Geraldo… o ‘eremita’ de Corinto

     Há anos ele dorme numa caixa de papelão sob uma marquise e passa os dias nas imediações da sua ‘casa’!

Depois de ficar ao menos sete meses com o mesmo traje, de agosto para cá, ele já trocou de roupa três vezes!

Desde o dia em que mudei para meu novo endereço no São Luis, notei sua figura silenciosa e taciturna sob a marquise do deposito da transportadora. Ele estava sentado sobre um ‘puf’ de papelão e tinha ao lado, devidamente dobrados e empilhados, um tufo comprido de mais papelão. A princípio achei que ele fosse um dos funcionários da empresa, embora usasse uma roupa diferente dos demais. Podia ser um ‘chapa’, um daqueles serviçais contratados para serviços pesados esporádicos! A impressão se reforçou à noite, quando tornei a passar por ali e ele estava sentado no mesmo puf, fumando seu cigarrinho. Pensei com meus botões:

– “Além de chapa, ele deve fazer ‘bico’ de vigia do deposito”!

Nos dias seguintes, a caminho da escola, passei a nota-lo de manhãzinha mexendo nalguns cestos de lixo, dois quarteirões abaixo na mesma rua. Voltei a confabular com meus botões:

– “Ele deve morar no porão de uma dessas casas por aqui. Deve estar colocando o lixo para fora”!

Era começo de fevereiro, dias de chuva na região da Pampulha. Durante o dia, o sujeito desaparecia. No início da noite lá estava ele solitário, pitando novamente na porta da transportadora.

O período chuvoso durou pouco. São Pedro foi econômico na região em 2022. No meio de março as chuvas já haviam saído de férias. Bom para o meu personagem, que passou a circular de novo nas imediações… e se tornou mais visível.

Com a chegada precoce da seca, meu ‘observado’ passou a desfilar discreta e lentamente diante dos meus olhos todos os dias. Foi aí que eu me dei conta: ele não trabalhava no deposito da transportadora, nem de chapa e nem de vigia. Na verdade ele ‘mora’ ali na porta. Depois de espantar os pernilongos com a fumaça do seu cigarrinho, ele arma sua cama de papelão e dorme ainda noite criança… E se levanta com o cantar do galo do ‘seu’ Jorge, na outra ponta do quarteirão. A comprida caixa de papelão que serve de cama, serve também de canastra ou cômoda para guardar seus lençóis, travesseiros e cobertores. Desfaz a cama, dobra tudo, empilha num canto da porta da transportadora e vai para a lida.

Seus movimentos começam justamente na subida da rua, onde mexe num cesto de lixo aqui, outro acolá em busca do desjejum. Mas não tarda aparece alguém,  ainda de pijama, num portão com um pão e um copo de café. Mesmo saciado ele ainda busca alguma coisa nos cestos de lixo, pois, para o vício do tabaco não existe muitas almas bondosas.

O descanso da sua árdua labuta do dia a dia acontece no mesmo trecho onde ele toma o desjejum. Senta, fuma o cigarrinho, traça uma marmita, as vezes deita-se no chão forrado de papelão e assim passa boa parte do dia descansando na sombra das frondosas mangueiras ao lado de um grande muro sem construção. Sua rotina se resume a circular por ali, quase sempre na mesma rua em que ‘mora’. Como diria meu saudoso amigo, detetive ‘Pinguim’: “sem nem um passarinho para tratar”! Vida melhor não há.

À noite os papelões viram cama…

Mas, e a higiene pessoal, a troca de roupa…

Desde que concluí que meu vizinho é um morador de rua, passei a observá-lo mais atentamente. Não foi difícil perceber que ele usa sempre o mesmo traje. Calça de brim cor de cimento queimado, camisa de pequenas listras claras, boné de uma firma qualquer, botina de cano alto na cor da calça e, invariavelmente – faça chuva ou faça sol – uma jaqueta grande, caqui, pendendo também para o cimento verde. Parece quase um uniforme. De fevereiro, quando o conheci, até meados de agosto, ele trajou sempre o mesmo ‘conjunto’!

Sociabilidade?

Zero.

Das poucas vezes que passo por ele à pé ou pedalando, estendo-lhe o tradicional bom dia belorizontino. As vezes ele responde com um grunhido rouco, desatento ou medroso. Na maioria das vezes responde com o silencio. Até o momento não o vi trocar uma palavra com ninguém!

Outro dia, sensibilizado com a performance da pobre criatura, ao voltar de uma caminhada, resolvi investigar a vida do meu vizinho e, quem sabe, interferir na vida dele. Abordei seus vizinhos mais próximos: os funcionários da transportadora em cuja porta ele ‘mora’!

– Rapais, mexe c’ele não, sô! Seu Geraldo tá bem assim. Ele num precisa de nada não – disse o gerente da firma gastando seu peculiar belorizontez.

– Segundo os vizinhos, tem uns 15 anos que ele tá aqui no bairro. Só aqui na porta do deposito tem uns 3 anos que ele dorme. Desde que eu vim trabalhar aqui ele já dormia aí! – corroborou o auxiliar do gerente.

– Ele está com a mesma roupa desde fevereiro… – tentei esticar a conversa.

– Tá? A gente já se acostumou tanto que nem repara mais…

– E banho? Eu moro no fim da rua. Tenho banheiro externo… eu poderia…

– Ih moço, seu Geraldo não liga pra banho não sô. Eu tenho chuveiro aqui no deposito, para os funcionários… Já ofereci, mas ele não quis não. Um tempo atrás eu insisti muito pra ele tomar banho. Ele saiu resmungando e ficou vários dias sem aparecer aqui… – interpelou o gerente.

– E comida…

– Comida sobra. Tem dia que ele ganha umas três marmitas na mesma hora.

– Vocês têm informação sobre a procedência dele? Saúde mental…

– Parece que ele é de Corinto (norte de Minas). Ouvi dizer que ele tem até casa lá – informou o gerente.

– Além de comida e banho, sabem se alguém tentou tirá-lo da rua?

– Tempos atras o pessoal da Assistência Social esteve aí, queriam levar ele… Ele não quis não – respondeu o secretário.

Eu imaginava que minha investigação redundaria nisso.

São mais de 40 anos esbarrando na rua em pessoas com perfil parecido. Esbarrando e observando…

Das minhas observações, posso concluir que os moradores de rua hoje, pertencem a três grupos.

A – ‘Loucos de todo gênero’.

B – Desajustado familiar.

C – Egressos do sistema prisional.

Os loucos não têm noção de higiene, de vida organizada em grupo familiar ou grupo social e nem obrigações pessoais. Essa é uma condição natural. A pessoa já nasce com esse ‘dom’! E não tem conserto… só vai mudar quando parar de respirar!

O desajustado é aquele que, embora tenha conciência, discernimento dos seus direitos e deveres, ele não se sujeita as regras e obrigações no seio da família. Prefere viver na rua, sem dar satisfação a ninguém dos seus atos. Neste perfil se enquadram também as pessoas que desacorçoaram diante das dificuldades da vida – muitas vezes chefes de família já maduros – e foram pra a rua pra fugir dos problemas.

O terceiro e mais numeroso grupo, é o dos egressos do sistema prisional. Geralmente são pessoas que começaram cedo no crime. Não aprenderam a trabalhar. Acostumados com o ócio nas cadeias, não valorizam o trabalho. Some-se a isso a discriminação social pela condição de egresso da prisão, o que é natural. Afinal, em todo país subdesenvolvido, há milhares de pessoas com ficha limpa procurando emprego. Enfraquecidos pelo vício das drogas, pouquíssimos conseguem se inserir no mercado de trabalho. Quase a sua totalidade está nos semáforos das médias e grandes cidades fazendo malabarismos e tentando sujar os para-brisas dos carros que passam em troca de uma moeda. Não raro estão cometendo pequenos delitos para sobreviver.

Com o advento do Crack – a droga mais viciante e barata do mercado – em meados dos anos 90, os egressos do sistema prisional quintuplicaram nas duas últimas duas décadas… E não dá sinais de parar por aí! Portanto, não esperem que os semáforos se esvaziem!

Mas o que essa definição de morador de rua tem a ver com o nosso pacato Geraldo do bairro São Luís?

Nada. Até onde as investigações me conduziram, o ‘ermitão urbano’ de Corinto tem um único vicio: o tabaco. E ele não incomoda ninguém… Pelo contrário. Ele não quer nenhum tipo de relacionamento com ninguém. E se afasta de fininho para não ser incomodado!

Desisti de interferir na vida do Geraldo…

Mas não desisti de pensar nele!

É quase impossível mergulhar debaixo de um lençol limpo, cheiroso, numa cama macia, espaçosa e não lembrar de Deus…

… E não lembrar de Geraldo!

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