…E assim surgiu o “Ribeirão das Mortes”

1830 00 P1040010

 Há cerca de duzentos, quando o século 19 era ainda uma menina de cabelos de trança e boneca no colo, a garbosa Santana do Sapucaí já espalhava suas tranças pelos bairros da Cata, Tanque, Matadouro e Lava-pés. A imponente cidade, uma das quatro com mais de sessenta primaveras no Sul de Minas – as outras eram Campanha, São Gonçalo do Sapucaí e Camanducaia – se equilibrando no centro do morro, já contava cerca de três mil habitantes! Pouso Alegre, muito mais favorecida pela topografia, pela hidrografia e outros atributos naturais, ainda engatinhava… A capela de Bom Jesus do Matosinhos já estava onde está hoje, cercada por dois piscosos ribeirões! À direita o ribeirão que descia do bairro Primavera e corria serpenteando pela atual Avenida São Francisco e Ruas Cel. Ribeirão de Abreu, Bom Jesus, São João e João Basilio; e a esquerda o ribeirão que nascia no bairro da saúde, ao pé do bairro Santo Antonio e descia pela hoje Avenida João Beraldo até desaguar nos fundos da fazenda do Chiquinho de Freitas. Se o padre tivesse que sair da pequena capela para fazer um batizado às margens do velho Mandu, teria de ir no lombo de um cavalo baio bem arreado e forrado com vistoso e macio pelego ou numa charrete puxada por uma eguinha pampa, pois da Praça Senador Jose Bento às margens do piscoso rio era ‘uma viagem’…

OLYMPUS DIGITAL CAMERA

Da emergente Pouso Alegre de pés descalços à impoluta Santana do Sapucaí, em lombos de burros ou carros de bois, era viagem para quase uma semana… Dependendo da época do ano! Foi justamente este detalhe “época do ano” que estreitou a historia entre a ‘metropole’ Santana e a vila de Bom Jesus do Matozinhos! Do outono ao inicio da primavera, a viagem de cerca de trinta e cinco quilômetros poderia ser feita em apenas um dia… De setembro, quando começavam as chuvas, até o final da enchente das goiabas, em março, a mesma viagem em lombos de burros ou carros de boi podia demorar até uma semana!

A menina Pouso Alegre, embora já desse ares de que se tornaria em breve uma linda donzela e mais tarde  uma sedutora coroa ricaça – cobiçada por tantos que querem administrar seus dotes! – ainda dependia de Santana em vários aspectos, inclusive dos santos! Mais propriamente da ‘imagem’ do santo, o qual já havia sido escolhido para apadrinhá-la: “Bom Jesus do Mártires”! O ‘santo’ já havia sido adquirido numa transação ligeiramente obnubilada entre o pároco Hermógenes e o vigário Jose e Mello! Quando em 1792 o vigário da Vila de Bom Jesus do Matosinhos pediu autorização ao prelado Dom Manuel da Ressurreição em São Paulo, para construir a capela na vila, a imagem do Senhor Bom Jesus dos Mártires já estava em poder do beato Angelo Gomes Moreira – seu zelador – esperando o altar para recebe-la.

OLYMPUS DIGITAL CAMERA

Acontece que a transação com o pároco Hermógenes estava eivada de duvidas e insatisfação! Nunca se soube ao certo se o padre de Santana do Sapucaí havia vendido, doado ou ‘emprestado’ a imagem do santo ao vigário da vila de Pouso Alegre, que, aliás, ainda não havia sido batizada com o nome do ‘alegre’ pouso! Por isso os santanenses, queriam a imagem de volta. E queriam a todo custo! Passaram a pressionar os vilarinhos do Mandu para que devolvessem a imagem do Senhor Bom Jesus dos Mártires. Inclusive com ameaças!

– Só vamos esperar passar as festividades religiosas… Na semana seguinte, se a imagem do santo não estiver aqui, vamos buscá-la pessoalmente! – Ameaçavam os descendentes de Francisco Martins Lustosa, fundador da cidade meio século antes.

        Aquele ano, São Pedro – que dizem que além de manter as chaves da porta do céu, cuida também da central de abastecimento de agua – a Copasa de além das nuvens – parece que estava fazendo uma pequena torcida para Pouso Alegre ficar com o ‘São Bom Jesus’ e resolveu botar lenha na fogueira… Abriu as torneiras e deixou a chuva cair! Findas as festividades religiosas anuais, embora muito a contra gosto, pois já haviam escolhido Bom Jesus para padrinho do município que se avizinhava, mas querendo evitar a primeira guerra mundial, justamente por causa do santo, os vilarinhos trataram de atender o ultimato! Tentaram a viagem pelo bairro Faisqueira… Sem chances! Tentaram pelo Ribeirão… Não conseguiram sequer subir o morro da Cava – atual curva da Rua Bento Doria Ramos. Voltaram com o santo para a capela a fim de esperar a estiagem. Não tardou o sacristão recebeu novo recado ameaçador;

 

Para saber qual foi o recado e o desfecho dessa historia, acesse “www.meninosquevicrescer.com.br”.

 

O ‘velho’ Aterrado… E eu!

DSC03013

A primeira vez que atravessei a ponte sobre o velho e piscoso Mandu e adentrei o velho Aterrado, foi montado numa bicicleta Monark azul-escuro. Levava na frente da reforçada bicicleta de carga um botijão de gás. Até então eu só conhecia o lado norte do rio, onde ia com o pai de uns amigos meus pescar mandi, piaba, tabarana e lambari debaixo da ponte, onde hoje passa a polemica e bela Avenida Perimetral. Na ocasião o bairro já havia sido batizado com o nome do santo, mas continuava sendo chamado pelo apelido de nascença: Aterrado. Passei pela oficina de bicicletas do Wilson na cabeça da ponte e segui pedalando garboso a pesada bicicleta da firma “Gouveia Gás”, desviando de pessoas, cavalos, outras bicicletas e poucos carros, ora pelo passeio, driblando as arvores, ora pela rua poeirenta!

Eu adorava bicicleta! Pedalar o dia inteiro pela cidade, ainda que carregando a pesada carga de 28 quilos na ida e 15 na volta, era mais que um trabalho, era um prazer, uma diversão! Na época, Roberto Carlos já era ‘rei’ e a Jovem Guarda ainda era jovem. Quem mais vendia discos ‘compact play’, de duas e quatro musicas era o cantor brega, Odair Jose, o terror das empregadas… Era o ano de l973.

Já no inicio daquela década, quando Simão Pedro Toledo começava transformar Pouso Alegre na mais progressista cidade do Sul de Minas, o velho Aterrado já era mal afamado. Não era qualquer um que se arriscava a atravessar o bairro. Até porque não tinha para onde ir! Depois da Curva do Japonês não existia cidade… Era só pasto. Só fazendas. A Refinações de Milho Brasil é que levaria a cidade para o sul.

… Mas demorei alguns anos para criar coragem!

DSC03016

Em 1969, quando comecei explorar Pouso Alegre com minha caixinha de picolés de uva, groselha, laranja, abacaxi e limão, Carlinhos Tigrinho, filho do patrão recomendou:

– Evite ir vender no Aterrado… Os moleques de lá te tomam os picolés, te dão uma surra e quebram sua caixa!

Pouso Alegre tinha 39 mil habitantes divididos em sete ou oito bairros, além do centro. Eu teria clientela suficiente nos bairros Cascalho, Primavera, Santo Antônio, Saúde, por perto de minha casa, sem ter que atravessar a ponte.

Três anos depois da advertência do filho do ‘seu’ Ferreira, fui estudar no Mons. Jose Paulino. Eu era ainda impúbere, mas além de estar atrasado nos estudos, precisava trabalhar durante o dia. Portanto fui estudar à noite. Foi meu primeiro contato com os moradores do Aterrado. Todos mais velhos do que eu. Lembro-me de alguns… O Bernardino, o Luiz Egidio, o Edesio! Lembro mais de ‘algumas’… A Geny, uma linda loira esguia de cabelos lisos, pele de pêssego…! Devia ter uns 17 anos. Acho que era ‘Ferreira da Silva’, da família dos Coelhos. Não dava bola para ninguém. De vez em quando seu namorado, um rapaz forte e barbudo, motorista de caminhão, vinha buscá-la na porta da escola. É por isso que ela não dava bola e ninguém se atrevia…! Depois da Geny, que não era para o meu bico, tinha a Lourdes… Essa sim eu poderia tentar! Mas Francisco Carlos de Aquino, o “Flor” chegou na frente! Mas não se casaram. Eu só voltei a revê-la muito tempo depois, no inicio dos anos 2000, na porta do velho Hotel da Silvestre Ferraz, quando ela foi visitar seu filho, o “Patinho”! Acho que ela não se lembrou de mim…

Esta esquina traz trágica lembrança, em '83...

Esta esquina traz trágica lembrança, em ’83…

O convívio com os moradores do Aterrado no Grupo Escolar Mons. Jose Paulino e a estreita amizade com um colega de trabalho, me fez perder o medo do Aterrado e de sua gente. Fui percebendo que eram pessoas boas, normais, apesar de viver num bairro sem infraestrutura, sempre lavado pelas enchentes. A mudança da família do Marcos Reolan de Castro, irmão do Tunga, do Cafado, do Bedeu, do “Dila”, meu colega na sorveteria do Ferreira, todos amigos na Rua São Pedro, também contribuiu para acabar com minha fobia de Aterrado!

Quando fui trabalhar na loja do Zezinho Gouveia, conheci o Daniel. Ele era ‘desentupidor de fogão’. Morava no Aterrado, em frente a futura oficina do Celinho Xaxa. Fui algumas vezes à sua casa. Ser amigo de um morador do Aterrado acabou de vez com meu medo de infância. Por isso risquei a avenida e ruelas do bairro com desenvoltura naquela manhã de meados de 73 com minha pesada bicicleta, como se estivesse no quintal de casa. Ainda bem que perdi o medo, porque meses depois chegaram as enchentes. Assim eu poderia nadar no Rio Mandu no meio da garotada do Aterrado!

A ponte era o ‘point’ da juventude… O dia inteiro lotada de nadadores de rio. Piscina era coisa raríssima, coisa de rico! Cada vez que eu descia ao Aterrado para fazer uma entrega, encostava a bicicleta na oficina do Wilson e aproveitava para dar uns mergulhos. Trabalhava de bermuda e chinelos havaianas… Era só tirar a camiseta e disputar com os garotos quem saltava mais alto por sobre o parapeito da ponte! Era diversão gratuita para todas as classes sociais. Quando as águas baixavam, levava embora nossa alegria…

Acampamento cigano, ponto extremo do bairro, antes da Lagoa da Banana atualmente.

Acampamento cigano, ponto extremo do bairro, antes da Lagoa da Banana atualmente.

O inexorável tempo mudou meus hábitos! Levou-me para o exercito, mudou meu emprego, mudou o rio, mudou a ponte, mudou até a natureza… Já não temos enchentes como antigamente!… E nem garotos com aquela coragem!

Voltei a circular pelo velho Aterrado no inicio dos anos 80. Agora muito mais por suas vielas, que aumentara demais nos últimos dez anos. Já não ia levar gás de bicicleta… Ia buscar meliantes na “brasilinha verde” da delegacia! Meliantes de todo tamanho, idade, peso e periculosidade! Vi muita coisa acontecer. Inclusive um colega de trabalho numa poça de lama com seis tiros no rosto, em 83.

... O bairro entre as duas "Diques"...

… O bairro entre as duas “Diques”…

As lembranças do velho Aterrado, no entanto, são mais boas do que ruins. No final dos anos 80 até 92, o velho Aterrado tornou-se meu quintal de casa. Dirigindo a LEPA eu descia a vargem toda semana. Seja acompanhando os jogos que eu promovia, seja participando deles com a camisa do Canarinho, do América, do Olaria… Nos campos do antigo Madureira do Niquinho, do Santamaría do João cavalo, do Internacional do Zé Resende e Zé Nascimento, do Bangu do Boi, do Ditão. Hoje só resta o campo do Bangu.

No bairro que me causava pavor minha infância eu agora realizava os mais ferrenhos clássicos do futebol amador de Pouso Alegre. Até finais de campeonatos, sem policiamento, com o campo cercado apenas por uma corda e às vezes nem isso, sem tumultos. Invasão de campo, apenas os cavalos mansos de carroça do octogenário Sr. Geraldo Eleutério, de vez em quando!

Cada bairro de Pouso Alegre tem uma origem. O N.S.Aparecida já chegou a ser chamado de Bairros dos Coutinhos. O Santo Antonio foi ‘colonizado’ pelos ‘imigrantes’ dos Afonsos, Cervo, Cantagalo. As pessoas que deixaram a zona rural do Pantâno, Cajuru, Anhumas, Imbuia se estabeleceram no Jardim Noronha, São João e Jardim Yara. O velho Aterrado acolheu os oriundos dos bairros do Sitio, Vitorino e Água Quente. Daí talvez a fama de bairro violento, devido à personalidade forte dos antigos moradores daquelas paragens do município de Silvianopolis. Não que fossem violentos, mas eram pessoas muito corretas, de estopim curto, que sempre levavam na cinta uma peixeira. Como não eram bons de conversa, logo punham fim à discussão exibindo a ‘lapiana’. Eram pessoas que resolviam seus negócios na base do “fio do bigode”…

Entrada do bairro hoje...

Entrada do bairro hoje…

Os crimes que aconteciam no bairro há 40 anos, no entanto eram crimes de honra. As gerações mais novas desvirtuaram essa personalidade e o bairro ficou mal afamado. Com o crescimento da cidade e principalmente a proliferação das drogas, o velho Aterrado ganhou status de bairro mais violento de P. Alegre. É o bairro que concentra a maioria das “bocas de fumo” e “biqueiras” de drogas! É onde “formiguinhas” do trafico disputam palmo a palmo com as formiguinhas saúvas o mesmo espaço! A população decente, ordeira e trabalhadora do bairro, que naturalmente é a imensa maioria, é quem paga o pato por isso…

Ah, velho Aterrado, como você cresceu! Antes era apenas a avenida empoeirada, ora estreita, ora larga e as travessas do Rolica, travessa Abrão, travessa do Bangu, travessa Cordeiro Olímpio, Rua Oscar Dantas, Padre Natalino, Aristeu Rios… Depois vieram as ruas Osvaldo Mendonça, Maria Porfiria de Abreu, Luiz Prudenciano Alves, Roberto Ramos de Oliveira, João Sabino de Azevedo, Sapucaí, Antônio Pereira Sobrinho, Daniel Paulino dos Santos e outras tantas ruas e vielas. Agora até a Rua Nova ficou velha!!!

A famosa Lagoa da Banana, onde a prefeitura poderia construir  "cidade administrativa"! Ha pouco mais de um ano ainda tinha água...

A famosa Lagoa da Banana, onde a prefeitura poderia construir a “cidade administrativa”! Ha pouco mais de um ano ainda tinha água…

... Hoje virou mato!

… Hoje virou mato!

A Avenida Dique II à Oeste do bairro, que depois de uma década parece que vai sair do papel – no momento está no centro da briga politica entre governo federal e estadual, orquestrada pela prefeitura que embargou sua inauguração – deve contribuir entre outras coisas, para a melhora da qualidade de vida dos moradores do bairro São Geraldo.

Neste lixão da Rua Daniel Paulino dos Santos, moram varias pessoas!  Atravessando o Rio Mandu, a menos de 100 metros dali, está a famosa Avenida Perimetral, de frente para o Bretas, a poucos metros do centro da cidade..!

Neste lixão da Rua Daniel Paulino dos Santos, moram varias pessoas! Atravessando o Rio Mandu, a menos de 100 metros dali, está a famosa Avenida Perimetral, de frente para o Bretas, a poucos metros do centro da cidade..!

Uma outra avenida à leste, partindo da perimetral, passando nos fundos da Rua Nova, lagoa da banana, desembocando atrás do Estádio Manduzão, levaria infraestrutura e melhoraria muito a vida do sofrido, porém orgulhoso, morador do Aterrado. Em 2004 sugeri a construção dessa avenida e do “Parque Administrativo da Prefeitura” na ilha da “Lagoa da Banana”, concentrando ali todos os órgãos do poder executivo do município. Se o desenvolvimento chegasse àquela região da cidade, além de facilitar a vida dos moradores, tiraria o espaço dos meliantes que usam aquela área para ludibriar a policia. Seria muito mais fácil combater o trafico formiguinha por ali. Minha sugestão foi natimorta: entrou por um ouvido e saiu pelo outro! É apenas um sonho… Mas bem que o povo do sofrido Aterrado merece!

... A 'nova' ponte sobre o velho Mandu.

… A ‘nova’ ponte sobre o velho Mandu.

 

 

Parabéns Pouso Alegre…165 anos de faceirice!

Quando Jesus & Jacira, o casal Romeu & Julieta manduano, marcaram para sempre o “Beco do Crime”, pondo fim ao seu romance proibido, na madrugada natalina de 1956, você tinha apenas 29 mil habitantes…

DSC00299DSC02951DSC03080DSC03817DSC03950DSC04021DSC04610DSC05011DSC05019DSC05119DSC05869DSC05806DSC05833DSC06319DSC00297DSC00818

Quando te abracei e te adotei como minha cidade, em 1969, você já abraçava 39 mil pousoalegrenses!

DSC01647DSC01784DSC01791DSC01822

Hoje abraça 140 mil e acaricia outros tantos visitantes…

DSC01857DSC01994DSC02029DSC02183DSC03076DSC051381959 00 P4010030

Até onde você vai crescer minha amada Pouso Alegre?

O mistério do Corpo Seco – Herói ou Vilão?

1830 00 P1040010

 

Na minha florida e doce infância, o mistério dos fantasmas, das casas mal-assombradas, da mula-sem-cabeça, do lobisomem, do “Cavaleiro Fantasma da Rua São Pedro”, que toda madrugada baldeava os restos mortais do cemitério do Alto da Cruzes para o cemitério das Taipas e outras historias de arrepiar, ocupavam nossa imaginação e freavam nosso comportamento.

Eu tinha mais medo de cachorro louco, vaca brava, lobos, onças – bichos que eu podia ver, mas era muito pequeno para encarar – muito comum nas estradinhas vermelhas que cortavam as matas escuras da Grota Funda. No entanto, a historia do famoso Corpo Seco que morava a alguns quarteirões da minha casa despertou minha curiosidade e resolvi investigar.  Fui chegando de mansinho, de baixo para cima, pelo bairro da saúde. Afinal, se fosse necessário bater em retirada, era muito mais fácil correr morro abaixo… Pois é, mas não foi desta vez, em setembro de 69 que me aproximei do Corpo Seco.

1925 00 4010038        Dois anos antes, quando vim a Pouso Alegre pela primeira vez, passei quase no quintal do Corpo Seco. Eu viera com meu pai visitar minha sétima irmã, internada no Samuel Libanio com anemia. Saímos do bairro dos Coutinhos numa madrugada de lua cheia, antes de o galo cantar. Seguimos pela estrada morna, a pé, dez quilômetros. Como não conseguia acompanhar seus passos, vim trotando atrás dele. De vez em quando ele parava para que eu pudesse alcançá-lo. Na avenida Alberto Paciulli, entre a residência do “Tio Nerso” Martelo e a oficina do Marquinho Funileiro – que nem tinha nascido ainda e hoje já morreu – já com a madrugada agonizando, deparamos com uma cena inusitada. No meio da estrada, debaixo de uma frondosa figueira, a antiga, mãe da jovem que está hoje no mesmo lugar… um despacho de macumba. Uma galinha preta estendida no meio de um circulo de velas coloridas, ao lado de uma garrafa de “Tatuzinho” – coincidência ou ironia, o alambique que produzia esta perfumada cachacinha famosa nos anos 60 e 70 faliu há muito tempo – e uma caixa de fósforo ‘Argus’. O despacho não deve ter sido bem sucedido, pois as velas estavam parcialmente queimadas e embora o fósforo estivesse à mão, nenhum espírito apareceu para reacendê-las.

1925 00 P1010080       Duzentos metros adiante, quando o dia começava mover as pálpebras, com o ar ainda turvo, no final do morrinho, finalmente avistamos sinais de urbanização. Meu pai parou bem no espigãonzinho para me esperar. Quando me aproximei arfante, ele olhou para a direita, apontou com a cabeça e disse:

– Ali mora o Corpo Seco…

Há pouco mais de trinta metros no espigão do pasto, estava a grande e sombria casa branca de janela e contornos azuis. O alpendre imenso escondia sombras da lua já bocejante para os lados de Congonhal, tornando o casarão ainda mais fantasmagórico.

Nas ‘rodinhas de contar causos’ lá na minha terra, eu já ouvira falar no temível endiabrado que batia na mãe. E sempre que ouvia arrepiava os pelos de medo… Mas naquele momento senti apenas curiosidade. Eu estava há poucos metros da casa do Agostinho Corpo Seco, mas não precisava temer; meu pai certamente era muito maior, mais musculoso, mais valente e mais forte do que ele…

Para continuar a ler essa historia, acesse: [email protected]

 

*Dedico essa historia a todos os leitores do Blog, especialmente aos amigos que contavam causos de assombração em volta da fogueira, na esquina da rua São João em 1970, muitos dos quais já se juntaram ao Agostinho Corpo Seco no outro lado da vida.

        Airton Chips

A saga dos irmãos Reanir… O assassinato do policial Cabeçada

MENINOS QUE VI CRESCER

Eram cerca de cinco e meia da tarde do dia 26 de novembro de 1984. Na inspetoria de detetives existia apenas uma maquina de escrever Remington usada para preenchimento de ficha manual de suspeitos e outra Olivetti Línea 88 – moderníssima para a época – para fazer relatórios policiais. Por isso, o ponto de encontro habitual dos detetives era no saguão da delegacia. Ali, no final da tarde se jogava conversa fora, comentava-se os fatos do dia, falava-se das investigações em andamento, contava-se historias engraçadas e se apelidavam as pessoas – Foi numa dessas ocasiões, no carnaval de 81 que o bonachão escrivão Afonso Edson apontou para mim e disse; “Chips”! Nunca mais me chamaram pelo nome…!

Marcos Alves da Silva, 23 anos, natural de Juiz de Fora estava ali, alegre e descontraído conversando amenidades. Relembrava fatos da Academia de Policia, pela qual passara a pouco mais de um ano, falava de sua cidade natal, dos seus primeiros meses de trabalho, do filho recém nascido… Eram suas ultimas horas de férias. Havia se mudado para Pouso Alegre e às oito da manha do dia seguinte começaria uma nova etapa de sua vida. Iria substituir “Zé Veio”, o lendário carcereiro do Velho Hotel da Silvestre Ferraz. Nós nos conhecemos em Ouro Fino, quando fugimos com “Monteiro e os quase 40 ladrões do Bagdá” para interrogá-lo. A participação de Marcos e sua matilha de Dobermann no interrogatório fora fundamental para a confissão do meliante. Como eu, ele já tinha também seu apelido. Certa noite ao receber um preso embriagado para recolher ao xadrez, ouviu dele um sonoro e gratuito palavrão. Marcos aproximou-se a poucos centímetros do preso, olhou-o nos olhos e disse:

– Repita!

O mamado e abusado preso repetiu o palavrão quase cuspindo na sua cara…  Mal havia fechado a boca, recebeu uma cabeçada na testa e caiu de costas no chão! Naquele momento o jovem policial foi rebatizado de “Marcos Cabeçada”!

Naqueles dias João Batista Alvarenga, o Alvarenguinha “Dez p’ras Duas” e Claudemir Jose Dorigatti estavam investigando uma serie de furtos ocorridos em sítios no bairro Curralinho. Levantaram que um dos envolvidos era Francisco ou Antonio Reanir de Lima, morador da várzea direita do velho Aterrado, mais ou menos atrás da chácara do João Cavalo. Vivíamos ainda sob a égide da Constituição de 67 e ela não exigia mandado de prisão para prender suspeitos. Na manha seguinte, Alvarenguinha e Dorigatti, dois policiais com pouco mais de um ano de serviço, iriam “dar o pulão” no suspeito Reanir de Lima. Precisavam de mais alguém para a “operação café da manhã”. Cabeçada, sempre disposto e prestativo, como a maioria dos novos policiais, se ofereceu para participar da diligencia.

Feliz por realizar um trabalho de detetive embora fosse carcereiro, feliz pelo filho recém nascido, feliz por trabalhar na Regional, Marcos Cabeçada se despediu dos colegas e foi embora. Fomos juntos. Ele jogava de lateral no meu time e morava em um porão em frente minha casa, no bairro da Saúde. Não tínhamos carro. Fomos à pé. Eu também tinha dois filhos ainda em fraldas e seguimos conversando sobre crianças, sobre futebol, sobre policia, sobre sonhos… Nenhum de nós imaginava que na manha seguinte seus sonhos seriam ceifados e meus pesadelos começariam…irmãos reanir Continuar a ler

Maria… 90 anos de solidão

A casinha de cangalha, construída depois que ficou órfã pela segunda vez, tem um cômodo só dividido ao meio por uma parede de tabua e duas janelas. Na parte da frente ficam um dolente fogão de lenha, um banquinho de madeira, uma mesinha e uma prateleira. Atrás da parede de madeira está a canastra onde guarda seus trapinhos – deve ter mais de vinte anos que não compra uma blusa nova – e o catre onde dorme rezando intermináveis terços e as vezes divide com uma ou outra galinha chita que entra pela janela para botar. ‘Dorme’ com as galinhas e levanta-se com os primeiros acordes do galo que precede a aurora.

Certa noite adormeceu rezando o terço. Acordou muito tempo depois, com a noite ainda escura e ficou confusa…

– Nossa senhora! Dormi demais…. O dia vai amanhecer. Cruz credo – falou consigo mesmo.

Abriu a portinha da cozinha, viu que ainda era noite, mas estava tudo claro. Não reparou na posição da lua cheia plácida no céu…

– Vou dar uma coça no galo carijó dourado. Preguiçoso! O danado errou a hora hoje de novo… – pensou.

Já havia dormido o suficiente. Colocou uma blusinha nas costas, pegou o radinho, ligou e foi catar lenha na beira da restinga do seu terreno. As duas vaquinhas amarelas e um bezerro castanho desmamado estavam deitados na sombra da velha gabirobeira e fingiram não ouvi-la quando ela passou e os chamou pelos nomes. Sentindo a brisa fresca soprando parte dos seus cabelos cor de cinza, ia ouvindo uma musica dolente no radio de pilha e juntando sem pressa os gravetos de óleo copaíba na beira da restinga. O vestidinho claro, a blusinha de lã surradinha, no mesmo tom e um pano chita amarrado na cabeça, lhe conferiam uma figura impar sob a luz prateada da lua. Lá de cima o astro cálido olhava e tentava entender o que aquela figura octogenária e solitária estava fazendo ali àquela hora da madrugada. De vez em quando a figura às vezes ereta, às vezes curvada sumia na sombra de um galho das frondosas arvores.

– Aconteceu uma coisa estranha, meu fio – conta ela – Eu catava os gravetinhos aqui e ali e ia fazendo um montinho… Quando eu ia juntar os montinhos, não tava mais lá… Aí eu olhava pra frente, tava tudo num monte só…!

– Ué, mas quem estava te ajudando, Maria?

 

Para continuar a ler essa historia, acesse [email protected]

 

O ultimo charreteiro

Ele tem 77 anos de idade. Estabeleceu-se como condutor de veiculo de tração animal em 1958 e apesar de há muito ter criado os seis filhos e conquistado a justa aposentadoria, continua conduzindo sua charrete, atualmente puxada pela dócil e pacata eguinha branca com nome de Rainha. Há mais de cinquanta anos transportando comerciantes do mercado municipal, donas de casas com suas sacolas de verduras e legumes e turistas saudosistas, João Barreiro tem muita historia de ‘taxista’ para contar.

– Meu pai era charreteiro… Eu já nasci charreteiro. Ainda moloque comecei trabalhar com charrete. Tive ponto aqui perto do mercado, na Dr. Lisboa, depois voltei para cá. Na época a cidade tinha cerca de 3o mil habitantes e mais de 60 charretes – conta com saudade o velho charreteiro.

– O que você viu que mais te chamou a atenção nestes 50 anos?

– Conversei até com assombração… Certa vez eu estava voltando para casa, era umas onze horas da noite, quando  dobrei a Remonta para chegar na Vendinha, um homem de branco emparelhou com o varal da charrete e continuou correndo ao lado do cavalo, a galope. Ele estava vestido de branco, de chapéu… Eu conhecia ele. Era o Helio, gente boa… tinha morrido há vários anos. Como ele não saia de perto da charrete eu perguntei:  “ Ô Helio, você está precisando de reza? Ele não respondeu mas largou o varal da charrete e subiu num barranco na beira da estrada. Eu rezei o Pai Nosso e o Salve Rainha… De repente ele foi evaporando, virou uma pomba branca e saiu voando… Nunca mais vi! – Conta João, como se tivesse ‘vendo’ o vulto branco ao lado da charrete, naquele longínquo inicio de anos 60.

– Outra vez eu estava levando uma senhora para casa, no São João, com uma menina de uns seis anos no colo. Elas estavam voltando do medico… De repente a menina deu um suspiro e amoleceu no colo da mãe. Parou de respirar. Morreu na minha charrete!

Alguns anos depois ele se viu envolvido em mais uma historia tétrica… de charreteiro!

– Eu tava aqui no ponto, perto da oficina do Toquinha, quando o oleiro Pedro Olegário chegou e pediu para levar ele no Aterrado para socorrer um empregado dele, que trabalhava no olaria. Ali só havia a avenida principal, sem calçamento e uma meia dúzia de beco que acabava de repente na vargem. Antes nós paramos na funeraria Ferraciolli e ele comprou um caixão!!! Depois nós paramos num barzinho perto da ponte, ele pediu duas pingas, bebeu uma e ofereceu pra mim beber também. “Eu não costumo beber em serviço, falei pra ele. Mas ele insistiu… Beba, você vai precisar”!!  O Aterrado estava todo alagado. A enchente estava começando baixar. No olaria chegamos com a água pela cintura… Com muito jeito colocamos o morto no caixão. Fazia 8 dias que ele tinha morrido, mas a água gelada conservou seu corpo… Nãoa tinha cheiro – ruim – nenhum. O difícil foi trocar a roupa e lavar ele… Estava todo duro. Aí eu lembrei de uma coisa que meu pai me contava… Se você precisar mexer com um morto, converse com ele, peça licença… Eu comecei conversar, ele foi amolecendo, ficou mole… Eu e o ‘seu’ Pedro demos banho e levamos ele para o necrotério, na charrete.

João Barreiro passou mais de cinqüenta anos conduzindo a trote lento seu veiculo… Poderia passar mais cinqüenta, com os olhos brilhantes e marejados contando suas  historias na esquina do centenário mercado na Duque de Caxias!

– Hoje eu trabalho poucas horas por dia. Um carreto custa entre 7 e 10 reais. Chego aqui onze horas da manha e cinco, cinco meia vou embora tratar da Rainha. Se ela faz necessidade aqui no ponto, na mesma hora eu recolho o estrume. Nem dá cheiro. Ainda tem fregueses que pede para levar em casa, para passear pela cidade. O Paulinho Toureiro  – morto há vários anos – foi meu freguês muitos anos. Mas o bom mesmo era quando a zona – boemia – era ali na David Campista! As madames – prostitutas – toda tarde vinha no mercado e depois nós íamos levar elas para casa. As vezes a gente saia passeando pela cidade. Elas gostavam de andar de charrete e pagavam bem…

– Qual a maior alegria?

– Tudo era alegria… Acho que a maior foi criar meus filhos tudo honesto, com meu trabalho e ter tanta amizade…

– … E a maior tristeza?

– Não tem. A vida é muito boa… – Ele responde sem pensar mas desvia os olhos de mim, olha para o vazio e acrescenta:

– Acho que a maior tristeza é que isso está acabando. Já tentaram acabar de uma vez com as charretes. Mudaram nós de lugar muitas vezes, fizeram pressão… Eles acham que nós estamos enfeiando e sujando a cidade! Nas cidades turísticas como São Lourenço, Poços de Caldas, ainda tem um tanto de charrete. As crianças de hoje não sabem o que é isso… – E com uma pitada de revolta acrescenta:

– Charrete faz parte da historia de Pouso Alegre, é tradição… não pode acabar!

Mas está acabando!

Nos ultimos dez anos apenas João Barreiro de 75 e Tião de Melo, de 62 anos, estão em atividade, preservando a tradição. Ele conviveu com o pai também charreteiro Chico Barreiro, Dito Poteiro,  Sebastião Daniel, Pé-de-Vento, o charreteiro das madames, todo arrumadinho, perfumado e de óculos escuros, o Guarda Louças, aquele que levou o corpo de Jacira, quando seu namorado Jesus Damasceno a matou, dando origem ao Beco do Crime e tantos outros. A maioria já foi se encontrar com o “Helio da Remonta” a muito tempo!

A tradição das charretes de Pouso Alegre está por um fio… ou dois. Há mais de dez anos nenhum novo charreteiro se estabeleceu na praça…

Recentemente o prédio do antigo fórum na Praça Senador Jose Bento foi tombado pelo Patrimônio Histórico e Cultural. O centenário Mercado Municipal também acaba de ser tombado pelo mesmo instituto, como Patrimônio Imaterial do Município.

Este é um bom momento para que a Secretaria Municipal de Cultura valorize e incentive os dois últimos charreteiros do municipio, João Barreiro e Tião de Melo e incentive novos charreteiros à continuar a centenária tradição das cherretes.

Se nada for feito agora para preservar a tradição, em poucos anos charretes e charreteiros só vão existir na memória e  aqui… no blog do Airton Chips.