportamento de dona Bê. No inicio ela comparecia às audiências, recebia os puxões de orelha dos netos, tentava explicar, justificar… prometia mais rigor e vigilância na educação dos pupilos e quase pedia desculpas pelos mesmos. Foi se transformando. Mais adiante entrava muda e saia calada do gabinete da delegada. Limitava-se ouvir e concordar com acenos de cabeça. Já estava desacorçoada com os netos delinqüentes e desistira de fazer qualquer coisa para muda-los. Para transformá-los em homens de bem. Toda semana  um novo B.O. era registrado pela PM contra os irmãos Zinho e Fonfon. Se não conseguira torcer os netinhos enquanto ainda eram pepinos, agora não torceria mais. Alguém os quebraria…..

       No dia 12 de julho Zinho completaria 18 anos. Idade crucial para os meliantes. A partir daí, se caísse de novo nas malhas da lei, não teria choro nem vela e nem fita amarela, seria cana. Depois dos 18 não tem mais ‘procedimento especial de menores’, não tem mais audiência com o promotor da infância e da juventude, nem com o juiz apenas para receber um ‘sabão’ e ‘passar a mão na cabeça’. A partir dos dezoito todo cidadão brasileiro é imputável, responde criminalmente pelos seus crimes – em tese, pelos menos. Talvez por isso Zinho tenha sumido. Desde o dia 10 ele não aparecia em casa para as atividades habituais de comer, beber, dormir… e dizer palavrões, grosserias e ameaças a quem quer que lhe fizesse alguma ‘cobrança’, a começar pela avó. No principio a família sentiu certo alivio. Não tinha policia e nem vizinhos aborrecidos batendo à sua porta. Até porque o pequeno meliante não tinha compromisso com nada e ausentar-se de casa por dois ou três dias sem dar satisfação era rotina. Mas com o passar dos dias os familiares, especialmente o parceiro de feiúra, Fonfon, que sabia muito bem o mato em que lenhava, começou a preocupar-se. Teria Zinho sido preso? Será que algum dos seus muitos desafetos teria ‘acertado seus passos’? Teria ele entrado em conflito existencial devido a maioridade ou se arrependido dos seus crimes e se pendurado na ponta de uma corda num galho de uma arvore? Quem sabe tivesse arrumado um emprego como um cidadão mortal comum, temente a Deus e quisesse fazer uma surpresa para a velha avó, aparecendo em grande estilo no final do mês, com o salário no bolso e um abraço no rosto para dizer; “Vó, criei juízo. Agora sou um homem de verdade e vou te dar um pouco de alegria e conforto”!!! Será??? Ou quem sabe uma mulatinha qualquer tivesse se enrabichado com ele e o chamado na chincha…? Dizem que a mulher poe o homem nos trilhos…  Como as ultimas conjecturas eram pouco prováveis, o melhor mesmo era procurá-lo, ainda que sua ausência fizesse pouca faltaem casa. Afinal, se ele não se importava com ninguém, havia quem se importasse com ele. Passaram a procurá-lo. Delegacia de Policia, hospitais, casa de pseudo-amigos, de inimigos, IML…

        Eu estava licenciado do trabalho policial e por isso não sabia do desaparecimento do garoto que vira crescer. Da janela do escritório do jornal ao lado da delegacia vi o perito Luiz Cláudio manobrando a viatura, saindo para cumprir mais uma missão. “Encontraram um corpo boiando no Rio Sapucaí, perto da Alpargatas”, disse ele. Aquela era a noticia mais quente do dia. Parei tudo e peguei carona na viatura. Ao passar por uma curva do rio, numa ilha, um canoeiro havia avistado um corpo em posição de gorila enroscado numa galhada. No barco do pescador fomos até o cadáver que boiava plácido, só de bermuda e já bastante decomposto nas águas sujas do rio. Viramo-lo apenas para as fotografias, pois era quase impossível reconhece-lo e a única lesão que pudemos constatar antes do estomago sair pela boca, foi um pequeno orifício no meio da testa. Mais tarde o legista Vitor Romeiro confirmou que a causa ‘mortis’ fora o único tiro à queima roupa, típico de execução, cuja marca vimos ainda no rio. Noticia ruim viaja no lombo do vento na velocidade da luz e poucas horas depois os familiares de Zinho chegaram ao IML para ver se o corpo do rio era dele. Era.

       As investigações dos colegas da Homicídios esclareceram rapidamente o crime do rio. Mas isso somente aconteceu depois do enterro de Fonfon.  Excetuando a avó e os tios, e aquelas pessoas que tentavam incutir alguma coisa de frutífera na cabeça e no coração dos irmãos Zinho e Fonfon, todas as demais pessoas do seu convívio eram do submundo do crime. Fonfon, o meliante mais velho, 19 anos, não tardou a descobrir o assassino do seu irmão. Mas Bandido que é bandido não entrega o algoz para policia… ele mesmo cobra a divida. Mal enterrou o irmão no sábado, Fonfom tratou de ir à forra. Passou a ameaçar o suposto assassino, por telefone e foi pessoalmente à sua casa ali mesmo no bairro. Não morreu no dia do enterro do irmão porque não o encontrouem casa. Namanha seguinte, um domingo ensolarado, foi esperar o algoz do irmão na esquina da rua 10 com 24. Quando Lagartixa e Eraldo passaram pilotando uma Brasília em direção ao campo do Chaves, pulou à sua frente e começou o discurso. Quando quis sacar a arma já era tarde. Foi lento. Recebeu um tiro nas axilas e caiu no asfalto ainda fresco da manhã. Para ter certeza de que não teria aborrecimentos, Lagartixa desceu da Brasília, se aproximou do corpo agonizante e atirou na cabeça, mesmo ‘modus matandi’ do irmão dele uma semana antes. Zinho sepultado no sábado, Fonfon morto no domingo e sepultado na segunda.

      O assassinato do menino no rio fora mais covarde e glamouroso. Enquanto o bairro crescia em população e noticias policiais, os irmãos órfãos cresciam em malfeitorias e maldades. Aos 18 e 19 anos Zinho e Fonfon eram os lideres do crime no Cidade Jardim. Liderança é uma posição sempre cobiçada. No caso do crime, para assumi-la, basta eliminar o líder. Além disso, os franzinos irmãos, o que tinham de truculência verbal, lhes faltavaem inteligência. Eramburrinhos, desonestos e presunçosos demais. Davam bandeira e podiam comprometer a honra dos criminosos do bairro. O melhor era eliminá-los. Isso seria brincadeira de bandido. E foi brincando que Zinho morreu uma semana antes do irmão. Foi com um grupo de amigos – da onça – nadar no rio Sapucaí, há duzentos metros abaixo da BR que corta o bairro, sem saber que sua morte já estava arranjada. Em dado momento, quando saiu da água, o desafeto o esperava no barranco e o mandou de volta. Quando ele ficou de pé, a meio metro dele Lagartixa apontou a 9mm e puxou o gatilho. Nem precisou jogá-lo ao rio. O impacto da bala fez o serviço. Enquanto o grupo de meliantes voltava para o bairro, de corpo e alma lavada, sem peso na consciência, o corpo franzino e desnudo do jovem Zinho ‘que vi crescer dando-lhe conselhos nunca ouvidos’, descia lentamente as águas barrentas do velho Sapucaí até enroscar-se numa galhada na curva perto da Alpargatas. Seu aniversario de 18 anos não teve bolo e nem o tradicional parabéns. Foi comemorado em silencio, por lambaris, piabas e mandis, ali naquela curva deserta de rio, margeando uma pequena ilha. Semelhantemente à historia dos irmãos Mazinho, assassinados por Max Peter em 2000 no Chapadão, a paz voltou ao Cidade jardim. Depois da morte precoce dos irmãos R.Pereira, o jovem bairro sumiu das paginas policiais. Dona Bê também pode reencontrar a paz…

Amelinha… aquilo sim era aborrescente de verdade

Era quase uma hora de uma madrugada fria de maio quando ela entrou pela porta que estava apenas cerrada. Gordinha, rechonchuda, longos cabelos loiros falsos, com as raízes pretas mostrando que há varias semanas nao tomava banho de tinta. Vestia uma calça jeans semi-nova, porém bastante surrada, resultado de muitos dias ininterruptos de uso e uma camiseta amarela menos usada, mas tão surrada quanto e chinelos havaianas. Trazia na mão direita uma faquinha de pão e na ponta da língua uma boa doze de fel … ou talvez pimenta.. ou simplesmente “paia”. Entrou como um furacão no saguão e ao ver que a única luz acesa era a do reservado da recepção onde eu estava, veio até mim perguntando sem parar; “Cadê a Fatinha…. hoje eu mato aquela desgraçada….Ela me bateu, hoje eu mato aquela desgraçada. Cadê ela, cadê ela?” Fatinha, a experiente detetive dos seus enfados, havia sido transferida para Pouso Alegre meses atrás e certamente, àquela hora, estava no melhor dos sonos, nos braços de Morfeu. Sonolento estava eu, que havia levantado há meia hora para receber um “menor infrator” conduzido pela PM, por ter sido abordado em via publica contrariando determinação judicial. Enquanto aguardava a chegada de um representante do Conselho Tutelar, fechei a porta e aproveitei para passar-lhe mais um dos inúteis sermões. Sem mover um músculo, além das pupilas para acompanhar os movimentos da desvairada, fiquei alguns segundos processando a cena, bolindo ‘tico & teco’ no cérebro, esperando minha deixa para intervir. O garotão negro, alto, sem desencostar do frio balcão de mármore, virou o corpo de lado e deu meio passo para trás, para a parede. Se eu não esperava tanto ódio e agitação naquele inicio de madrugada, a garota da faca não esperava tanta frieza de minha parte e nem tanta rapidez e coragem do garoto ao lado no balcão. Ao ver a garota brandindo a faca no ar, querendo a todo custo matar minha ex-colega há vinte e nove quilômetros dali, o garotão esguio esticou o braço e agarrou a munheca dela, imobilizando a faca e sua mão. Não precisei de nenhum movimento brusco para tomar-lhe a reluzente faquinha de pão de cabo de madeira. Desarmada, a garotinha continuou soltando impropérios e ameaças contra a detetive ausente e como não dizia coisa com coisa, convidei-a a se retirar. Tornei a cerrar a porta da delegacia e voltei a ‘businar’ na orelha do jovem esguio – meu corajoso auxiliar, muito mais corajoso do que um detetive “ad-hoc” com o qual trabalhei em Monte Sião. Um dia o corretíssimo delegado Watson de Pinho rolou na poeira com um meliante, caíram de um barranco de três metros de altura quebrando o pé direito e o tal ‘detetive’ não se dignou sequer a entregar-lhe o par de pulseiras de prata para prender o meliante vencido – de 17 anos. Antes de concluir o sermão, ouvi barulhos de vidros se estilhaçando do lado de fora. Ao abrir a porta deparei com a garota ‘braba’ com um pedaço de tijolo na mão quebrando a sirene e luminoso do velho golzinho 93, uma das duas viaturas pertencentes à delegacia. Desta vez tive que fazer força. Foi necessário puxa-la pelos cabelos para afastá-la da viatura e expulsá-la dali. Ela foi embora deixando para trás mais um inimigo tão odiado quanto a policial Fatinha. Mas voltou. Voltou cerca de uma hora depois. Desta vez, ao invés de faca de pão, trazia nas mãos um par de pulseiras de prata. Havia sido presa pela policia militar, quebrando as janelas do prédio do Ministério Publico à uma hora da madrugada. Seria louca? Estaria drogada? Estaria possuída pelo Chiquinho da Borda? Ou seria apenas mais uma adolescente deitando e rolando nos braços do protetor e desregulamentado ECA, querendo chamar a atenção??? Uma mera rebelde sem causa achando bonito fazer feiúra? O tempo diria…

Foi assim que conheci A.T.M.S., que chamarei apenas de  AMELINHA, aos 16 anos de fúria incontrolável.

Na manha seguinte, ao comentar com os colegas as alterações do Plantão Policial, os colegas me deram a ficha completa da ‘aborrescente’ aborrecida. Um dos colegas comentou; “… Então você foi batizado!!!”. Outro acrescentou sarcástico: “Não precisa ficar com saudades… você ainda vai vê-la muito por aqui. Ela é figurinha fácil…”. Amelinha, 16 anos, órfã de pai – vivo!!! Dizem asmas línguas – morava com a mãe, mas vivia mais na rua do que em casa. Apesar do seu jeito espalhafatoso, do seu palavreado chulo e gratuito, ela quase passava despercebida na rua; seria só mais uma adolescente mal educada. Mas nos órgãos públicos, na Delegacia de Policia, no Conselho Tutelar, no Fórum, no Ministério Publico, no hospital, ah!!!, Aí Amelinha soltava os capetas, rodava a baiana e dava show. Afrontar autoridades e seus agentes era para ela mais que uma obrigação… Ser o centro da atenção das autoridades era uma missão que ela realizava com raro prazer. A lista de seus artigos, no entanto era pobre. Apenas alguns 129 e outros 28. Ela gostava mesmo era do 140, 147 e 163. Danificar bens públicos, xingar e ameaçar agentes públicos era seu passatempo favorito. Seu estrelato no meio policial parece ter acontecido cerca de dois anos antes, por volta dos catorze anos, com a chegada da puberdade, quando ela foi infectada com o ‘vírus da adolescência’. Aí começaram as transgressões, as agressões, os xingamentos em casa, na escola e ela foi apresentada ao Conselho Tutelar. Ninguém torna-se cliente do Conselho Tutelar para fazer pic-nic. Amelinha tornou-se pernona non grata com espantosa rapidez. Aliás, pessoa indesejável e mal vista seria bondade. Antes do quinze anos Amelinha era a pessoa mais temida, era o terror dos conselheiros tutelares. Não pra menos. Não havia uma conselheira ou conselheiro que não tivesse tomado tabefes e bicudas regados a impropérios impublicáveis da pequena rechonchuda. Veículos e moveis do Conselho ela não quebrava todas as vezes não… só quando tinha vontade. Uma das kombis ela não se contentou em apenas chutar, ateou fogo. E se o leitor pensa que ela era valente somente com quem não tinha poder de policia, enganou-se. Policiais civis e militares também tinham que agüentar seu destempero físico e verbal e não raro as escassas e mal conservadas viaturas alocadas pelo Estado sofriam também avarias, com socos, bicudas e pedradas. As autoridades de Santa Rita preferiam mil vezes domar o Chiquinho da Borda. O sempre sisudo e inatingível homem da capa preta muitas vezes teve seus ouvidos feridos com suas ofensas indevidas. No prédio do promotor de justiça, o qual zelava pela integridade da pequena e indefesa cidadã, Amelinha, muitas vezes irrompia sozinha ou com sua mãe correndo atrás tentando segura-la, empurrando mesas, chutando papeis, passando por cima de atendentes e estagiarias apavoradas e invadia o gabinete do guardião do ECA, soltando fogo, cobras e lagartos pelas ventas contra policiais, enfermeiros ou conselheiros que ousaram contrariar seus desejos e direitos de adolescente.

Quando queria falar com o bom moço, nem cerca de arame eletrificado a segurava e claro, não precisava de agenda. Por isso naquela madrugada gelada de rebarba de festa de Santa Rita, depois de ser expulsa pelos cabelos da delegacia, ela invadiu o prédio do promotor e quebrou suas janelas para reclamar com ele… mesmo sabendo que àquela hora seu protetor deveria estar debaixo de sete palmos de cobertor.

Aquela costumeira – e saudosa – reunião de café da manha na cozinha da Delegacia de Policia, saboreando pão e leite da Vaca Mecânica da prefeitura de Santa Rita com café puro da Fazenda Nosso Paraizzo, foi mais prolongada que a habitual. Ali meu padrinho Jose Benicio contou-nos, entre outras façanhas, o baile que Amelinha dera no companheiro Kleber Brunhara. Ele fora designado meses antes para escoltar Amelinha e entrega-la num hospital psiquiátrico da Avenida Carandaí, na capital mineira. Todo polido – como convém a um policial – o jovem detetive estendeu o oficio de apresentação da adolescente à recepcionista do ‘nosomanicomio’ e quando virou-se para apresentá-la ela não estava mais lá. A garotinha rebelde ficara menos de vinte segundos fora do seu raio de visão e foram suficientes para ela sumir de vez de sua vista e dobrar a serra do cajuru – ou seria do curral? Ou de Itaguara? – na capital mineira. Um dos colegas concluiu a narrativa do Benicio dizendo; “Amelinha chegou à Santa Rita primeiro que o Kleber”. Exagero talvez, mas o que dissera o outro colega sobre ‘saudade’ estava coberto de razão. Quinze dias depois Amelinha veio fazer-me outra visita. Chegou na virada da noite, conduzida pela PM e antes mesmo de redigido o B.O. de quebradeira e perturbação do sossego, a kombi azul do Conselho Tutelar chegou com duas conselheiras para conduzir a menina-problema para o aconchego do seu lar. Esperei pacientemente os policiais redigirem…

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A verdadeira historia do “Beco do Crime”

Nos dias atuais, se fossemos dar nome a cada rua onde ocorreu um crime violento, de repercussão social, certamente sobrariam poucas ruas na cidade para homenagear feitos e figuras relevantes da nossa terra. A média de homicídio em Pouso Alegre estacionou já há algum tempo perto dos 15 ao ano. Mas já tivemos anos mais violentos. O século XXI na verdade começou assustador. Em 2001, entre latrocínios, suicídios e homicídios, começando com roubo de taxista, passando por acertos de contas entre bandidos no velho Aterrado e desacerto por causa de drogas e liderança no velho hotel da Silvestre Ferraz, 29 pessoas voltaram mais cedo para os braços do Criador … Ou pelos menos para o limbo cavernoso do Umbral.

Um crime, no entanto deu nome, ou pelos menos apelido a uma pequena via e a tornou referencia para quem busca se localizar no centro da cidade. “O Beco do Crime”. No velho Aterrado, onde acontece atualmente metade dos homicídios da cidade, certamente ninguém se lembra da esquina da cerca de taquara e da poça de lama onde os irmãos Reanir de Lima mataram o policial Marcos Alves da Silva em novembro de 1983, usando a própria arma do policial que os perseguia. Poucos também se lembrarão do boteco na porta do qual, no mesmo bairro, três jovens meliantes – Flavio Cagão, André Cabinho e Elton Mateus se mataram por motivos passionais e vingança há seis anos e tiveram seus corpos vilipendiados pelos parentes de Elton. O assassinato traiçoeiro e brutal do detetive Marcos Paixão há sete anos, chocou a cidade e comoveu a classe policial, porém, pouca gente sabe onde o funesto crime aconteceu. No dia 13 de novembro de 2003, ao meio dia, três guampudos de 16, 17 e 18 anos assaltaram a Lotérica da Garcia Coutinho e vazaram calma e sorrateiramente à pé pela Bom Jesus. Paixão voltava para casa pela Adolfo Olinto, alheio ao crime, quando viu pelo retrovisor do seu carro, um guampudo ajeitando um revolver na cintura. Ele rapidamente encostou o carro ao meio fio e ao tentar fazer a abordagem foi alvejado na nuca, sem dó e sem piedade, por outro meliante que já estava do outro lado da rua. Antes do final do dia os três latrocidas estavam atrás das grades. No dia seguinte sepultamos o colega, um dos mais intrépidos e atuantes detetives que Pouso Alegre já conheceu. E o fato aconteceu ali, na esquina do beco do crime, que recebera tal batismo meio século antes, num momento completamente diferente da nossa historia. Numa época em que matar era proibido por lei e por princípios. Numa época em que tirar a vida de alguém ainda não era um ato corriqueiro e banal.

Da torre da Catedral Metropolitana ou da janela do Colégio Santa Doroteia, os únicos prédios da época com mais de dois andares, podia-se avistar todos os limites da cidade. Depois do sobrado amarelo com a figura do belíssimo cavalo alazão na parede do alpendre do Sr. Argentino de Paula, na esquina da Com. Jose Garcia com Alfredo Custodio de Paula, o que sobrava era apenas uma arremedo de cidade. Logo ao lado estava o Estádio da Lema desde 1928, em seguida o hospital Samuel Libanio desde 1921, a vila São Vicente de Paula com suas humildes casinhas amarelas e a sorveteria do Gerôncio em frente o cemitério municipal na desmilinguida Taipas. A partir dali apenas estradinhas vermelhas seguiam para o Fátima, o Faisqueira, para a fazenda do Policarpo Campos e para o Cascalho. Desde as costas do ‘sobrado amarelo’ até o Esplanada e da esquina do Pinto Cobra até a Perimetral, tudo era fazenda de gado leiteiro.

Além da fabrica de macarrão do Orlando Chiarini em frente o Estádio da Lema, uma fabrica de manteiga e outra de banha suína somavam suas parcas riquezas à agropecuária, principal atividade econômica do município. Senador Jose Bento já pusera Pouso Alegre no mapa do Estado e do Brasil, mas o progresso econômico somente chegaria duas décadas depois com Simão Pedro Toledo.

Olhando da direita da novíssima e majestosa Catedral inaugurada três anos antes, era perceptível que o 8º Regimento de Artilharia Montada, instalado lá longe, perto do Jardim Yara em 1918, fizera a cidade caminhar mais naquela direção, passando pelo Colégio São Jose que já era um respeitável cinquentão. A “Vendinha” era uma pequena vila com pouco mais de 1.500 moradores – hoje virou bairro São João e tem quase 30 mil habitantes – o jardim Noronha era bairro novo e a Rua David Campista, famosa “Zona Boemia”, há um quarteirão do Santuário, já era um antro de boemia e perdição.

O bairro São Geraldo ainda não recebera este batismo. Era chamado pelo apelido que o originou: “Aterrado” e podia ser visto num relance só, pois tinha apenas a disforme Avenida Vereador Antonio Costa Rios, ora larga, ora estreita. As centenas de ruas e vielas que o tornaria o mais violento bairro distribuidor de drogas da região, abrigava ainda capituvas, pastagens, sangra-dáguas e mata típica de vargem ribeirinha. Depois da curva do Japonês eram só fazendas de gado.

A principal diversão dos jovens de todas as idades consistia em passear no Parque Municipal, na Praça João Pinheiro, onde se instalara há dois anos o Conservatório Estadual de Musica. Os homens menos refinados e mais arrojados se divertiam nadando nos poços do Lava-cavalos atrás do Vasquinho e no límpido e piscoso Rio Mandu, que corria bem mais perto do centro, onde se estende hoje a Avenida Perimetral. Na época das enchentes ficava ainda mais divertido pular de cima da ponte… – alguns anos mais tarde eu também pularia ali. Mas tinha também o Clube literário tal qual é hoje, o Cine Gloria do outro lado da praça e na Dr.Lisboa o imponente Teatro Municipal que serviu de delegacia de Policia. O mercado municipal com outra roupagem e muito mais modesto, mas não menos dinâmico e importante para a economia do município, já estava ali atrás da igreja, cercado de charretes, bagageiras e carros de bois. A principal fonte de energia das cozinhas das donas de casa; a lenha, era distribuída na cidade pelo Zé Fidelis no Jardim Yara e João Brunhara, na Santos Dumont, no quarteirão de cima do Beco do Crime.

Apesar de pequenina, Pouso Alegre já produzira muitos homens públicos que levaram seu nome além das fronteiras do município e do Estado. Mas tinha pouco mais de meia dúzia de médicos; Dr. Alaor Cobra, Dr. Gabriel, Dr. Lisboa, Dr. Omar Barbosa Lima, Dr. Vitor Romeiro, Dr. Jesus Pires… e meia dúzia de advogados, entre eles um que ganharia projeção justamente por defender o assassino do Beco do Crime; Rômulo Coelho. Alexandre Araújo ainda trabalharia mais vinte e poucos anos no DNER antes de se aposentar, mas já começava colecionar fatos, fotos e objetos que iriam contar nossa historia no riquíssimo Museu Tuany Toledo que ele próprio fundaria mais tarde.  Juscelino Kubitschek de Oliveira e os ‘candangos’ já se preparavam para rasgar o cerrado do planalto para construir Brasília, mas quem mandava no país ainda era o Sr. Nereu Ramos. O cinquentão Palácio da Liberdade era ocupado por Clovis Salgado da Gama e cá nas terras banhadas pelo piscoso e manso Mandu quem dava as cartas era o bondoso medico Custodio Ribeiro de Miranda. Embora nascido em Congonhal, nosso mais ilustre cidadão na época era o jovem Milton Reis, que aos 26 anos representava Pouso Alegre na Assembléia Legislativa do Estado.

Crimes? Ah, já existiam. Tirando os mais moderninhos, os da internet e os de ‘colarinho branco’ – Brasília ainda estava no papel – quase todos os demais imaginados pelo homo sapiens já grassavam nas terras manduanas. A diferença de hoje ficava na estatística. Passava-se meses, anos e até décadas entre um crime e outro. O velho Hotel da Silvestre Ferraz já existia e era quase cinquentão. Conhecia de tudo, menos superlotação. Nem precisava de muro externo. Seus hospedes podiam passar o dia todo tomando sol, pendurados nas janelas, conversando com as pessoas que passavam na rua. È claro que os transeuntes não se aproximavam muito, pois todo preso naquela época era bandido perigoso, marginal, pária social, perverso e assustador. – O que mudou? – Quem se aproximasse e mantivesse contato com eles poderia se confundido com comparsa de seus hediondos crimes e seria discriminado pela sociedade. Chegar até a janela da cadeia para entregar um maço de Parquer ou Continental sem filtro ou mesmo um cigarrinho de palha recheado com carapiá e uma caixa de fósforos Ipiranga, era um ato de bravura que o transeunte fazia por medo… medo de não atender o pedido do preso e ser ‘marcado’ por ele. O bom mesmo era evitar passar pela Monsenhor Mendonça.

Era época em que os casais namoravam na sala – os mais íntimos iam para a cozinha tomar café quente e cheiroso com broa – sempre na presença dos pais da mocinha virgem, cada um numa ponta do sofá ou da mesa. Se o namoro fosse proibido, o mocinho esperava na esquina da rua de baixo ou na encruzilhada da estrada. Se a mocinha tivesse irmão e fossem amigos tudo era mais fácil. Mas se não se bicassem, o rapaz tinha que primeiro ‘domar’ o futuro cunhado para depois chegar ao pai da moça. Se o homem passasse dos vinte sem casar é porque tinha alguma doença… esterilidade talvez e já deixava de ser um bom partido. A menina se passasse dos 17, ou ia para o convento ou ficava para titia. A pequena frota de automóveis do município tinha apenas quatro carros de ‘praça’ e o único “motor” que rodava na cidade, nos fins de semana, era a Harley Davidson do Sr. Valdemar Moura. Pouso alegre era uma respeitável senhora de 107 anos com cerca de 30 mil alegres e pacatos filhos biológicos ou adotivos que atendia pelo charmoso e honroso epíteto de “Princesa do Sul”. Eu? Era ainda um mero sonho do jovem casal Eva/Daniel Ferreira de Matos. Era o ano da graça de N.S.Jesus Cristo de 1955.

A melhor vista panorâmica da cidade ficava justamente num local – que ironia!!! – onde os moradores já não podiam mais abrir os olhos; o antigo cemitério municipal no Alto das Cruzes. Sentado no seu portão podia-se contemplar o verdadeiro mar em que se transformava o bairro do Aterrado de dezembro a março, na época das chuvas. Atravessando a rua Carijós, da janela da casa do meu tio Joaquim Paula, podia-se ver o trem de ferro surgir lento e manhoso no bairro Belo Horizonte, sobre o rio Sapucaí e segui-lo com os olhos até que ele parasse, vinte minutos depois, fungando que nem cavalo velho e soltando canudos de fumaça branca pelas ventas da Maria Fumaça na estação da Avenida Brasil.

Foi ali mesmo, no Alto das Cruzes, no ‘triangulo geográfico’ formado pelas ruas São Pedro e Tupinambás – a Tupinambás sobe pela direita, passa por trás do Palácio da Carijós, antigo cemitério, depois Cemig e desce do outro lado até a João Vaz de Lima – que nasceu o mais famoso ‘triangulo amoroso’ de que se tem noticia em Pouso Alegre. Ou pelo menos o mais trágico. Na base do vértice morava a jovem donzela Jacira, pouco mais que uma menina, apenas 13 anos de pureza, beleza e sonhos. Na subida da Tupinambás o intrépido jovem Jesus Damasceno.

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