Os fantasmas do Velho Hotel da Silvestre Ferraz – Parte IV

 

Um Fantasma de 100 mil reais!

Início de uma madrugada de inverno de 2007. Nos sombrios e assustadores corredores do Velho Hotel reinava o silencio. Apenas o cheiro adocicado de maconha circulava por ali. Nalgumas celas ainda se podia ver a luz verde azulada de uma ou outra tevê, e ouvir o som abafado de um radinho. De repente uma figura soturna surgiu no corredor principal do prédio. Para chegar ao corredor a figura havia passado por quatro portões – dois do lado externo e dois já no prédio – todos trancados com grossos cadeados. O ‘fantasma’ daquela noite caminhou até a porta do X3, colocou a chave no cadeado Papaiz, abriu, levantou o trinco na fenda da parede longe do acesso dos presos, puxou o trinco para trás e abriu a pesada porta de ferro. Ao lado da porta, a pretexto de fumar um cigarro, a hóspede esperava sentada, tensa, com mochila básica aos seus pés. Levantou-se muda, pegou a mochila e saiu fumando, como se estivesse indo fumar lá fora. Numa rua lateral a poucos metros do velho hotel, um carro tão sombrio quanto o fantasma esperava por ela. A ‘ausência’ da traficante foi percebida no dia seguinte, na saída para o banho de sol.

Quem seria o fantasma que soltou a traficante?

Como ele conseguiu abrir quatro cadeados para soltá-la?

Por que teria feito isso?

Onde estava o policial que deveria estar na sala da carceragem?

A única resposta que circulou nos dias seguintes, e depois nas sindicâncias, foi o cachê… O ‘fantasma’ silencioso daquela madrugada teria recebido R$ 100 mil reais para soltar a detenta sem a necessidade de alvará!

A sindicância instaurada pelo delegado corregedor não conseguiu identificar o fantasma. As outras doze hospedes do X3, que não fizeram check-out naquela madrugada, poderiam ter esclarecido o mistério do fantasma silencioso, caso quisessem. Mas era conveniente ‘não querer’! Por isso alegaram que estavam nos braços de Morfeu e não viram nada. Algumas disseram que ouviram o barulho do ferrolho no movimento clássico de abrir e fechar a cela, mas não deram importância.

– Achei que fosse um alvará do Homem da Capa Preta! – disse uma das hóspedes. Além do mais o corredor estava na penumbra… E o fantasma talvez usasse capuz.

Vários policiais, especialmente os que estavam de plantão naquela noite foram investigados. Porém, o fantasma que abriu cadeados e portões e soltou a traficante não apareceu! Se tivesse sido identificado, o ‘fantasma’ seria processado por corrupção e poderia ir para a rua. Por falta de provas o crime ficou sem solução… E a única que foi pra a rua foi a traficante, sem necessidade de Alvará… Mas com cem mil reais a menos na conta… E o ‘fantasma’ da madrugada com cem mil reais na algibeira!

O “Conto do Vigário” veio do espaço

A coroa apaixonada pagou 30 mil euros para o astronauta voltar do espaço para se casar com ela!

Contos do vigário Brasil afora é o que mais tem… e vigaristas também! Só em Brasília existe muito mais de cem!

Mas se você pensa que o famoso ‘conto do vigário’ tem patente brasileira, você está viajando… no espaço!

O conto do vigário, em suas diversas modalidades, tem raízes fincadas em todos os cantos da terra.

Tem conto do vigário até do outro lado do mundo, mais precisamente no Japão!

Tem conto do vigário até no espaço!!!

Outro dia uma discreta – e solitária – senhora japonesa, abriu uma conta no Tinder, a fim de buscar um príncipe encantado! E conseguiu! Mais do que isso. Conseguiu um príncipe que vive no espaço! Sim, o moço de 44 anos estava morando numa estação espacial internacional!

Conversa vai, conversa vem, mesmo à distância – e que distância! o astronauta, que dizia ser russo, se apaixonou pela diva japonesa de 65 anos. Entre uma jura de amor quase intergaláctica e outra, o príncipe jurou de pés juntos que tão logo retornasse à terra, iria direto para o Japão para se casar com ela.

E ela acreditoooooooouuu!!!

E disse mais: “Se eu conseguir pagar os custos do retorno à terra antes do previsto, posso voltar a qualquer momento para me casar com você”!

O namoro espacial começou em junho – que coincidência! mês dos namorados!

O inverno chegou, julho passou, e o sr. Tinder continuou aquecendo os dois corações apaixonados.

Até que o astronauta jogou a isca no espaço:

– “Quero começar minha vida no Japão. Dizer isso mil vezes não será suficiente, mas continuarei dizendo. ‘Eu te amo’.” “Se eu conseguisse o dinheiro para pagar os custos do retorno do foguete e as taxas de aterragem, eu voltaria para a terra agora mesmo, para me jogar nos seus braços”!

A apaixonada japonesa mordeu a isca… Mandou seus ienes para o espaço. Duplamente para o espaço!

Entre os dias 19 de agosto e 05 de setembro, foram cinco transferências interplanetárias totalizando trinta mil Euros, cerca de R$ 150.000 reais!

Como sempre acontece nestes casos, fome de amor… por dimdim, nunca é saciada! Tão logo o dimdim da coroa voou para o espaço, quero dizer, para sua conta, o astronauta… ‘aumentou’ seu amor por ela! Pediu mais dinheiro!

– “Antes de voltar para a terra, tenho que quitar outras despesas pendentes aqui no espaço”, disse o astronauta se derretendo de paixão na tela do Tinder!

Só então a japonesa parou de raciocinar com o coração. Finalmente a ficha caiu!

Depois que a solteirona, cujo nome não foi revelado, levou o caso aos homens da lei em outubro passado, o “conto do vigário espacial” cruzou todo o espaço da terra – pelo menos do Japão à Londres.

Os Keikan japoneses prometeram que tão logo o astronauta russo desembarque no Japão, ele sentirá o frio das pulseiras de prata e irá se hospedar no Hotel do Juquinha!

O matador sempre morre no fim!

     Dívidas quitadas com a justiça… não quitam dividas pessoais!

A vedete da imprensa sul mineira neste começo de semana atendia – até a manhã de domingo – pelo epiteto de Pedrinho Matador! O notório assassino que começou a carreira ainda na adolescência, desfilou em todos os sites e telejornais da região nesta segunda-feira.

Pedro Rodrigues Filho nasceu em Santa Rita do Sapucaí em 1954. Doze anos depois mudou-se para Alfenas, onde teria cometido seus primeiros homicídios: segundo a lenda, criada pelo próprio, ele teria matado o vice-prefeito local por vingança pela demissão do seu pai do cargo de vigia de uma escola, sob a acusação de furto. Dias depois teria matado o verdadeiro ladrão da escola. Para não cair nas malhas da lei, Pedrinho dobrou a serra do cajuru e foi morar com os parentes em Mogi das Cruzes. Ali, ainda adolescente, iniciou a carreira de traficante de drogas.

Foi nos porões dessa perigosa atividade que ele deu asas à sua sanha assassina. Começou eliminando concorrentes do comercio de drogas. Aos 17 anos matou o próprio pai durante uma visita na cadeia. O pai havia sido preso depois de desferir vinte e dois golpes de facão na esposa, mãe de Pedrinho. Mais tarde, durante uma das entrevistas que deu à imprensa, Pedrinho disse que arrancou o coração do pai e mastigou um pedaço! Tomou gosto pela coisa e não demorou muito passou a matar por prazer, como ele mesmo fez questão de tatuar na própria pele!

Preso pela primeira vez ao completar 18 anos, Pedrinho viveu alguns anos brincando de furar tatus e balançar na “teresa” para fugir das cadeias. Com a segurança dos hotéis do contribuinte reforçada, Pedrinho finalmente criou raízes atrás das grades. Foi lá que ele cometeu, segundo o próprio gostava de gargantear, mais de 40 assassinatos de companheiros de cela.

Em entrevistas para grandes reportagens policiais que visam traçar o perfil social de notórios psicopatas matadores, o próprio Pedrinho se vangloriava de ter matado mais de 100 pessoas. Bravata compreensível, pois, uma vez que soma penas que garantem no mínimo 30 anos atras da grades e, sabendo que a lei não permite que fique mais de 30 anos preso, dizer que matou 10, 20, 40 ou 310 não muda nada. Mas poderia torná-lo mais famoso, poderia afagar-lhe o ego! Só não afaga – e não afagou e nem apagou – um velho estigma!

“Egressos de longas prisões não sobrevivem muito tempo em liberdade”.

É o caso dos notórios Cabo Bruno, do “Bandido da Luz Vermelha”, do Cirilo Bola Sete!

No caso de Pedrinho, até que ele foi longe! Conseguiu viver mais de quatro anos sem ver o sol nascer quadrado. Pedrinho matador foi executado no meio da manhã deste domingo, 05, com vários tiros de pistola, na porta da casa de uma prima que costumava visitar em Mogi das Cruzes nos finais de semana. Os vingadores que há tempos andavam na sua sombra, para terem certeza de que o matador não mataria mais ninguém, cortaram também sua garganta. A prima e uma criança que estavam com ele tiveram tempo de se recolher à residência e não foram feridas. Típica execução! O jargão bíblico nunca sai de cena: “Quem com ferro fere…”.

 

      Bandido da Luz Vermelha

João Acacio Pereira da Costa, nascido em Joinville no ano de 1942 tornou-se nacionalmente notório com o epíteto de Bandido da Luz Vermelha. Quatro assassinatos, 7 tentativas, 77 roubos à mão armada na capital paulista e cerca de 100 estupros – estes não comprovados – lhe renderam 351 anos de hospedagem gratuita no Hotel do Juquinha.

Em agosto de 1997, depois de mais de 30 anos comendo bandecos pagos pelo contribuinte paulista, João Acácio Luz Vermelha passou a desfilar livre, leve e solto pelas ruas e praias de Joinville. Cento e quarenta dias depois, após envolver-se numa treta, sentiu o gosto amargo do próprio veneno. O Bandido da Luz Vermelha apagou no dia 05 de janeiro de 1998. Tinha 56 anos.

 

Cabo Bruno   

Quando entrou para a policia militar paulista, Florisvaldo de Oliveira, nascido em novembro de 58 em Catanduvas-SP, já levava o apelido de infância… “Bruno”, por conta da semelhança com um notório ‘pé de cana’ com esse nome que perambulava pela cidade.

A graduação à cabo lhe rendeu o notório apelido de Cabo Bruno. Mas teria ficado nisso, não fosse seu dinamismo policial e sua sanha de justiça… Mesmo que fosse com à margem da lei!

Acusado de ter executado mais de 50 bandidos durante suas operações policiais com cara de legalidade e outras nem tanto, Cabo Bruno ganhou as páginas policiais da imprensa paulista e nacional no inicio dos anos 80. A fama de justiceiro lhe rendeu 118 anos de prisão.

Atras das grades se tornou pastor evangélico e se casou com uma funcionária do presidio. Vinte e sete anos depois, em agosto de 2012, o homem da capa preta de Taubaté lhe devolveu a liberdade.

No final da noite do dia 26 de setembro, ao chegar de um culto em Aparecida, de terninho e gravata e bíblia debaixo do braço como convém a um bom cristão, dois lombrosianos esperavam por ele. Foram dezoito tiros. Nenhuma das pessoas que estavam com ele foram atingidas. Vinte e sete anos depois Cabo Bruno já havia esquecido suas vitimas… mas os parentes delas não o havia esquecido.

Depois de 27 anos atras das grades, Cabo Bruno desfrutou apenas 34 dias de liberdade! Tinha 53 anos.

 

E o Cirilo Bola Sete?

O Cirilo não passou tanto tempo vendo o sol nascer quadrado. Ele não foi personagem de filmes e seriados. O máximo do estrelato que ele conseguiu foi protagonizar uma das crônicas do livro “Meninos que vi crescer”. Apesar das aventuras criminosas em Pouso Alegre, Jacutinga, Vale do Paraíba, ‘Rocinha’ no Rio de Janeiro onde esteve mocosado por uns tempos, perto de Cabo Bruno, Luz Vermelha ou Pedrinho Matador, Cirilo é um anjinho!

O Triste fim de Margarida Leite!

Durante mais de ano ela visitou seu algoz na cadeia!

Antes de voltar à liberdade, Faissal recebia Margarida na velha delegacia.

Toda quarta-feira ela estava lá. Era uma das primeiras a chegar para a visita no Velho Hotel da Silvestre Ferraz. Vinha na charrete do Chico Pé de Pano. Duas horas depois o mesmo charreteiro voltava para buscá-la. Eventualmente ficava esperando por ela. Eventualmente também, depois da visita, ela descia a Herculano Cobra ou a Com. José Garcia para fazer pequenas compras e depois pegava a mesma charrete atrás do mercado para voltar pra casa.

 

Era uma bela e discreta mulher. Alta, clara, cabelos longos ondulados. Vestia com sobriedade. Usava sempre vestidos longos claros com discretas estampas coloridas. Apesar da discrição, orelhas, pescoço, mãos ostentavam brilhantes joias, rejuvenescendo sua sexagenária pele e denotando seu status financeiro. Sua figura poderia ser confundida com a mulher do prefeito ou até do deputado…  Passava dos 60 anos, mas não deixava de atrair olhares cobiçosos e até… libidinosos!

 

“Quem será que ela vai visitar”? pensava quem a via pela primeira vez na fila de triagem na entrada da cadeia. Seria algum irmão! Um filho? Um neto?

 

Fosse quem fosse, ela devia amá-lo muito para sujeitar-se à humilhação de visitá-lo toda semana na cadeia. Que crime teria cometido o ingrato salafrário para levar tão distinta figura à aquele antro de perdidos!

 

Estelionatos!

 

Mohamed Faissal era alto, forte, moreno, bem moreno, quase mulato… resultado típico da miscigenação de raças que compõe o povo brasileiro. Não se sabe quantos anos havia sentado no banco da escola, se tinha algum diploma… Mas tinha muita cultura, muito conhecimento e usava seus conhecimentos, inclusive jurídicos, para convencer as pessoas a atender seus interesses… mesmo que fossem ilegais!

Foi assim que com menos de trinta anos Faissal foi parar no velho Hotel da Silvestre Ferraz, no final dos anos 70.

 

A visita era coletiva, dentro das celas. Em dias de visitas os presos limpavam o ‘apartamento’, empilhavam os pertences, otimizavam o espaço, tomavam banho e se enchiam de expectativa para receber seus entes queridos. Uma visita por vez para cada preso.

 

Além da sua respeitável, sedutora e perfumada presença, Margarida levava também mimos tais como chocolates, bolachas, cigarros e, claro… ‘dim-dim’ para o seu amado!

 

Não demorou muito, Faissal, com sua lábia peculiar, conquistou a liberdade intramuros. Foi ‘promovido’ a ‘cela livre’! Desde então passou a receber sua distinta visita semanal numa sala separada da carceragem.

 

Alguns meses depois o bonitão moreno, educado e articulado, ganhou mais uma ‘promoção’… Virou faxineiro na delegacia! Sua sessentona e bela visita passou a ser recebida ali. Ficavam um longo tempo sentadinhos num banco deserto lá num fundo da delegacia. As vezes Margarida chegava mais cedo… e ficava no hall conversando com o Inspetor Angelo, seu amigo de longa data.

 

Algum tempo depois Faissal chegou ao terceiro estágio da liberdade… Ganhou a liberdade condicional! E voltou definitivamente, sem amarras, para os braços de Margarida.

 

Durante décadas a Rua David Campista, foi uma das ruas mais alegres e movimentadas de Pouso Alegre. O movimento, no entanto, era noturno. Começava ao pé da noite e varava a madrugada. Desde às sete da noite desfilavam por ali viajantes, aventureiros, homens mal-casados, jovens solteiros, adolescentes muitas vezes levados pelos próprios pais para provar a masculinidade, todos em busca de sexo! Ao longo de três quarteirões as casas, a maioria simples, com suas luzes vermelhas, convidavam a clientela. A atração principal da casa – loiras, ruivas, morenas, jovens, outras nem tanto – muitas vezes exibiam seus dotes no portão, tentando atrair os sedentos de amor!

A Rua David Campista, na região central da cidade, era conhecida pelo sugestivo e romântico nome de … Rua da Zona!

 

Logo no início, afastada da beira da rua, ficava a boate da Margarida. Era a casa mais festiva, mais discreta, mais elitizada da Zona! A primeira que inundava a vizinhança com suas músicas apaixonadas e a ultima que fechava. Foi ali que Faissal conheceu e se enamorou de Margarida. E dos seus dotes financeiros. Tornou-se seu Gigolô!

 

Durante o tempo em que esteve hospedado no Velho Hotel da Silvestre Ferraz, Faissal reduziu muito sua despesa. Lá ele tinha cama, comida e roupa lavada por conta do contribuinte. Ao retomar a liberdade seu custo de vida subiu. Os mimos que antes recebia da sua distinta visita na cadeia já não eram suficientes. Era necessário mais… E começaram os atritos entre o casal!

 

Certa manhã, no inicio da década 80, ao chegar para trabalhar encontrei a delegacia ligeiramente agitada. O Inspetor Angelo, sempre um dos primeiros a chegar, estava apreensivo e acabrunhado. Uma amiga sua havia sido assassinada! Ângelo foi um dos detetives que acompanhou o perito ao local do crime. Mais tarde eu soube que ele ficou à distância, não passou da sala. Não teve coragem de entrar no quarto da bela e distinta senhora com quem tantas vezes conversou no hall da delegacia enquanto ela aguardava o horário de visitas. Segundo o perito, o corpo de Margarida tinha mais de uma dúzia de lesões provocadas por golpes de faca.

Faissal nunca mais foi visto na cidade!

Os fantasmas do velho hotel da Silvestre Ferraz – Parte III

        O Sorveteiro

Essa historia começa nessa esquina, em frente o sobrado do Argentino de Paula… no final de 1969.

“Quando ensaiava os primeiros passos para se afastar do soturno prédio, um dos sujeitos pendurados na grade gritou”:

– Hei picolézeiro… Tem de groselha? Dá um aí!

Ficou na dúvida se podia ou deveria se aproximar. O pouco que sabia sobre cadeia e presos, sabia que não era um lugar comum, que não eram confiáveis. Se estavam atrás das grades é porque tinham matado ou roubado! Matá-lo certamente não podiam, mas será que não iriam roubá-lo? Enquanto pensava no que fazer, um preso de outra janela, com as pernas numa calça arregaçada e o dorso desnudo, gesticulando os dois braços através das grades, gritou irritado:

– Eu quero um de framboesa! Anda logo, pirralho!

Se o pequeno vendedor de picolés já flertava com o medo de se aproximar das janelas da cadeia, neste instante sentiu pavor! E agora? Atendia aos pedidos dos presos ou saia correndo ali? Foi salvo – ou encorajado – pelo gongo! Um sujeito que passava pela rua recebeu um pedido parecido…

– Ei ‘seu Zé’… Dá um cigarro aí! – pediu outro preso, um albino, na janela ao lado.

O sujeito de meia idade, empertigado, de calça caqui e camisa social azul clara, usando chapéu de feltro, subiu no pequeno murinho que circundava o tosco prédio, aproximou da janela, sacou da algibeira da camisa um maço de Parker de filtro amarelo e distribuiu vários cigarros. Antes mesmo de ouvir os agradecimentos, ou pedido, estendeu também um ‘bing’ para acender os cigarros e esperou a devolução. O garoto criou coragem. Afinal, levava pendurada no pescoço uma caixa de isopor cheia de picolés… Para vender! Não podia escolher os clientes… Desde que pagassem! Aproveitou a ‘segurança’ do ‘seu Zé’ e se aproximou das janelas. Vendeu nove picolés de frutas, coloridos, e dois de coco-queimado. O pagamento pelos picolés demorou. Só recebeu o dinheiro quando uma voz grossa saiu de dentro de uma das celas:

– Paga logo os sorvetes! O moleque está trabalhando… Ele não está com a vida ganha igual vocês não, seus talaricos! – disse a voz autoritária. O sorveteiro nunca soube se a voz era do carcereiro ou se de algum preso que mandava nos demais!

Esse foi o primeiro contato do garoto vendedor de picolés com o velho hotel da Silvestre Ferraz. Era verão de 1969. O velho presídio construído em 1932 tinha menos de quarenta anos de vida, mas já era velho na aparência. Paredes sujas e manchadas pela água escorrida das chuvas, trincas nos beirais no alto, e gigantescas janelas sem vidraças. “Se chover de vento deve alagar tudo lá dentro”, pensou o garoto. Tinha espaço digno para trinta e dois hospedes – cerca de zero vírgula um por cento da população da cidade, que beirava na época quarenta mil habitantes. No entanto, entre condenados, provisórios e correcionais, abrigava na ocasião pouco mais de vinte presos – a superlotação só chegaria trinta anos depois com a expansão das drogas, na virada do século. Os de bom comportamento, a maioria, ficava nas três celas da esquerda, de frente para a rua, onde podiam ter contato com transeuntes que passavam ressabiados ao lado do prédio, a poucos metros das janelas, e podiam conversar, pedir cigarros e até comprar picolés dos garotos que passavam por ali, como o assustado menino de dez anos de idade daquela tarde.

O vendedor de picolés voltaria ao velho presidio onze anos depois, em 1980. Desta vez, e de tantas outras, como policial. Nos anos seguintes o jovem Detetive de Policia e acadêmico de Direito, iniciando a carreira paralela de jornalista e cronista policial, batizaria a velha cadeia com o nome irônico e jocoso de “Velho Hotel da Silvestre Ferraz”! A partir de então, teria muita história pra contar…

Silvio Santos foi envenenado e enterrado vivo

      Sua esposa confessou o macabro crime!

Sentada confortavelmente na sua cadeira de couro com encosto alto, com ambas as mãos apoiadas nos braços da cadeira, a promotora quase precisou segurar o queixo para que ele não caísse com o que acabara de ouvir. Diante dela, no final do expediente de terça-feira, a polêmica advogada defensora dos direitos humanos, não viera defender um cliente… viera fazer uma confissão!

– Minha filha matou meu marido! Eu a ajudei a enterrá-lo. – disse ela sem alarde, como se estivesse falado de uma receita de bolo de maracujá!

A mui digna representante do Ministério Público, afundou-se na poltrona, como se quisesse afastar da mesa, da confidente… Com os olhos bem abertos pregados na causídica, emparelhou os neurônios, fez força para manter o maxilar quieto e disparou:

– Como é que é? A Sra. pode repetir o que disse, por favor!

– Então doutora… A sra. conhece meu marido. Ele toma remédio controlado. Ele estava muito agitado. Quando eu tentei lhe dar o remédio, ele ficou agressivo e começou me agredir. Como minha filha tentou me defender ele passou a agredi-la também! Chegou a dar-lhe um golpe com uma pá. A ferramenta atingiu a perna dela. Para nos defender minha filha teve que segurá-lo pelo pescoço, tipo ‘mata-leão’.

A promotora escutava atônita.

– Foi muito tenso – continuou a advogada. Ele tentando se soltar para nos agredir, ela tentando segurá-lo pelo pescoço, até que ele finalmente ficou sem forças, caiu no chão e ficou imóvel. Nós ficamos com muito medo. Ele não se mexeu mais, foi ficando roxo, frio. Quando a gente viu… ele estava morto!

A guardiã da lei engoliu em seco, retirou as mãos dos braços da poltrona recoberta de couro, apoiou-as sobre a mesa inundada de papeis, livros e processos, e quando articulou o queixo para fazer outra pergunta, a advogada prosseguiu:

– Nós fizemos uma cova no quintal ao lado da casa e enterramos meu marido lá…

Perplexa, a promotora precisou de alguns segundos para recuperar o fôlego antes de perguntar:

– Mas… por que vocês não chamaram a polícia, não chamaram a ambulância, não pediram socorro…

– Não adiantava mais chamar o Samu… ele já estava morto! Quando minha filha viu o pai morto ali no chão, ela entrou em pânico! Ela disse que se eu chamasse a polícia ela se mataria!

Ainda sem ter certeza se acreditava ou não naquela macabra história, a promotora perguntou.

– E por que não me procurou antes?…

– Eu estava cuidando da minha filha, doutora. Ela ficou muito abalada. Primeiro eu tinha que cuidar de quem estava vivo, depois fui cuidar do morto! – Respondeu como se estivesse seguindo um rito processual.

– E onde ela está sua filha agora? Por que ela não veio com a Sra.?

– Eu a internei doutora. Minha filha está se tratando numa clínica psiquiátrica no Vale do Paraíba.

– Meu Deus!!! E quando foi que isso aconteceu, criatura! – indagou a promotora

– Foi no final do mês passado… faz uns dez dias.

– E onde está o corpo do seu marido agora?

– Está lá, doutora… enterrado numa cova rasa no quintal, perto da janela…

 

Este caso, verídico, aconteceu na histórica e pacata São Gonçalo do Sapucaí. O restante da história está no livro “Quem Matou o Suicida”.

O Sorriso de Teresa

A garota do semáforo.

Ela faz ponto no cruzamento da Santa Rosa com Antônio Carlos. Vende doces e queijos… para ganhar o pão!

Chega de manhãzinha, por volta da seis, a fim de pegar o maior fluxo de veículos das pessoas indo para o trabalho ou levar crianças pra escola. É como o “pássaro madrugador… pega as melhores minhocas”!

A cada dois minutos e meio ela tem cinquenta segundos para vender suas guloseimas. É o tempo que o sinal vermelho do cruzamento lhe dá para abordar os motoristas que param carrancudos nas quatro filas paralelas. A maioria nem abaixa o vidro escuro do carro para fazer o sinal negativo. Mesmo assim ela agradece com uma discreta deferência… e um sorriso!

Estatura mediana, negra, anca larga, obesa, ela se move lentamente entre os carros e evita ir até a terceira fila… para não ser surpreendida entre os carros e atrapalhar o trânsito quando o sinal se abrir.

E assim segue a manhã distribuindo sorrisos…

Um sorriso que encanta, que quebra o gelo!

Um sorriso que abre a carranca dos motoristas que param com seus carros fechados!

Um sorriso gratuito, que enriquece a manhã das pessoas que se dignam a olhar pra ela!

Assim é Teresa… Sorridente, respeitosa e gentil com todos que olham pra ela nas manhãzinhas no semáforo! Mesmo que não comprem nada… Que apenas olhe pra ela.

Foi assim que conheci Teresa nos primeiros dias de fevereiro do ano passado quando começou o ano letivo.

Foi assim que me acostumei com o sorriso de Teresa… Uma ilustre desconhecida vendedora de doces e queijos no semáforo!

Na volta das férias, em agosto, fui surpreendido com a gritante ausência de Teresa… e seu sorriso!

O que teria acontecido com Teresa?

Teria ganhado na Mega Sena e parado de trabalhar?

Teria mudado de ponto? De cidade?

Estaria doente?

Fiquei muito tempo sem resposta.

Na última semana de novembro, Teresa reapareceu. Voltou a iluminar o semáforo da Santa Rosa com Antônio Carlos!

Quando a vi abri a janela do carro, coloquei a cara para fora e fiz a tradicional pergunta, como se fôssemos velhos amigos:

– Você sumiu! O que aconteceu?

Teresa, com seu cestinho de doces e queijos, abriu ainda mais o costumeiro sorriso, sorriu com a boca e com os olhos, e deu a clássica resposta:

– É uma longa história!

Disse isso, mas olhou para o semáforo, se deu conta de que a luz havia acabado de ficar vermelha, notou que eu era o segundo da fila e que, portanto, ela tinha quase cinquenta segundos e começou contar sua história.

– Eu estava cuidando da minha mãe… Ela teve câncer, no útero, e acabou morrendo.

Mal abri a boca para me solidarizar, ela emendou:

– Logo depois da minha mãe, meu irmão também ficou doente… De repente ficou muito mal e descobriu que estava com câncer, no fígado… Ele bebia muito. Quando descobriu já era tarde. Acabou morrendo…

Triste por ela, deixei escapar algumas palavras de alento e … o sinal verdejou!

Antes que os carros se movessem na pista morna, Teresa se moveu para calçada fria e emendou resignada:

– É vida que segue …

Enquanto soltava o freio para me mover, pude ver seu aceno de mão e ouvir sua bênção, com o tradicional sotaque belorizontino:

– “… ‘cum’ Deus” – disse Teresa, exibindo seu melhor sorriso.

… E assim surgiu o Coisa Ruim da Borda!

“Se eu ficar rico logo, a primeira filha mulher que eu tiver darei em casamento ao capeta!”

* Os bastidores dessa investigação, a ojeriza dos bordianos ao seu personagem ‘mais ilustre’, as curiosidades, os medos que a família do Portuga passou – e eu também! Os depoimentos das pessoas que se arrepiaram com a presença do “Chiquinho” na fazenda da Ponte de Pedra… Tudo isso está no meu primeiro livro de crônicas policiais, “Meninos que vi crescer”, com o título “O mistério do Coisa ruim da Borda”!

Pouso Alegre, apesar de ter soprado quase oitenta velinhas, ainda era uma criança. Criança alegre, sorridente, viçosa, pujante… Naquele início de século já dava mostras de que cresceria e se tornaria referência no Sul de Minas e no Estado das Geraes. Criança também era a noite daquele longínquo sábado de outono quando o caminhãozinho Chevrolet preto – ignição à manivela – estacionou rente ao canteiro da Avenida Duque de Caxias, no coração da cidade. Os dois amigos desceram do caminhão, pegaram suas pequenas tralhas, atravessaram a avenida e em poucos passos entraram na “Pensão da Vovó”. Fazia pouco mais de seis meses que moravam num quartinho dos fundos da velha pensão de paredes pintadas de verde, na esquina da Duque de Caxias com Bueno Brandão, de frente para o santuário. Estavam cansados. Haviam trabalhado desde as primeiras horas da manhã transportando mudanças na cidade e arrabaldes. Era o único caminhão apropriado para esse tipo de transporte na cidade. Não tiveram dificuldades para tomar banho no banheiro coletivo da pensão naquela noite. Eram os únicos hospedes naquele final de semana.

Joaquim e “Manuel” haviam chegado ao Brasil a cerca de um ano. Os dois amigos trouxeram nas guaiacas apenas o suficiente para a subsistência de alguns meses e, quem sabe, para iniciar um pequeno negócio. Desembarcaram em Santos, mas não criaram raízes na Baixada. Subiram a serra, ficaram alguns meses em São Paulo e subiram para o Sul de Minas. Acreditavam que o grande estado mineiro tinha mais a oferecer a dois jovens aventureiros com tino comercial como eles. Por isso fixaram residência na hospitaleira Pouso Alegre, única cidade banhada pelo pequenino, piscoso e charmoso Rio Mandu.

Os negócios iam de vento em popa. Quase metade do caminhão já havia sido pago. O restante, conseguido à juros junto a um patrício, seria quitado na segunda feira seguinte. O dinheiro, guardado em um rústico saco de estopa, era levado atrás do banco do caminhão para todo lugar que iam. À noite, o saco dormia em segurança debaixo da cama, ora de um, ora de outro. Os dois amigos tinham por hábito, todo sábado, visitar as “primas” a dois quarteirões da pensão, na Rua David Campista. Naquela noite, no entanto, estavam muito cansados e sem vontade de sair para satisfazer os desejos da carne. Não foram para os braços e abraços – comprados – das ‘mademoiselles’ da Zona Boemia, mas não abriram mão da sedutora ‘Severina do Popote’. Durante o jantar solitário na saleta térrea da Pensão da Vovó, se esbaldaram no suco de gerereba, principalmente “Manuel”. Joaquim, sorrateiramente, mais observava o socio e amigo do que bebia.

Naquele domingo “Manuel” acordou tarde. Acordou com o sino do santuário chamando os fiéis para a missa das nove. Custou a abrir os olhos. E quando abriu notou que o amigo Joaquim já havia se levantado. Notou também que sua pequena cama a pouco mais de um metro da dele, estava arrumada. Sentou-se na beira da cama com a cabeça entre as mãos. Lembrou-se de Severina do Popote. ‘Moreninha’ era sua cachaça preferida… mas bebera demais na noite anterior! A cabeça latejava! Mal sabia ele que sua dor de cabeça iria aumentar muito mais. A caminho do banheiro coletivo, com a toalhinha encardida no ombro, para lavar o rosto como fazia toda manhã, “Manuel” interpelou a dona da pensão.

– Bom dia Vovó. Sabe se meu sócio foi à missa?

– Bom dia ‘seu’ “Manuel”… Não. Joaquim saiu cedinho levando uma mala. Pelo jeito ia viajar… – respondeu a simpática e obesa senhora com seus cabelos turvos amarrados em tranças acentuado seu ar de vovó.

As palavras ‘cedinho’, ‘mala’, ‘viajar’ bateram como balas de canhão na cabeça de “Manuel”. Por um instante ele ficou paralisado, com a boca aberta, o queixo caído, os olhos arregalados, como se estivesse viajando para um lugar desconhecido qualquer. Foi a voz doce da velha senhora que o trouxe de volta.

– Aconteceu alguma coisa? O sr. está se sentindo bem?

Ao despertar do breve estado letárgico “Manuel” correu de volta ao quartinho dos fundos. A resposta às perguntas da dona da pensão veio segundos depois… e veio aos berros, impropérios e maldiçoes!

– O saco com o dinheiro não está aqui! Maldito Joaquim! O salafrário roubou meu dinheiro. Aquele filho de uma égua roubou o dinheiro que suei tanto para ganhar! Ele vai arder nas chamas do inferno, ora pois, se vai! Desejo que um raio caia na sua cabeça antes que ele use o meu dinheiro… Safado, ladrão, porco, filho de mariposa, covarde. Foi pra isso que ele me fez beber tanto ontem à noite! Mas o capeta vai fazer justiça. Ele há de perder tudo rapidinho e sofrer como eu estou sofrendo agora! Maldito, maldito, maldito – dizia “Manuel” esmurrando com as duas mãos a própria cabeça.

Sem o sócio e amigo – da onça – para dividir as tarefas da ‘transportadora’ e sem o dinheiro para pagar o empréstimo que fizera para comprar o caminhão, “Manuel” teve que vende-lo. Envergonhado e desiludido com a traição do conterrâneo, ele mudou-se da Pensão da Vovó e de Pouso Alegre. Após vender o caminhão e quitar a dívida com o agiota, com a pequena quantia que sobrou, o portuga arrendou um pequeno sitio nos arredores de Borda da Mata e ali recomeçou sua vida. Desta vez sem sócios! Se o amigo e compatriota Joaquim o fez chorar de raiva, a vida, os negócios o fizeram sorrir. Estava predestinado a ganhar dinheiro com o seu trabalho. Mas tinha pressa! A vontade de ficar rico, a disposição para o trabalho e o tino para os negócios, alavancaram o seu sucesso. Em poucos anos passou de arrendatário a proprietário do sítio. E a fazenda no alto da serra da “Ponte de Pedra” foi crescendo.

Não se tem notícia de que “Manuel” tenha sido desonesto com alguém, mas era avaro e jamais jogava no lixo uma oportunidade de levar vantagem nos negócios. Certamente “Manuel” não foi o criador do “jeitinho brasileiro”, mas foi, com certeza, um dos mais ferrenhos fomentadores dessa prática, hoje pejorativa. Embora fosse religioso, frequentava a igreja católica apenas por conveniência social. Trabalhador sacudido e talhado para os negócios, qualquer deus que pudesse lhe dar alguma vantagem nos negócios, poderia ser seu Deus. E parecia não estar preocupado com as consequências desse comportamento às vezes mesquinho e materialista. Foi assim que certo dia, já casado e com família constituída, com os negócios se expandindo e a fazenda crescendo, ele proferiu uma frase que colocaria a pequenina Borda da Mata no mapa do Estado e do país.

“Se eu ficar rico logo, a primeira filha mulher que eu tiver darei em casamento ao capeta!”

As pessoas que ouviram tal blasfêmia em tom de mofa, não deram atenção à ‘promessa’. Mas o capeta ouviu… e anotou na sua agenda!

A ‘prometida’ nasceu em 1940. Treze anos depois, ao chegar à idade casadoira – comum naquela época – Mocinha começou a receber as visitas e cortejos do seu… “Príncipe das Trevas”! Era meado de janeiro quando o Coisa Ruim da Borda apareceu para cobrar a promessa do portuga!

O assédio do “Chiquinho” deixou a cidade em polvorosa e atraiu a atenção de toda imprensa nacional e até estrangeira. Durante meses, meia dúzia de padres da região e centenas de jornalistas desfilaram pela pequenina “terra do pijama” tentando desvendar o mistério do Coisa Ruim da Borda.

Em 2010 eu visitei a cidade algumas vezes. Estive no velho casarão da fazenda onde tudo aconteceu, resgatando a velha história. Durante minhas investigações, em pelo duas ocasiões, pude sentir um pouco do medo que a família do Portuga sentiu em meados do século passado.

O maior mistério, no entanto, é a rejeição que os bordianos tem da própria história. Eles não gostam nem de ouvir a menção ao coisa ruim. Se você perguntar a um bordiano alguma coisa sobre o Coisa Ruim, ele vai fazer o mesmo que o ‘espírito brincalhão’ fez há 70 anos… vai fugir de você como ‘Chiquinho’ fugiu da cruz do padre Pedro Cintra!

O Milagre da Porteira

     Vamos falar um pouquinho de Deus?

      Então falemos de milagres…

      Você conhece a expressão: “fulano escapou por um milagre”?

      E você?

      Você já ‘escapou’ por um milagre?

Passava pouco de dez horas de uma mormacenta manhã de segunda-feira quando cheguei ao pé da porteira no meio da serra. Fazia pouco mais de meia hora que eu saíra de casa pedalando minha pesada Mountain bike preta. Minha casa, lá na baixada, estava agora a quilômetros de distância. Encostei a bicicleta na porteira, me afastei uns metros, abri a braguilha, aliviei-me, peguei a garrafinha pet, sorvi generosos goles de água ainda fresca e fiquei por uns instantes contemplando o bairro distante lá embaixo.

Quando criança, dalguns pontos mais elevados do bairro eu fazia o inverso… Ficava uma eternidade olhando para aquela porteira branca, quase encravada no barranco vermelho feito à picareta e enxadão na encosta da serra. E pensava com meus olhos de criança: “Para onde será que vai aquela estrada”?

Há alguns anos eu havia descoberto que a velha, estreita, íngreme e pedregosa estradinha não ia a lugar nenhum. Na verdade, ia… Ia pouco além da porteira branca encravada no barranco vermelho. Ia a duas fazendas, a dos Alves e à dos Maximiliano.

Há muitos anos, no entanto, o êxodo rural havia expulsado as duas famílias dali. Agora a estradinha pedregosa levava a apenas um rancho e uma velha tapera onde vivia o ermitão Anselmo, para cuidar de um gado crioulo. Além da tapera, nos espigões acima, na divisa dos municípios de Congonhal, Pouso Alegre e Borda da Mata, ficavam as nascentes do Ribeirão Santo Antonio, que corta o bucólico bairro que me viu nascer.

Há anos o movimento de pessoas e de animais naquela estradinha tornou-se raro. Na verdade, ficou restrito ao ermitão Anselmo que, aos sábados, duas vezes por mês, com um embornal de lona pendurado no ombro, desce ao bairro cavalgando em pêlo sua eguinha castanha, para buscar pouco mais de que uma garrafa de suco de gerereba na vendinha. Mas deixemos a história do ermitão para outra ocasião, pois ela só, já paga outro ingresso!

Aquele lugar tão singelo, tão isolado e tão romântico das minhas lembranças pueris, tinha outro atrativo. Há cerca de cinquenta metros da porteira, o Ribeirão Santo Antonio despencava de quase cinquenta metros, formando uma linda cascata escondida entre arvores centenárias! Por um acesso bem mais fácil seguindo o curso d’água, eu já estivera ao pé da gelada cachoeira anteriormente. Dali, ao lado da porteira branca da minha infância, agora eu podia ouvir o dolente choro da cachoeira despencando em queda livre do alto da rocha.

Aproximei-me do barranco tentando ouvir melhor o triste lamento das águas límpidas batendo nas pedras duras e lisas e, quem sabe, avistar o véu branco balançando por entre os galhos das arvores.

Foi nesse momento que eu recebi… um inesperado empurrão!

Apoiei meus pés em um monte de pedregulhos quase encobertos por guanxuma, bem próximo da ribanceira, abri bem os olhos e tentei avistar a cortina d’água… Na verdade pensei fazer isso! Pois antes mesmo de inclinar ligeiramente o corpo, o corpo todo se foi! Partiu! Despencou no vazio!

Voou abismo abaixo!…

Meus pés deslizaram do monte de pedregulho como se desliza em uma poça invisível de sabão líquido na entrada da cozinha!

Tudo aconteceu como num piscar de olho…

Isso mesmo, ‘olho’!

Piscar de ‘olhos’ demoraria o dobro. Piscar apenas um demora metade do tempo!

E lá estava eu em queda livre num abismo de mais de cinquenta metros.

Não houve tempo para pensar no que havia acontecido!

No que estava acontecendo!

No que aconteceria!…

Só havia uma certeza: essa eu havia sentido nitidamente… um empurrão nas costas!

Antes mesmo do fim da queda eu já tinha uma pergunta formulada:

“Quem me empurrou”?

E antes de qualquer resposta… muito antes que eu me estatelasse nas pedras frias e disformes no pequeno poço escondido lá embaixo na mata… o milagre aconteceu!

Tão inesperado quanto o ‘empurrão’, o milagre aconteceu!… Eu estava parado, com os dois pés firmes sobre uma rocha, abraçado a uma arvore roliça e comprida cuja copa ultrapassava em muito o nível da estradinha pedregosa!

Parecia que a arvore havia sido colocada ali para conter minha queda. Parecia que a rocha havia sido colocada ali ao pé da arvore para apoiar meus pés!

Ainda abraçado à centenária arvore olhei para baixo à minha esquerda… O abismo continuava ali, traiçoeiro, silencioso, sombrio olhando de esgueio para mim! Se a arvore espigada não tivesse parado minha queda, certamente ele, o abismo, agora estaria com outra cor! E eu jamais poderia contar essa história!

Enquanto esperava minhas pernas retomarem a respiração, ainda abraçado a arvore, olhei para trás… A dois metros havia um barranco vermelho, carcomido pela erosão. Três metros acima estava a diminuta clareira por onde eu fizera o voo cego segundos antes. À minha direita, quando terminava a gigantesca rocha, começava uma pequena trilha batida, usada certamente por tatus, pacas e outros bichos que contornavam o abismo para descer em busca de água fresca. A estreita trilha em meio ao emaranhado de galhos e cipós desaguavam no pasto de capim braquiária há poucos metros dali.

Esperei alguns segundos abraçado à arvore, para ter certeza de que eu estava vivo… apalpei a bermuda para ver se não estava ‘molhada’, peguei a trilha, sai no pasto e voltei para a estradinha. Fui devagar, pois as pernas relutavam em me levar!

A estradinha pedregosa estava tão deserta quanto antes. Apenas um bem-te-vi na copa de uma arvore qualquer avisava: “eu bem te vi”!

Minha bicicleta preta continuava solenemente apoiada na velha porteira caiada de branco, à minha espera.

Parei ressabiado a uma distância segura do montinho de pedregulho, minha pista de decolagem, buscando uma explicação para o escorregão. Não encontrei. Eu havia mesmo sido empurrado! Mas por quem? e por quê?

A estradinha da minha infância, há décadas não leva quase ninguém para além da porteira, para as fazendas abandonadas. Nos últimos anos, só o ermitão passa por ali uma vez a cada quinze dias. Quando passasse por ali no sábado seguinte, ele veria minha bicicleta encostada na porteira, mas não tocaria nela. Pensaria que o dono teria entrado no mato para ‘fazer uma viagem’ e não daria importância à bicicleta. Quando voltasse da venda do bairro ao pé da noite, apesar da escuridão,  acostumado com a tênue luz da lamparina, veria a bicicleta preta encostada no coiceiro da portaria. Mas não daria importância. Não era dele. Não era da sua conta. Dali a quinze dias ele voltaria a passar pela porteira. A bicicleta preta estaria no mesmo lugar acumulando poeira. Ele comentaria o fato na vendinha do ‘Vilino’. As pessoas ligariam os fatos e … eu finalmente seria encontrado! O legista teria dificuldade para me identificar na forma da lei. A arcada dentária e os longos cabelos começando a branquear, únicos que estariam intactos, certamente ajudariam na identificação…

Me velório certamente seria bastante concorrido e comentado!

Mas nada disso aconteceu. Pois ao ser empurrado para o abismo, havia uma arvore e uma pedra gigante logo abaixo, no lugar certo, para evitar que eu chegasse ao fundo do abismo…

Sacudi a poeira, montei a bicicleta preta e segui meu caminho pedalando solitário pela serra. Passei pela tapera do ermitão, subi à direita pelo que restou de uma estradinha vermelha por onde passavam cavaleiros e carros de bois meio século antes, dobrei o espigão e desci no bairro das Almas. Conforme o roteiro traçado, passei em Congonhal e só voltei para casa no final do dia. Enquanto pedalava por trilhas e antigas estradas desertas, eu ia pensando com meus cabelos dançando ao vento…

– Quem me empurrou no abismo da cachoeira?

– Por que a arvore apareceu no meu caminho para segurar minha queda?

As respostas demoraram anos para chegar…

A resposta à primeira pergunta foi surpreendente! E foi necessário um segundo milagre para que eu compreendesse o primeiro.

Em 2001 eu entrei embaixo da principal queda d’agua da ‘Cachoeira das Quinze Quedas’ para fazer uma oração. Ao terminar minha conversa e tentar sair de entre a pedras traiçoeiras e escorregadias, ouvi uma voz me ordenando que voltasse à posição anterior e continuasse a orar! A ordem se repetiu três vezes, o que me consumiu mais de cinco minutos. Foi o tempo necessário para que o perigo – literalmente – passasse… e eu pudesse continuar contando histórias! Essa história está no livro “Quem matou o suicida” com o titulo “Milagre na cachoeira”. Mesmo assim demorou alguns anos para que eu compreendesse que havia sido salvo por um milagre!

Quando, num momento de reflexão e buscas por respostas, eu compreendi o Milagre da Cachoeira, eu me emocionei muito, me arrepiei, agradeci…

Foi nesse momento de emoção que eu compreendi o primeiro milagre, o milagre do ‘empurrão do abismo’! Foi nesse momento que o ‘autor’ do empurrão me disse:

“Fui eu que te empurrei”!

– Mas por quê?

– “Você olhava para a frente procurando ver a cachoeira por entre as arvores e não viu o perigo a um palmo dos seus pés. Você estava entre a serpente e o abismo. A picada seria fatal. Quando ela armou o bote, a única maneira de tirá-lo dali era para baixo… Por isso eu te empurrei. Mas eu te empurrei na direção segura, na direção da arvore que reteve sua queda”!

Desde aquela conversa com Ele, tenho recebido muitas respostas… até mesmo para perguntas que não fiz. Desde então tenho percebido muitos milagres à minha volta!

“O dia em que dormi com Pelé”

“Nós pulamos juntos para cabecear a bola, eu era mais alto, saltava mais. Quando pisei de volta no chão, olhei espantado para o alto e Pelé continuava lá, cabeceando a bola. Era como se ele conseguisse ficar em suspensão pelo tempo que quisesse.”

 “Tentei me convencer de que ele era de carne e osso como todo mundo. Eu estava errado.”

Assisti a todos os jogos da Seleção Canarinho na Copa de 70, na tv preto-e-branco na casa do meu vizinho, no alto da rua São João. Esse foi meu primeiro contato com o mundo magico do futebol. De cara assisti às magias do maior jogador de futebol do mundo em todos os tempos. Em 78, quando a tv, ainda preto-e-branco, entrou na minha casa, o Rei já havia pendurado as chuteiras! Que pena! Pra mim Pelé poderia ter jogado na seleção até os 50, 60 anos!

 

Consumidor inveterado de notícias de telejornais, naturalmente acompanhei pela TV o drama do Rei Pelé e sua família até a morte do seu corpo no dia 29 passado. Antes mesmo do desencarne, o qual eu sabia que seria inevitável por aqueles dias, passei a perguntar a mim mesmo qual o tamanho da homenagem que a mídia nacional e estrangeira faria ao nosso rei.

Hoje tive a resposta.

Recebi do amigo Kenith um texto da lavra de João Moreira Sales, que mostra a real dimensão do que foi Pelé, o Rei do Futebol. Trono do qual nenhum outro jogador do mundo, por mais magico ou fenomenal que seja ou tenha sido, sequer chegou perto!

O texto é longo. Se você não gosta de ler, não perca tempo começando.

Mas se você gosta de ler e entende o que lê, vale a pena usar dois ou três minutos para viajar no tempo e saborear o que o documentarista e fundador da Revista Piauí, após uma noite de insônia pensando nele, diz sobre o nosso Rei.

 

“O DIA EM QUE DORMI COM PELÉ

Numa noite de insônia, a gente se dá conta do que perdeu e ganhou com a morte do Rei

04jan2023_11h22

JOÃO MOREIRA SALLES

 

Pouco depois da meia-noite de 31 de dezembro eu já estava deitado, mas só adormeci por volta das cinco da manhã. Não foram os fogos nem os foliões do lado de fora que me mantiveram acordado. Foi Pelé. Ou, para ser mais exato, o que Pelé me fez pensar. A notícia havia chegado dois dias antes, e, do dia 29 de dezembro até a noite da virada do ano, eu, como milhões de pessoas, passaria horas tentando compreender a dimensão dessa morte, o tamanho do que vinha de desaparecer.

 

Logo ficou claro que a comoção não era só nossa, brasileira. A edição internacional do New York Times publicou um artigo tocante de José Miguel Wisnik na dobra superior da capa. O obituário ocupou toda a página dois – cinco fotografias, seis colunas, do alto ao pé da versão impressa. O francês Libération deu capa e quatro páginas, logo as quatro primeiras, em geral tomadas por assuntos políticos. No jornal esportivo L´Équipe, foram 24 páginas. Até o Financial Times, que provavelmente se interessa mais pela cadeia produtiva da bola do que pela bola, pôs Pelé na capa.

 

Um amigo, o n. 1, me escreveu o seguinte: “Eu tenho chorado de forma intermitente desde ontem. É arrebatador. Não tinha ideia de que seria assim.” A confissão veio acompanhada da capa do jornal italiano Domani, na qual se lia: “Morreu Pelé, o homem que inventou o Brasil” – “A manchete definitiva”, cravou esse amigo, “porque o Brasil que o mundo aprendeu a amar (feliz, criativo, majestoso, quente e tolerante) não existiria sem a ascensão de Pelé.” Do amigo n. 2 recebi um e-mail intitulado “A melhor capa veio da Bolívia”. Era do diário La Razón: “Murió Pelé, el fútbol se queda con 10” – um achado de difícil tradução, querendo dizer que dali em diante o futebol viveria para sempre com uma ausência em campo, não mais onze jogadores por equipe, apenas dez, o número da camisa do Rei.

 

Nenhum brasileiro jamais mereceu tratamento igual, nenhum causou tanto espanto. Por essa medida, então, Pelé foi o maior de todos os brasileiros, mas a prova dos nove, claro, está no que ele fez em campo. De certa forma, está nas imagens que sobreviveram, está nos arquivos de sua arte.

 

Eu não vi Pelé jogar. Tinha oito anos em 1970 e, por motivos que não vem ao caso explicar, não assisti aos jogos da Copa do Mundo do México, apesar de tê-los vivido intensamente. Ir atrás dessas imagens significava rever as jogadas mais clássicas de Pelé, aquelas que vivem na memória de qualquer amante do futebol, quase todas da Copa de 70, mas também, e talvez principalmente, descobrir o que ele fazia de forma rotineira nas partidas menos vistosas de sua carreira. Do amigo n. 1, dei a sorte de receber um fio de Twitter com “estatísticas desconcertantes e dois vídeos sensacionais”. Foi esse fio que vi e revi.

 

Muita gente se pergunta se Pelé conseguiria se impor no futebol de hoje, um esporte mais rápido, mais técnico e mais exigente fisicamente. Basta meia hora assistindo às suas jogadas para concluir que a pergunta não faz sentido. É exatamente o contrário. O certo seria perguntar se os grandes jogadores de hoje conseguiriam jogar tão bem nas condições de antigamente. Walter Casagrande, outro que se emocionou ao se recordar de Pelé, desmontou rapidamente a ideia de que hoje Pelé não seria Pelé. Tudo era mais precário na época em que ele jogou. As chuteiras eram pesadas, a bola deixava de ser redonda à medida que o jogo corria, a arbitragem não tinha instrumentos para coibir a violência. Cartões amarelos e vermelhos foram introduzidos apenas na Copa de 1970, e ao craque daqueles anos cabia não só a tarefa de levar o time à vitória, mas também a de sobreviver às pancadas recebidas ao longo de 90 minutos. Era jogo e era luta.

 

Isso sem falar nos campos. As imagens são impressionantes. Alguns jogos aconteciam não em gramados, tampouco em relvados nus, mas em lamaçais. Nos casos mais extremos, quase pântanos. Apesar disso, lá está Pelé, conduzindo a bola como quem passeia o seu cão bem treinado. A bola segue fielmente o pé, obedece, não foge.

Todo o repertório do futebol moderno parece estar à sua disposição, do arranque de Mbappé, ao drible curto de Messi, ao empuxe balístico e obstinado de Ronaldo Fenômeno em direção ao gol. No artigo para o NYT, Wisnik resumiu com precisão esse repertório:

Ninguém reuniu como ele as capacidades do drible e da velocidade, do chute com as duas pernas, do cabeceio preciso e fulminante, do jogo rasteiro e do jogo aéreo, do senso mágico do tempo de bola, do entendimento instantâneo do que sucedia à sua volta, tudo baseado numa constituição atlética vigorosa e rigorosamente equilibrada. Mesmo assim, o efeito-Pelé não se resume a uma soma, ainda que única, de habilidades quantificáveis. Um poeta e ensaísta observou que ele parecia arrastar o campo consigo, como uma extensão de sua pele, em direção ao gol adversário […] A beleza e a inteligência do corpo em ato, mais o olho de lince e a imprevisibilidade do pulo do gato, faziam com que Pelé parecesse funcionar numa frequência diferente da dos demais jogadores, assistindo em câmera lenta ao mesmo jogo do qual estava participando em alta velocidade, enquanto outros, em torno dele, pareciam estar, tantas vezes, assistindo ao jogo em alta velocidade e jogando em câmera lenta.

 

Pelé tinha a intuição de como o espaço se configuraria no instante seguinte, e assim construía a jogada não para a situação presente, mas para a situação futura, sabendo antes onde todos estariam dali a pouco. Além do drible, dominava também a finta, a forma mais bonita do engano, na qual a bola fica onde sempre esteve e é o corpo que sugere o movimento que não fará, levando o adversário a correr para o lado onde encontrará apenas o vazio, ninguém.

A finta é questão de espaço – sugere que o caminho é por aqui, quando na verdade será por lá. Pelé também era capaz de fazer o diabo com o tempo. Um dos seus movimentos mais típicos era abrir o compasso das pernas, deixando a bola no centro delas, enquanto os defensores, como uma matilha de lobos, se aproximavam de todos os lados, prontos para o bote. Pelé então inclina o corpo, anunciando a arrancada – que não vem. A perna de controle – que pode ser a direita ou a esquerda, pois ele tinha as duas – se aproxima da bola, mas nada faz, vibra apenas, afirma a potência sem entregar o ato. É como um respiro no tempo, uma pausa – uma pausa não, uma suspensão. Lembra a fermata musical, aquele momento em que, na tensão crescente, a orquestra interrompe a música e produz um hiato – o silêncio antes da resolução. Pelé faz isso com o jogo. Os outros 21 jogadores, talvez hipnotizados, talvez com medo de tomar a decisão errada, são forçados a parar, como se num tableau vivant. Tudo é interrompido e reorganizado segundo o desejo de Pelé. Ele faz com o tempo e o espaço o que a gente faz com um chiclete: comprime, expande, estica, aperta.

 

Rory Smith, repórter de futebol do NYT, reproduziu no jornal algumas histórias de jogadores que receberam a tarefa de enfrentar Pelé. “Nós pulamos juntos para cabecear a bola”, disse o zagueiro italiano Giacinto Facchetti, “eu era mais alto, saltava mais. Quando pisei de volta no chão, olhei espantado para o alto e Pelé continuava lá, cabeceando a bola. Era como se ele conseguisse ficar em suspensão pelo tempo que quisesse.” Tarcisio Burgnich, companheiro de Facchetti, sintetizou: “Tentei me convencer de que ele era de carne e osso como todo mundo. Eu estava errado.” O goleiro Costa Pereira cruzou o caminho de Pelé numa final entre o seu Benfica, campeão europeu, e o Santos, campeão sul-americano . “Entrei em campo esperando parar um grande homem”, contaria depois. “Deixei o campo convencido de que fui superado por alguém que não tinha nascido neste planeta como o resto de nós.”

 

Então, foi isso o que se perdeu, e a constatação dessa perda, da sua dimensão, foi o que tirou o sono na noite de ano-novo?

Não exatamente.

“E mais uma coisa”, escreveu o amigo n.3: “Deve ser [a soma de] tudo o mais que acontece neste país atrapalhado, mas o Pelé ter desaparecido me dá uma tristeza… Não pensei que fosse ficar assim. Mas fiquei.” Ao que respondeu o amigo n. 4, o último deste relato: “Não desapareceu, não, reapareceu (e apareceu) para os olhos de milhões. O fio que o João mandou” – eu circulara o tuíte mandado pelo amigo n.1 – “é impressionante.” O amigo n. 4 estava certo: a chave é esse reaparecimento de Pelé.

 

Tom Jobim dizia que o Brasil amava Garrincha, mas precisava aprender a amar Pelé. De fato, gostar de Garrincha é mais fácil. Garrincha é trágico, foi explorado em vida e morreu precocemente, bêbado e triste. Garrincha não desafia quem o admira. Foi imenso durante certo tempo, mas voltou para o nosso plano e terminou na nossa escala. Essa queda permite que seja amado com piedade, esse sentimento essencialmente hierárquico em que o piedoso olha do alto para o objeto de sua compaixão. Compadecer-se da dor de Garrincha faz bem à autoimagem. Estamos do lado de quem sofre, somos boas almas.

 

Amar Pelé foi sempre mais difícil. Pelé jamais caiu. Ao contrário, subiu, subiu e lá ficou. É uma altura que oprime. Sendo impossível não gostar do jogador, o homem se tornou o alvo. Edson Arantes do Nascimento, o inocente útil que serviu aos interesses da ditadura; a celebridade ingênua que, sem falar de política, pedia que o Brasil cuidasse das crianças nas ruas. (Na época parecia demagogia, mas, como escreveu Paulo César Vasconcelos no Globo, “o tempo passou, e os bisnetos daquelas crianças continuam nas ruas”.) Pelé era mais admirado do que amado.

Mas aí é que está. Como observou o amigo n. 4, nos dias que se seguiram à morte de Pelé, nos demos conta não do que desapareceu, mas do que nos foi presenteado. A suprema beleza do que ele fez em campo, a alegria que deriva dessa beleza, isso é nosso, nos pertence. Por causa dele, o Brasil se tornou a referência máxima do esporte mais popular do mundo. Um dos nossos dominou o jogo como nenhum outro. Uma supremacia que não se assenta em armas ou truculência, mas em brincadeira e graça.

Sempre foi esse o seu dom, e, como lembrou Wisnik no NYT, nada disso estava desconectado do Brasil: “Já se disse que um gol de Pelé, uma curva arquitetônica de Oscar Niemeyer e uma canção de Tom Jobim cantada por João Gilberto soavam então como ‘promessa de felicidade’, da parte de um exótico país marginal que parecia oferecer ao mundo a passagem leve e profunda da linguagem popular à arte moderna sem arcar com os custos da Revolução Industrial.”

 

Esses dias mostraram o que já parecia esquecido: que o Brasil é capaz disso.

 

E que a reaparição fulgurante do seu legado tenha se dado quase simultaneamente a este outro evento – a fuga, a bordo de um avião da FAB, do que o Brasil tem de pior – iluminou, com uma clareza que chega a cegar, aquilo que ainda podemos ser e aquilo que precisamos desesperadamente evitar.

 

Pelé promete, sim, essa felicidade que ainda nos cabe cumprir. Nada está dado, tudo ainda é possível. É uma constatação que acelera o pulso, que causa euforia e explica uma noite de insônia durante a qual, de olhos fechados, alguém, num quarto escuro, com festa do lado de fora, compreende que Pelé é mesmo tudo o que dizem e conclui que, se ele é daqui, se foi um dos nossos, então o Brasil jamais estará perdido”.