“Vai graxa aí, ‘dotor'”?

     Depois de conquistar a clientela… ele deu o ‘tomé’ na delegada!

Ele passava em frente a delegacia sempre no final da tarde, com sua caixinha de engraxate nas costas. As vezes assoviando… outras vezes cantarolando trechos de um dos sucessos de Leandro & Leonardo. “Liga pra mim” era sua favorita. Passava sempre do outro lado da rua, entrava nos escritórios de despachante, mas nunca entrava na delegacia. Parecia ter medo de policia. Até que um dia vendo-me na porta, atravessou a rua e disparou:

– “Vai graxa aí, ‘dotor’? Dois ‘real’. Pro senhor que é ‘dotor’ tem desconto… Um real, no capricho”!

Meus sapatos viviam brilhando. Eu não precisava de engraxate. Mas já que eu não podia me afastar da recepção, pois estava segurando plantão, concordei. Sentei-me no banco liso e lustroso de madeira diante do balcão, puxei a barra da calça até a canela e liberei meus pisantes. Alegre e bem disposto o engraxate sentou-se na ponta da caixa de madeira, triangular, e começou seu mister. Trabalhou o tempo todo cantarolando baixinho as músicas dos seus ídolos. Terminou seu trabalho, jogou mais um centavo de conversa fora e foi embora. Na semana seguinte voltou. Chegou cantando e, não me vendo na recepção, foi parar na porta do CPD onde eu trabalhava, no final do corredor.

– Não engraxei ninguém até agora ‘dotor’ Chips! Vai graxa aí? Um real pro senhor!

Passava de cinco e meia da tarde. Quem trabalhou até aquela hora trabalhou… Quem não trabalhou não trabalharia mais! Abri a portinhola, sentei-me no comprido banco de madeira defronte a sala e o engraxate novamente lustrou meus sapatos… Cantando!

A voz aguda – e até afinada – do garoto, encheu o corredor. Como engraxate era um ótimo cantor!

Sua performance musical agradou. E assim ele foi conquistando a clientela delegacia adentro! Alguns detetives mais carrancudos e até delegados sisudos se tornaram seus clientes. O Inspetor Angelo era assíduo. Sentava no comprido banco de madeira na recepção, estendia a perna, acendia seu cigarro Hollywood e jogava conversa fora enquanto o garoto encardido, porém alegre, lustrava seus pisantes.

À medida que ia conquistando a clientela, o engraxate foi perdendo o medo de polícia e desbravando o espaço no velho prédio da DP. Agora, se encontrava a porta do gabinete aberta, entrava e oferecia seu serviço.

– “Vai graxa hoje, ‘dotor’”?

Certa tarde de 1998 entrou no gabinete da Delegada Inês. Com dois centavos de prosa estava lustrando as botas da Delegada de Menores. Sempre cantarolando ou assoviando baixinho um verso qualquer das suas músicas preferidas. Ao cabo de alguns minutos de cantoria e algumas perguntas aleatórias sobre assuntos policiais, o engraxate batucou a escova na lateral da caixa sinalizando que havia terminado de prestar seu serviço. A delegada então abriu uma gaveta da sua mesa, sacou sua carteira e … Decepção! Não havia uma miséria moeda na carteira. Mas havia cédulas de 50, de 20, de dez…

– Toma Claudinei… você tem troco pra dez reais?

Não. Não tinha. Mas pegou a cédula assim mesmo. Pegou a nota nas duas extremidades, esticou, olhou na frente, olhou no verso como se estivesse verificando a autenticidade e falou:

– Vou trocar na padaria e já volto.

Sem esperar anuência dobrou a ararinha vermelha, colocou na algibeira da bermuda encardida, e saiu cantarolando como sempre com a caixinha de apetrechos nas costas. Nem eu e nem a delegada, em nenhum momento, duvidamos que ele voltaria com o troco.

E Voltou. Demorou um pouco mas voltou. Voltou dois meses depois. E voltou de táxi… no táxi do contribuinte. Mas não por causa do troco de nove reais. Voltou por causa da pedra… da pedra bege fedorenta! Voltou sujo, maltrapilho, encardido, acabrunhando, tentando esconder o rosto… fedendo a sabão e amoníaco…

Voltaria muitas outras vezes nos próximos anos… no táxi do contribuinte, portando pulseiras de prata…

 

*** Claudinei, o engraxate-cantor, é um dos cinquenta personagens do livro “Meninos que vi crescer”! Essa foto é de 2015, num dos raros momentos de remissão do crack. Nesse dia ele jurou de pés juntos que havia parado com a droga. Havia encontrado Jesus e estava procurando emprego.

Por onde andará o engraxate-cantor?

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *