O Milagre da Porteira

     Vamos falar um pouquinho de Deus?

      Então falemos de milagres…

      Você conhece a expressão: “fulano escapou por um milagre”?

      E você?

      Você já ‘escapou’ por um milagre?

Passava pouco de dez horas de uma mormacenta manhã de segunda-feira quando cheguei ao pé da porteira no meio da serra. Fazia pouco mais de meia hora que eu saíra de casa pedalando minha pesada Mountain bike preta. Minha casa, lá na baixada, estava agora a quilômetros de distância. Encostei a bicicleta na porteira, me afastei uns metros, abri a braguilha, aliviei-me, peguei a garrafinha pet, sorvi generosos goles de água ainda fresca e fiquei por uns instantes contemplando o bairro distante lá embaixo.

Quando criança, dalguns pontos mais elevados do bairro eu fazia o inverso… Ficava uma eternidade olhando para aquela porteira branca, quase encravada no barranco vermelho feito à picareta e enxadão na encosta da serra. E pensava com meus olhos de criança: “Para onde será que vai aquela estrada”?

Há alguns anos eu havia descoberto que a velha, estreita, íngreme e pedregosa estradinha não ia a lugar nenhum. Na verdade, ia… Ia pouco além da porteira branca encravada no barranco vermelho. Ia a duas fazendas, a dos Alves e à dos Maximiliano.

Há muitos anos, no entanto, o êxodo rural havia expulsado as duas famílias dali. Agora a estradinha pedregosa levava a apenas um rancho e uma velha tapera onde vivia o ermitão Anselmo, para cuidar de um gado crioulo. Além da tapera, nos espigões acima, na divisa dos municípios de Congonhal, Pouso Alegre e Borda da Mata, ficavam as nascentes do Ribeirão Santo Antonio, que corta o bucólico bairro que me viu nascer.

Há anos o movimento de pessoas e de animais naquela estradinha tornou-se raro. Na verdade, ficou restrito ao ermitão Anselmo que, aos sábados, duas vezes por mês, com um embornal de lona pendurado no ombro, desce ao bairro cavalgando em pêlo sua eguinha castanha, para buscar pouco mais de que uma garrafa de suco de gerereba na vendinha. Mas deixemos a história do ermitão para outra ocasião, pois ela só, já paga outro ingresso!

Aquele lugar tão singelo, tão isolado e tão romântico das minhas lembranças pueris, tinha outro atrativo. Há cerca de cinquenta metros da porteira, o Ribeirão Santo Antonio despencava de quase cinquenta metros, formando uma linda cascata escondida entre arvores centenárias! Por um acesso bem mais fácil seguindo o curso d’água, eu já estivera ao pé da gelada cachoeira anteriormente. Dali, ao lado da porteira branca da minha infância, agora eu podia ouvir o dolente choro da cachoeira despencando em queda livre do alto da rocha.

Aproximei-me do barranco tentando ouvir melhor o triste lamento das águas límpidas batendo nas pedras duras e lisas e, quem sabe, avistar o véu branco balançando por entre os galhos das arvores.

Foi nesse momento que eu recebi… um inesperado empurrão!

Apoiei meus pés em um monte de pedregulhos quase encobertos por guanxuma, bem próximo da ribanceira, abri bem os olhos e tentei avistar a cortina d’água… Na verdade pensei fazer isso! Pois antes mesmo de inclinar ligeiramente o corpo, o corpo todo se foi! Partiu! Despencou no vazio!

Voou abismo abaixo!…

Meus pés deslizaram do monte de pedregulho como se desliza em uma poça invisível de sabão líquido na entrada da cozinha!

Tudo aconteceu como num piscar de olho…

Isso mesmo, ‘olho’!

Piscar de ‘olhos’ demoraria o dobro. Piscar apenas um demora metade do tempo!

E lá estava eu em queda livre num abismo de mais de cinquenta metros.

Não houve tempo para pensar no que havia acontecido!

No que estava acontecendo!

No que aconteceria!…

Só havia uma certeza: essa eu havia sentido nitidamente… um empurrão nas costas!

Antes mesmo do fim da queda eu já tinha uma pergunta formulada:

“Quem me empurrou”?

E antes de qualquer resposta… muito antes que eu me estatelasse nas pedras frias e disformes no pequeno poço escondido lá embaixo na mata… o milagre aconteceu!

Tão inesperado quanto o ‘empurrão’, o milagre aconteceu!… Eu estava parado, com os dois pés firmes sobre uma rocha, abraçado a uma arvore roliça e comprida cuja copa ultrapassava em muito o nível da estradinha pedregosa!

Parecia que a arvore havia sido colocada ali para conter minha queda. Parecia que a rocha havia sido colocada ali ao pé da arvore para apoiar meus pés!

Ainda abraçado à centenária arvore olhei para baixo à minha esquerda… O abismo continuava ali, traiçoeiro, silencioso, sombrio olhando de esgueio para mim! Se a arvore espigada não tivesse parado minha queda, certamente ele, o abismo, agora estaria com outra cor! E eu jamais poderia contar essa história!

Enquanto esperava minhas pernas retomarem a respiração, ainda abraçado a arvore, olhei para trás… A dois metros havia um barranco vermelho, carcomido pela erosão. Três metros acima estava a diminuta clareira por onde eu fizera o voo cego segundos antes. À minha direita, quando terminava a gigantesca rocha, começava uma pequena trilha batida, usada certamente por tatus, pacas e outros bichos que contornavam o abismo para descer em busca de água fresca. A estreita trilha em meio ao emaranhado de galhos e cipós desaguavam no pasto de capim braquiária há poucos metros dali.

Esperei alguns segundos abraçado à arvore, para ter certeza de que eu estava vivo… apalpei a bermuda para ver se não estava ‘molhada’, peguei a trilha, sai no pasto e voltei para a estradinha. Fui devagar, pois as pernas relutavam em me levar!

A estradinha pedregosa estava tão deserta quanto antes. Apenas um bem-te-vi na copa de uma arvore qualquer avisava: “eu bem te vi”!

Minha bicicleta preta continuava solenemente apoiada na velha porteira caiada de branco, à minha espera.

Parei ressabiado a uma distância segura do montinho de pedregulho, minha pista de decolagem, buscando uma explicação para o escorregão. Não encontrei. Eu havia mesmo sido empurrado! Mas por quem? e por quê?

A estradinha da minha infância, há décadas não leva quase ninguém para além da porteira, para as fazendas abandonadas. Nos últimos anos, só o ermitão passa por ali uma vez a cada quinze dias. Quando passasse por ali no sábado seguinte, ele veria minha bicicleta encostada na porteira, mas não tocaria nela. Pensaria que o dono teria entrado no mato para ‘fazer uma viagem’ e não daria importância à bicicleta. Quando voltasse da venda do bairro ao pé da noite, apesar da escuridão,  acostumado com a tênue luz da lamparina, veria a bicicleta preta encostada no coiceiro da portaria. Mas não daria importância. Não era dele. Não era da sua conta. Dali a quinze dias ele voltaria a passar pela porteira. A bicicleta preta estaria no mesmo lugar acumulando poeira. Ele comentaria o fato na vendinha do ‘Vilino’. As pessoas ligariam os fatos e … eu finalmente seria encontrado! O legista teria dificuldade para me identificar na forma da lei. A arcada dentária e os longos cabelos começando a branquear, únicos que estariam intactos, certamente ajudariam na identificação…

Me velório certamente seria bastante concorrido e comentado!

Mas nada disso aconteceu. Pois ao ser empurrado para o abismo, havia uma arvore e uma pedra gigante logo abaixo, no lugar certo, para evitar que eu chegasse ao fundo do abismo…

Sacudi a poeira, montei a bicicleta preta e segui meu caminho pedalando solitário pela serra. Passei pela tapera do ermitão, subi à direita pelo que restou de uma estradinha vermelha por onde passavam cavaleiros e carros de bois meio século antes, dobrei o espigão e desci no bairro das Almas. Conforme o roteiro traçado, passei em Congonhal e só voltei para casa no final do dia. Enquanto pedalava por trilhas e antigas estradas desertas, eu ia pensando com meus cabelos dançando ao vento…

– Quem me empurrou no abismo da cachoeira?

– Por que a arvore apareceu no meu caminho para segurar minha queda?

As respostas demoraram anos para chegar…

A resposta à primeira pergunta foi surpreendente! E foi necessário um segundo milagre para que eu compreendesse o primeiro.

Em 2001 eu entrei embaixo da principal queda d’agua da ‘Cachoeira das Quinze Quedas’ para fazer uma oração. Ao terminar minha conversa e tentar sair de entre a pedras traiçoeiras e escorregadias, ouvi uma voz me ordenando que voltasse à posição anterior e continuasse a orar! A ordem se repetiu três vezes, o que me consumiu mais de cinco minutos. Foi o tempo necessário para que o perigo – literalmente – passasse… e eu pudesse continuar contando histórias! Essa história está no livro “Quem matou o suicida” com o titulo “Milagre na cachoeira”. Mesmo assim demorou alguns anos para que eu compreendesse que havia sido salvo por um milagre!

Quando, num momento de reflexão e buscas por respostas, eu compreendi o Milagre da Cachoeira, eu me emocionei muito, me arrepiei, agradeci…

Foi nesse momento de emoção que eu compreendi o primeiro milagre, o milagre do ‘empurrão do abismo’! Foi nesse momento que o ‘autor’ do empurrão me disse:

“Fui eu que te empurrei”!

– Mas por quê?

– “Você olhava para a frente procurando ver a cachoeira por entre as arvores e não viu o perigo a um palmo dos seus pés. Você estava entre a serpente e o abismo. A picada seria fatal. Quando ela armou o bote, a única maneira de tirá-lo dali era para baixo… Por isso eu te empurrei. Mas eu te empurrei na direção segura, na direção da arvore que reteve sua queda”!

Desde aquela conversa com Ele, tenho recebido muitas respostas… até mesmo para perguntas que não fiz. Desde então tenho percebido muitos milagres à minha volta!

“O dia em que dormi com Pelé”

“Nós pulamos juntos para cabecear a bola, eu era mais alto, saltava mais. Quando pisei de volta no chão, olhei espantado para o alto e Pelé continuava lá, cabeceando a bola. Era como se ele conseguisse ficar em suspensão pelo tempo que quisesse.”

 “Tentei me convencer de que ele era de carne e osso como todo mundo. Eu estava errado.”

Assisti a todos os jogos da Seleção Canarinho na Copa de 70, na tv preto-e-branco na casa do meu vizinho, no alto da rua São João. Esse foi meu primeiro contato com o mundo magico do futebol. De cara assisti às magias do maior jogador de futebol do mundo em todos os tempos. Em 78, quando a tv, ainda preto-e-branco, entrou na minha casa, o Rei já havia pendurado as chuteiras! Que pena! Pra mim Pelé poderia ter jogado na seleção até os 50, 60 anos!

 

Consumidor inveterado de notícias de telejornais, naturalmente acompanhei pela TV o drama do Rei Pelé e sua família até a morte do seu corpo no dia 29 passado. Antes mesmo do desencarne, o qual eu sabia que seria inevitável por aqueles dias, passei a perguntar a mim mesmo qual o tamanho da homenagem que a mídia nacional e estrangeira faria ao nosso rei.

Hoje tive a resposta.

Recebi do amigo Kenith um texto da lavra de João Moreira Sales, que mostra a real dimensão do que foi Pelé, o Rei do Futebol. Trono do qual nenhum outro jogador do mundo, por mais magico ou fenomenal que seja ou tenha sido, sequer chegou perto!

O texto é longo. Se você não gosta de ler, não perca tempo começando.

Mas se você gosta de ler e entende o que lê, vale a pena usar dois ou três minutos para viajar no tempo e saborear o que o documentarista e fundador da Revista Piauí, após uma noite de insônia pensando nele, diz sobre o nosso Rei.

 

“O DIA EM QUE DORMI COM PELÉ

Numa noite de insônia, a gente se dá conta do que perdeu e ganhou com a morte do Rei

04jan2023_11h22

JOÃO MOREIRA SALLES

 

Pouco depois da meia-noite de 31 de dezembro eu já estava deitado, mas só adormeci por volta das cinco da manhã. Não foram os fogos nem os foliões do lado de fora que me mantiveram acordado. Foi Pelé. Ou, para ser mais exato, o que Pelé me fez pensar. A notícia havia chegado dois dias antes, e, do dia 29 de dezembro até a noite da virada do ano, eu, como milhões de pessoas, passaria horas tentando compreender a dimensão dessa morte, o tamanho do que vinha de desaparecer.

 

Logo ficou claro que a comoção não era só nossa, brasileira. A edição internacional do New York Times publicou um artigo tocante de José Miguel Wisnik na dobra superior da capa. O obituário ocupou toda a página dois – cinco fotografias, seis colunas, do alto ao pé da versão impressa. O francês Libération deu capa e quatro páginas, logo as quatro primeiras, em geral tomadas por assuntos políticos. No jornal esportivo L´Équipe, foram 24 páginas. Até o Financial Times, que provavelmente se interessa mais pela cadeia produtiva da bola do que pela bola, pôs Pelé na capa.

 

Um amigo, o n. 1, me escreveu o seguinte: “Eu tenho chorado de forma intermitente desde ontem. É arrebatador. Não tinha ideia de que seria assim.” A confissão veio acompanhada da capa do jornal italiano Domani, na qual se lia: “Morreu Pelé, o homem que inventou o Brasil” – “A manchete definitiva”, cravou esse amigo, “porque o Brasil que o mundo aprendeu a amar (feliz, criativo, majestoso, quente e tolerante) não existiria sem a ascensão de Pelé.” Do amigo n. 2 recebi um e-mail intitulado “A melhor capa veio da Bolívia”. Era do diário La Razón: “Murió Pelé, el fútbol se queda con 10” – um achado de difícil tradução, querendo dizer que dali em diante o futebol viveria para sempre com uma ausência em campo, não mais onze jogadores por equipe, apenas dez, o número da camisa do Rei.

 

Nenhum brasileiro jamais mereceu tratamento igual, nenhum causou tanto espanto. Por essa medida, então, Pelé foi o maior de todos os brasileiros, mas a prova dos nove, claro, está no que ele fez em campo. De certa forma, está nas imagens que sobreviveram, está nos arquivos de sua arte.

 

Eu não vi Pelé jogar. Tinha oito anos em 1970 e, por motivos que não vem ao caso explicar, não assisti aos jogos da Copa do Mundo do México, apesar de tê-los vivido intensamente. Ir atrás dessas imagens significava rever as jogadas mais clássicas de Pelé, aquelas que vivem na memória de qualquer amante do futebol, quase todas da Copa de 70, mas também, e talvez principalmente, descobrir o que ele fazia de forma rotineira nas partidas menos vistosas de sua carreira. Do amigo n. 1, dei a sorte de receber um fio de Twitter com “estatísticas desconcertantes e dois vídeos sensacionais”. Foi esse fio que vi e revi.

 

Muita gente se pergunta se Pelé conseguiria se impor no futebol de hoje, um esporte mais rápido, mais técnico e mais exigente fisicamente. Basta meia hora assistindo às suas jogadas para concluir que a pergunta não faz sentido. É exatamente o contrário. O certo seria perguntar se os grandes jogadores de hoje conseguiriam jogar tão bem nas condições de antigamente. Walter Casagrande, outro que se emocionou ao se recordar de Pelé, desmontou rapidamente a ideia de que hoje Pelé não seria Pelé. Tudo era mais precário na época em que ele jogou. As chuteiras eram pesadas, a bola deixava de ser redonda à medida que o jogo corria, a arbitragem não tinha instrumentos para coibir a violência. Cartões amarelos e vermelhos foram introduzidos apenas na Copa de 1970, e ao craque daqueles anos cabia não só a tarefa de levar o time à vitória, mas também a de sobreviver às pancadas recebidas ao longo de 90 minutos. Era jogo e era luta.

 

Isso sem falar nos campos. As imagens são impressionantes. Alguns jogos aconteciam não em gramados, tampouco em relvados nus, mas em lamaçais. Nos casos mais extremos, quase pântanos. Apesar disso, lá está Pelé, conduzindo a bola como quem passeia o seu cão bem treinado. A bola segue fielmente o pé, obedece, não foge.

Todo o repertório do futebol moderno parece estar à sua disposição, do arranque de Mbappé, ao drible curto de Messi, ao empuxe balístico e obstinado de Ronaldo Fenômeno em direção ao gol. No artigo para o NYT, Wisnik resumiu com precisão esse repertório:

Ninguém reuniu como ele as capacidades do drible e da velocidade, do chute com as duas pernas, do cabeceio preciso e fulminante, do jogo rasteiro e do jogo aéreo, do senso mágico do tempo de bola, do entendimento instantâneo do que sucedia à sua volta, tudo baseado numa constituição atlética vigorosa e rigorosamente equilibrada. Mesmo assim, o efeito-Pelé não se resume a uma soma, ainda que única, de habilidades quantificáveis. Um poeta e ensaísta observou que ele parecia arrastar o campo consigo, como uma extensão de sua pele, em direção ao gol adversário […] A beleza e a inteligência do corpo em ato, mais o olho de lince e a imprevisibilidade do pulo do gato, faziam com que Pelé parecesse funcionar numa frequência diferente da dos demais jogadores, assistindo em câmera lenta ao mesmo jogo do qual estava participando em alta velocidade, enquanto outros, em torno dele, pareciam estar, tantas vezes, assistindo ao jogo em alta velocidade e jogando em câmera lenta.

 

Pelé tinha a intuição de como o espaço se configuraria no instante seguinte, e assim construía a jogada não para a situação presente, mas para a situação futura, sabendo antes onde todos estariam dali a pouco. Além do drible, dominava também a finta, a forma mais bonita do engano, na qual a bola fica onde sempre esteve e é o corpo que sugere o movimento que não fará, levando o adversário a correr para o lado onde encontrará apenas o vazio, ninguém.

A finta é questão de espaço – sugere que o caminho é por aqui, quando na verdade será por lá. Pelé também era capaz de fazer o diabo com o tempo. Um dos seus movimentos mais típicos era abrir o compasso das pernas, deixando a bola no centro delas, enquanto os defensores, como uma matilha de lobos, se aproximavam de todos os lados, prontos para o bote. Pelé então inclina o corpo, anunciando a arrancada – que não vem. A perna de controle – que pode ser a direita ou a esquerda, pois ele tinha as duas – se aproxima da bola, mas nada faz, vibra apenas, afirma a potência sem entregar o ato. É como um respiro no tempo, uma pausa – uma pausa não, uma suspensão. Lembra a fermata musical, aquele momento em que, na tensão crescente, a orquestra interrompe a música e produz um hiato – o silêncio antes da resolução. Pelé faz isso com o jogo. Os outros 21 jogadores, talvez hipnotizados, talvez com medo de tomar a decisão errada, são forçados a parar, como se num tableau vivant. Tudo é interrompido e reorganizado segundo o desejo de Pelé. Ele faz com o tempo e o espaço o que a gente faz com um chiclete: comprime, expande, estica, aperta.

 

Rory Smith, repórter de futebol do NYT, reproduziu no jornal algumas histórias de jogadores que receberam a tarefa de enfrentar Pelé. “Nós pulamos juntos para cabecear a bola”, disse o zagueiro italiano Giacinto Facchetti, “eu era mais alto, saltava mais. Quando pisei de volta no chão, olhei espantado para o alto e Pelé continuava lá, cabeceando a bola. Era como se ele conseguisse ficar em suspensão pelo tempo que quisesse.” Tarcisio Burgnich, companheiro de Facchetti, sintetizou: “Tentei me convencer de que ele era de carne e osso como todo mundo. Eu estava errado.” O goleiro Costa Pereira cruzou o caminho de Pelé numa final entre o seu Benfica, campeão europeu, e o Santos, campeão sul-americano . “Entrei em campo esperando parar um grande homem”, contaria depois. “Deixei o campo convencido de que fui superado por alguém que não tinha nascido neste planeta como o resto de nós.”

 

Então, foi isso o que se perdeu, e a constatação dessa perda, da sua dimensão, foi o que tirou o sono na noite de ano-novo?

Não exatamente.

“E mais uma coisa”, escreveu o amigo n.3: “Deve ser [a soma de] tudo o mais que acontece neste país atrapalhado, mas o Pelé ter desaparecido me dá uma tristeza… Não pensei que fosse ficar assim. Mas fiquei.” Ao que respondeu o amigo n. 4, o último deste relato: “Não desapareceu, não, reapareceu (e apareceu) para os olhos de milhões. O fio que o João mandou” – eu circulara o tuíte mandado pelo amigo n.1 – “é impressionante.” O amigo n. 4 estava certo: a chave é esse reaparecimento de Pelé.

 

Tom Jobim dizia que o Brasil amava Garrincha, mas precisava aprender a amar Pelé. De fato, gostar de Garrincha é mais fácil. Garrincha é trágico, foi explorado em vida e morreu precocemente, bêbado e triste. Garrincha não desafia quem o admira. Foi imenso durante certo tempo, mas voltou para o nosso plano e terminou na nossa escala. Essa queda permite que seja amado com piedade, esse sentimento essencialmente hierárquico em que o piedoso olha do alto para o objeto de sua compaixão. Compadecer-se da dor de Garrincha faz bem à autoimagem. Estamos do lado de quem sofre, somos boas almas.

 

Amar Pelé foi sempre mais difícil. Pelé jamais caiu. Ao contrário, subiu, subiu e lá ficou. É uma altura que oprime. Sendo impossível não gostar do jogador, o homem se tornou o alvo. Edson Arantes do Nascimento, o inocente útil que serviu aos interesses da ditadura; a celebridade ingênua que, sem falar de política, pedia que o Brasil cuidasse das crianças nas ruas. (Na época parecia demagogia, mas, como escreveu Paulo César Vasconcelos no Globo, “o tempo passou, e os bisnetos daquelas crianças continuam nas ruas”.) Pelé era mais admirado do que amado.

Mas aí é que está. Como observou o amigo n. 4, nos dias que se seguiram à morte de Pelé, nos demos conta não do que desapareceu, mas do que nos foi presenteado. A suprema beleza do que ele fez em campo, a alegria que deriva dessa beleza, isso é nosso, nos pertence. Por causa dele, o Brasil se tornou a referência máxima do esporte mais popular do mundo. Um dos nossos dominou o jogo como nenhum outro. Uma supremacia que não se assenta em armas ou truculência, mas em brincadeira e graça.

Sempre foi esse o seu dom, e, como lembrou Wisnik no NYT, nada disso estava desconectado do Brasil: “Já se disse que um gol de Pelé, uma curva arquitetônica de Oscar Niemeyer e uma canção de Tom Jobim cantada por João Gilberto soavam então como ‘promessa de felicidade’, da parte de um exótico país marginal que parecia oferecer ao mundo a passagem leve e profunda da linguagem popular à arte moderna sem arcar com os custos da Revolução Industrial.”

 

Esses dias mostraram o que já parecia esquecido: que o Brasil é capaz disso.

 

E que a reaparição fulgurante do seu legado tenha se dado quase simultaneamente a este outro evento – a fuga, a bordo de um avião da FAB, do que o Brasil tem de pior – iluminou, com uma clareza que chega a cegar, aquilo que ainda podemos ser e aquilo que precisamos desesperadamente evitar.

 

Pelé promete, sim, essa felicidade que ainda nos cabe cumprir. Nada está dado, tudo ainda é possível. É uma constatação que acelera o pulso, que causa euforia e explica uma noite de insônia durante a qual, de olhos fechados, alguém, num quarto escuro, com festa do lado de fora, compreende que Pelé é mesmo tudo o que dizem e conclui que, se ele é daqui, se foi um dos nossos, então o Brasil jamais estará perdido”.

Perseguição no Costa Rios

Em meio aos gritos do meu parceiro com o trabuco na mão, eu podia sentir o roçar do cano do 38, ora na minha orelha, ora nos meus cabelos!

Era uma ensolarada manhã de outono. Subia eu a Avenida Prefeito Olavo Gomes de Oliveira, quando na curva do japonês o tirocínio policial disparou!… Defronte o Posto Pantanal descia um sujeito de bicicleta! Ao avistar o golzinho preto & branco dos ‘zomi’, o sujeito que vinha na banguela puxou a aba do chapelão de palha na cara tentando esconder o rosto. Meu parceiro, com poucos meses de polícia e seu sotaque paulistano, nem se deu conta do ‘detalhe’. Mas eu, polícia ‘véio’, notei o gesto discreto do chapeludo e mantive os olhos grudados nele. Quando passou por nós ele deu uma discreta olhadinha… para conferir se estavam procurando por ele ou, talvez, apenas para ver se eram policiais conhecidos! Diminuí a marcha e continuei com os olhos grudados no chapeludo… Pelo retrovisor! Metros abaixo, defronte o Vinícius Meyer, ele deu uma discreta olhada para trás! Estava devendo!!!

Antes que ele virasse a próxima esquina para entrar no Costa Rios, eu invadi a pista contrária, passei pela borda do posto do Armando e desci de volta em direção ao Aterrado! O chapeludo entrou na primeira esquina! Eu entrei na segunda… Mesmo assim, apesar de estar pedalando, ele tinha vasta dianteira e saiu na minha frente na esquina da primeira rua do Costa Rios paralela à Avenida do Aterrado! Emparelhei com ele.

O que aconteceu nos minutos seguintes eu nunca soube definir se foi cômico ou se foi trágico! Quando virei a viatura cantando pneu e iniciei a perseguição, naturalmente comentei com o novato, que se tratava de um suspeito em potencial… A sacolinha que ele levava presa ao guidão da bicicleta na mão esquerda poderia ser um tijolo de ‘erva marvada’, um quilo de ‘pedra bege fedorenta’ ou ‘farinha do capeta’, ou outra rés furtiva qualquer! Ou então o chapeludo era fugitivo! Por isso, tão logo iniciamos a perseguição, meu parceiro empunhou o trezoitão.

Quando me aproximei, o fujão da bicicleta optou pela minha esquerda… Aí é que morava o perigo!…

Enquanto eu tentava ‘fechar’ o ‘biker’ fujão, meu ‘parça’ gritava histericamente com seu sotaque paulistano:

– Para mano! Porra meu, não tá vendo que é cana, caralho!… Para senão eu vou atirar, meu! Porra, mano!

Em outra circunstância eu teria dado gargalhadas do palavreado do meu parceiro, mas naquele momento não tinha graça…

Enquanto berrava ordens, como se estivesse numa ruela centenária da Mooca, o detetive ‘grão’ sacudia sem parar o trabuco na direção do suspeito! O problema é que entre o trabuco e o fujão… estava eu ao volante! Mais precisamente minha vasta cabeleira começando ganhar tons de cinza!

Enquanto ouvia:

– “Porra meu, tá maluco mano! Eu vou atirar caralho”… – Eu podia sentir o roçar do cano do 38 niquelado ora na minha orelha, ora nos meus cabelos!

O clímax da perseguição aconteceu na penúltima esquina do bairro antes de virar para entrar no Aterrado pela porta dos fundos! Quando ele vacilou para entrar à esquerda eu encostei o para-choque do gol na traseira da bicicleta e o joguei ao chão!

Neste momento o novato quase se apoiou no meu ombro com o revolver encostado no meu peito para alvejar o fujão! Se ele puxasse o gatilho, pelo menos meu bigode ficaria chamuscado!

Transeuntes, aposentados, ciclistas pararam para assistir o imbróglio! Muitas donas de casa deixaram o feijão queimar naquela manhã! Mas tinham que satisfazer a curiosidade! Uma bicicleta meio amassada debaixo de uma viatura policial; uma sacolinha branca caída ao lado; toda aquela gritaria do policial num linguajar que mais parecia o de outro bandido, valiam ‘ingresso’!

– Porra, meu, não respeita polícia não, caralho? Vou atirar, maluco… Vai parar ou não?

Parou!

Não de medo das ameaças do policial ‘mano’, mas parou! Parou dois quarteirões depois, quando eu coloquei uma das mãos suadas na sua camisa! Meu parceiro do ‘caralho’, ainda com a porra da ordem na boca, chegou nos segundos seguintes.

Eu não o conhecia. Quando saí de Pouso Alegre na década de 80 as figurinhas do meu álbum eram Carlinhos Blau-Blau, Cirilo Bola Sete, Ailton Franklin e outros. Mas a julgar pela recusa da minha carona e desobediência às ordens da porra do meu parceiro, certamente era figurinha fácil no álbum da polícia! Quem dá um pinote dos ‘zomi’ como o diabo foge da cruz, não deve apenas um quilo de asinhas de frango ou uma magrela velha!

Ao consultar nosso ‘álbum’ de fichas amarelas – aquele mesmo que havia sido montado pelos colegas Ângelo e Décio nos anos 70 – com propaganda do “Hotel Lydia” no rodapé – não tardou aparecer a foto de um sujeito moreno, olhos negros, cabelos espandongados com o nome “Cristiano Dias”! Sua capivara incluía furtos, roubos e tentativas de homicídio, cujas penas somadas lhe garantiriam décadas de hospedagem gratuita no Hotel do Contribuinte. Estava ‘pedido’!

Cristiano, no entanto, não chegou a criar raízes no Hotel do Juquinha. Naquele mesmo ano sua gorda capivara no arquivo da polícia recebeu uma tosca cruz feita manualmente com pincel atômico vermelho!… Estava encerrada sua carreira criminosa!

Meu ex-‘parça’, “paulistano da Mooca, meu”, nunca aprendeu o ‘mineirês’ – e outros valores básicos inerentes à ingrata, porém honrada profissão policial. Ele também não criou raízes do lado de cá da lei…

Mas essa já é outra história!

 

*** Essa história completa, com o título “Um ‘puta’ bandido e um ‘porra’ policial”, começa na página 355 do livro “Quem matou o suicida”.

Um tiro à sangue frio!

      O motivo demoraria alguns anos para ser compreendido…

A pantera negra deslizava suavemente pelo asfalto quente da rodovia naquele início de tarde. De repente meu pequeno passageiro, que parecia cochilar, acordou o assunto que dormia há quase uma semana.

– Você pode contar agora a história do seu vizinho, aquele que evoluiu em relação aos cães igual ao Osvaldo – perguntou ele voltando ao assunto interrompido na chegada à Pouso Alegre na semana anterior.

– Hein… Ah sim, posso. Mas tenho de avisá-lo que a história, apesar de … instrutiva, é um tanto triste! Está preparado para ouvir?

Daniel se ajeitou bem no banco e fez uma carinha dramática antes de responder.

– Eu estou com onze anos. Já aprendi que a roseira, além de rosas, também tem espinhos.

Olhei surpreso para meu filho. Surpreso com sua citação filosófica, embora soasse como frase feita! Mas nada comentei. Entrei direto na história antes aludida.

– Bem, filho… essa história eu vivenciei quando eu era pequeno… Acho que eu tinha a sua idade. Como eu te falei antes, a relação do homem com seus cães, naquele tempo, era apenas de serventia… O cão não podia ‘trazer problemas’ para o seu dono. Se isso acontecesse, o cão perdia o ‘emprego’ e, não raro… a vida!

Daniel olhou rápido para mim, mas nada disse. Continuei.

– Briosa era o nome da nossa heroína. Ela pertencia a um sisudo sitiante com o qual eu avizinhei na infância, quando ainda usava calça curta e cortava o cabelo na ‘cabaça’. Briosa teve a infelicidade de nascer no século passado, bem lá atrás! – fiz uma pequena pausa para ultrapassar uma fila de carretas na subida. Tão logo a pista clareou à minha frente retomei a narrativa.

– Como eu disse antes, a importância e afinidade dos ‘pets’ na vida das pessoas é coisa recente, coisa do século XXI, resultado natural da evolução da espécie humana. Até poucas décadas atrás os cães só tinham uma utilidade: servir ao homem, especialmente na zona rural. O cão servia apenas para vigiar o quintal, espantar bichos à noite, tanger o gado… A única recompensa por estes serviços eram duas refeições diárias – restos de comida colocada numa tigela velha ou na tampa da marmita na roça. Os cães de hoje têm nomes pomposos e pertencem ao ‘gênero’ ‘pets’! Até o século passado eles pertenciam ao gênero ‘cachorro’… Eram batizados ou rebatizados com os nomes de Lulu, Leão, Bolinha, Briosa, Brilhante, Rajado, Peludo, Pantera, Risonha, de acordo com a aparência, característica ou habito de cada um. Briosa era uma cadelinha do ‘gênero cachorro’. Era malhada de branco e amarelo, pequena, alegre, obediente, acanhada e dedicada ‘recepcionista’… ninguém se aproximava da varanda do seu dono sem ser anunciado por ela! Por isso mesmo era muito querida pela família. Tinha grande serventia no sítio… desde que não levasse ‘problemas’ para casa! Não podia correr atrás de galinhas – a menos que o dono quisesse encantoar a galinha para pegá-la -, não podia comer ovo no ninho, não podia morder visitas ou vizinhos, não podia aumentar a prole…

– O que é prole? – interrompeu meu ouvinte.

– Filhos. Para o seu dono, Briosa não deveria engravidar e ter filhos. Pelo seu porte físico e estilo de vida livre, leve e solta, Briosa teria vivido seguramente uns quinze anos, mas… Cometeu um pecado! Pecado natural e inevitável a toda espécie animal: entrou no cio! Nesse dia ela selou seu destino.

Daniel franziu a testa e fixou os olhos em mim. Continuei, agora com um toque de mistério.

– Como a maioria dos cães da roça, Briosa costumava acompanhar seu dono na lida no pasto, na lavoura. O dono não precisava dar nenhuma ordem. Bastava se afastar do quintal que a cadelinha seguia atras dele… às vezes na frente. Naquela manhã, ao sair para cuidar da lavoura junto com seus filhos imberbes, meu vizinho levou dois objetos estranhos à rotina: um pedaço de corda de pouco mais de um metro e a velha espingarda cartucheira. Alheia aos objetos estranhos e sua utilidade, Briosa seguiu tranquila ao lado dos donos, ora na frente, ora ao lado, ora atras, ora espantando um passarinho ou simplesmente sorrindo com a língua pra fora atendendo um chamado ou assovio dos meninos.

Meu ouvinte registrava cada palavra que ouvia. Atento.

– Ao chegar ao local da lida, não muito distante da moradia, meu vizinho passou a cordinha no pescoço da cadelinha, amarrou a outra ponta no pé de um arbusto numa elevação do terreno, retirou a espingarda do ombro, aproximou o cano a pouco mais de um metro da cabeça dela, fez mira!…

Daniel engoliu em seco. Mas não abriu a boca para não interromper a narrativa.

– Briosa, com a língua de fora, ainda arfante do esforço para acompanhá-los, ficou olhando curiosa para o cano escuro da espingarda, tentando adivinhar que tipo de brincadeira nova era aquela. O indicador da mão direita do dono foi pressionando lentamente o gatilho da espingarda, até que … Buuummmm!

O meu ‘bum’ inevitavelmente saiu com um volume bem mais alto. Daniel deu um pulo na poltrona. E continuou calado, torcendo para que eu não confirmasse o que ele imaginava. Baixei o tom e minimizei o fato.

– Briosa não deve ter ouvido nada. Se ouviu, não compreendeu… Não teve tempo de compreender. Os filhos do sitiante, meninos malungos meus, também de calça curta e cabelos cortados na cabaça, ouviram o estrondo e viram a cena… Mas também não compreenderam!

Meu filho quis fazer perguntas, confirmar o que havia entendido, mas a voz não saiu. Continuei no mesmo tom sutil.

– O restante da manhã seguiu sem incidentes, em silencio. No final do trabalho pai e filhos, a cordinha com alguns respingos de sangue ressecados e a espingarda ainda cheirando à pólvora, voltaram para casa – falei lentamente.

Daniel se remexeu, limpou a garganta, mas antes que as perguntas brotassem eu respondi…

– Briosa ficou lá, rente à cerca da divisa… debaixo de dois palmos de terra!

Meu pequeno passageiro afundou-se na poltrona. Precisava de silencio para acalmar seus sentimentos. Tentei sintonizá-lo com os sentimentos dos meninos que assistiram a cena.

– Levaria alguns anos para os meninos loirinhos entenderem o crime cometido pela cadelinha malhada. Ou o crime seria do seu dono?

Rodamos vários quilômetros de Fernão Dias em completo silencio…

 

* Esse texto é parte integrante de um novo livro que está em fase de revisão.

Um aviso do além!

O estranho telefonema evitou um acidente fatal!

O acidente aconteceu na ultima curva antes de chegar à Barraca do Sineval…

 

Numa morna tarde de inverno qualquer de 97, estava eu quieto no meu canto sentando uma testemunha ao piano no cartório da Delegacia de Silvianópolis, quando o telefone tocou. O único aparelho da DP ficava na recepção. Interrompi minha oitiva e fui até o balcão mas… perdi a pernada! Era um trote! Era um trote do “além”…

Tão logo grudei o aparelho na orelha a pessoa do outro lado começou a falar de maneira assustadora…

– “Vai acontecer um terrííííível acideeennnnteee”!…

A voz, entre infantil e feminina – e cavernosa – parecia estar vindo do fundo de um túmulo… ou de um filme de terror!

A princípio pensei na minha irmã Lucimar. Ela tinha o hábito de imitar voz macabra. Antes que eu fizesse a tradicional pergunta “quem está falando”? a pessoa – pessoa??? – desligou!…

E fiquei só com o cabo do guarda-chuva na mão! Quero dizer, com o aparelho mudo na mão.

Muito atarefado naquele dia – coisa rara para um policial na pacata Silvianópolis – voltei para o cartório e continuei minhas oitivas. Esqueci completamente o macabro … “recado”!

Por volta de seis e meia, já noite escura, fechei a DP, sentei atrás do volante do Fiat Uno GMG 5815 e peguei a estrada de volta para Pouso Alegre. Tão logo entrei na MG 179, lembrei do telefonema misterioso do início da tarde. Dois anos antes, numa destas viagens de volta para casa, no início da descida logo depois da curva do bananal, eu havia capotado meu escortinho cinza. Uma coisa ligou à outra… Ao lembrar do recado e do acidente com meu carro, tirei o pé do acelerador!

Por alguns quilômetros segui segurando firme no volante e pensando no estranho telefonema de horas antes…

Quem teria feito aquela brincadeira?

Por que a pessoa não continuou falando?

A única resposta que ouvi foi o ronco rouco do motor da surrada viatura policial cortando o silencio da estrada deserta. Esqueci novamente o incidente e voltei a conversar comigo mesmo, pensando apenas “na morte da cabritinha”. Passei pelo Santo Amaro, pela barraca deserta da “Donana”, dobrei a subida da pedra e comecei a descer as três curvas que desaguam na ‘Mina do Sineval’.

Quando me aproximei da última curva antes da mina, o ‘aviso macabro’ da tarde se materializou!!! De repente eu me vi diante do “terrrrriiiiiiveeelll acideeeennnte”!

No meio da curva, uma boiada inteira surgiu na minha frente!!!

Na verdade, uma ‘vacada’! Eram umas dez ou doze novilhas e vacas crioulas pretas e malhadas descendo a trote lento pela contramão da estrada!

Assustadas ou orientadas pelo farol da viatura, exatamente no meio da curva as ruminantes resolveram pegar o atalho! Com o QI próprio dos bovinos, as reses invadiram a pista e atravessaram a trote a pista de rolamento na minha frente…

Gritei, freiei, xinguei, chamei uns seis ou sete santos, dancei na pista, desviei o quanto pude, mas… a última não teve jeito!

Já saindo para o acostamento à minha direita, atropelei a retardada, desculpe, a retardatária!

Com o baque a novilha preta foi atirada no mato do acostamento, deu uma cambalhota, levantou-se, tentou engatar um trote atrás das outras, mas… as pernas bambearam! No terceiro passo desengonçado a pobre res capotou na beira da estrada e ali ficou estirada…

Em situação parecida ficou meu surrado Uno preto & branco, porém sobre as quatro rodas! Consegui evitar um acidente fatal, no entanto a viatura não mais se mexeu. Ficou ali, amassada, embicada, com o radiador furado, sangrando na beira da pista escura.

A viçosa e imprudente novilha crioula, com suas gordas e suculentas picanhas, não teve a mesma sorte. Uma hora depois de cruzar a trote o meu caminho, ela se despediu do mundo cruel. O mesmo guincheiro que rebocou o Uno inerte da PC para a oficina, sangrou a novilha que agonizava na beira da pista. Sangrou, esquartejou e levou para casa. Até onde eu soube, ele comeu churrasco por minha conta durante várias semanas!

Enquanto seguia de carona para Pouso Alegre, o telefonema cavernoso do meio da tarde voltou a bailar na minha memória. Graças ao ‘recado do além’ eu fiquei mais atento, tirei o pé, e consegui evitar o “terrrriiiiivveeelll acideeennnnte”!

O “Mestiço” da Rua do Queima

Vinte e sete anos de trabalho… e aventuras perigosas! O “Mestiço” faz parte delas…!

Aquela manhã de 06 de setembro era a quarta vez que Fidélio me recebia para o café da manhã – que, por causa da pressa, era servido sempre no quarto!

A primeira vez ele chegou a abrir a janela para pular, mas, vendo que cairia nos meus braços, preferiu ficar quietinho no cantinho da parede, atrás da janela.

Na segunda vez foi pego com a calça – literalmente – na mão tentando vesti-la…

Na terceira quem viveu alguns segundos de suspense e medo foi eu… Ao abrir a janelinha deparei com o quarto na penumbra, em silencio, quase arrumadinho. Sobre a cama havia dois vultos envoltos na coberta! Pensei com meus botões:

– “Será que é ‘pegadinha’”!?

Com o cano frio do trezoitão niquelado, coração batendo acelerado, em suspense, sem piscar, levantei lentamente o edredon e… Surpresa!!! Lá estava Fidelio! Encolhido, com cara de ressaca!…

Sem abrir a boca – ele era mesmo de pouca prosa, ainda mais quando subjugado! – deve ter praguejado: “PQP Chips, me dá sossego! Me deixa dormir em paz”…

Das vezes anteriores, embora não tenha tido tempo de saltar a janela e vazar pelos fundos do quintal para dobrar a serra do cajuru e se enfurnar na mata ciliar do Rio Sapucaí do outro lado da rua, ele pelo menos teve tempo de acordar… por causa do latido dos vira-latas! Eram três. Havia um pardo e um malhadinho, pequenos, que latiam ardido durante todo o tempo de nossas visitas, visitas que nunca passavam de dois ou três minutos. Nenhum deles nos faria mal. Mas havia um vira-latas de porte médio, mestiço, ‘fisionomia’ de Pitt Bull, pelagem de Pastor Alemão e biotipo de Pastor de Mallinóis, mais ou menos, que inspirava cuidados. Toda vez que eu pulava o muro amanhecendo o dia ele vinha me cumprimentar com a boca aberta exibindo seu melhor sorriso cheio de dentes alvos! Ele mostrava os dentes e eu mostrava o trabuco niquelado com seis azeitonas, e seguia avançando pela varanda rapidamente em direção à janela do último quarto da casinha amarela. Com um olho nele e outro na janela…

Agora estava eu ali novamente para a ultima “operação café da manha” da carreira policial. Cheguei com o motor do Palio já desligado e parei na frente da casa simples da Rua do Queima. O silencio era mortal. Tudo tinha que ser rápido e silencioso! Além do trinta e oito especial niquelado, cabo de madeira que eu levava com o dedo no gatilho eu contava com a mais poderosa das armas: a surpresa! Era necessário surpreender o meliante ainda nos braços de Morfeu! Saltei da viatura, fechei a porta sem bater, dei uma rápida espiadela pela greta do portão, subi no muro e saltei para dentro do quintal. Que azar!!!

Caí quase em cima do meu velho amigo de dentes alvos! Mestiço estava dormindo há pouco mais de um metro do muro! De repente eu me vi ali cara a cara com meu velho amigo de genética indefinida. Cara a cara mesmo!!!

Quando ele, com o susto e um grito, se pôs de pé, e eu me abaixei com a flexão das pernas para amortecer a queda do muro, nos vimos a poucos centímetros do focinho um do outro… Dava para sentir o hálito quente de dentes sem escovar um do outro!

Mestiço não sabia o que fazer. Durante um segundo ou dois ele ficou ali jogando saliva quente na minha cara, pensando se corria ou se me enchia de abraços e beijos ardentes… e rascantes!

A distância entre nós era mínima. Mais perto ainda da sua cara estava o cano frio do trezoitão niquelado… Para evitar que o segundo salto do mestiço fosse sobre mim, só havia uma coisa que eu podia fazer! E fiz!… apertei o gatilho do trezoitão!!!

 

Estes e outros fatos estão na crônica “O ultimo dia do policial, no meu segundo livro “Quem matou o suicida”  [email protected]

“Os Fantasmas do Velho Hotel… “

Construída em 1932, a velha cadeia testemunhou infindáveis, maquiavélicas e fantasmagóricas histórias. Desativado em 2009, o carcomido prédio ainda abriga em seus sombrios corredores muitos… ‘fantasmas’!

“Pedro Louco” é um deles!

      Pedro Louco protagonizou um dos fatos mais marcantes da história do Velho Hotel da Silvestre Ferraz. O fato aconteceu nos idos de 1970, no tempo em que puxar cadeia ainda era vergonhoso, mas de certa forma era também bucólico, romântico e principalmente educativo!

     Pedro Louco não era bandido. Ao contrário, era um sujeito honesto, trabalhador e honrado. Honra daquelas que se lava com sangue. Certa vez um conhecido caminhoneiro, aproveitando sua ausência, passou uma ‘cantada’ na sua esposa, na borracharia onde ela o ajudava. Ao tomar conhecimento da ofensa, Pedro Louco pegou seu trabuco e foi atrás do caminhoneiro abusado. A honra foi lavada na subida da serra de Ipuiuna. Desde então Pedro Louco tornou-se hóspede do Velho Hotel da Silvestre Ferraz.

     Com menos de trinta hóspedes no velho hotel naquela década, gozando do privilégio de preso ‘cela livre’, após distribuir os ‘bandecos’ e varrer os corredores, Pedro Louco descia para a delegacia, onde também fazia limpeza. De lá, eventualmente, dobrava a esquina e se dirigia ao bar do Vaguinho Dorigatti na Com. Jose Garcia, para abraçar a estonteante “Severina do Popote”. Ia e voltava sempre acompanhado de um detetive… que também gostava do famigerado suco de gerereba com torresmo!

Numa tardinha fresca de 78, quando Pedro Louco saía do bar do Vaguinho ao lado de um detetive, um irmão do caminhoneiro se aproximou sorrateiro e, sem alarde, descarregou o trabuco na cabeça do borracheiro! A fumaça dos tiros entrou pelas narinas do detetive antes que ele esboçasse qualquer reação.

Cumprida a vingança pela morte do irmão, o assassino entregou a arma ainda fumegante ao detetive e foi ocupar o lugar de Pedro Louco no Velho Hotel da Silvestre Ferraz!

 

* Pedro Louco é apenas um dos “Fantasmas do Velho Hotel da Silvestre Ferraz”.

No livro “Quem matou o suicida” há muitos outros”!

… Mariana, mãe do nóia JC

 

(Imagem ilustrativa)

“De repente a campainha do telefone arrancou Mariana dos seus pensamentos. Levou um susto. Era tudo que esperava! Um telefonema, de algum lugar, com alguma notícia! Podia ser de qualquer lugar. Desde que fosse a respeito do filho. Da varanda até a estante onde estava o aparelho não gastou três segundos! Pegou o aparelho e o apertou junto à orelha…

– Aê dona, seguinte… Seu filho tá agarrado aqui no muquifo, cheio de pedra. Se você não pagar o que ele me deve dentro de uma hora, vou encher ele de furo, tá ligado?

– Como é que é? Não entendi… meu filho… – tentou argumentar Mariana, mas foi interrompida pelo interlocutor com a voz ainda mais tenebrosa e incisiva:

– Seguinte dona, ‘prestenção’ que só vou falar uma vez… Faz dois dias que o vacilão do seu filho está aqui na baixada queimando a pedra. Conheço ele. Sei que ele não para, não. O nóia tá me devendo trezentas pratas! Se essa grana não estiver aqui dentro de uma hora, vou fazer picadinho dele, tá entendendo?

Mariana sentiu um filete de gelo escorrer pela espinha. Na verdade, quando o traficante falou atabalhoado pela primeira vez, ela já havia entendido. Já ouvira aquelas ameaças e cobranças outras vezes. Era sempre o marido quem ia buscar o filho na sarjeta, mas era ela quem atendia o telefone. Não tinha trezentos reais na carteira. Aliás, há muito não deixava dinheiro na carteira! Enquanto ouvia as ameaças do traficante ia pensando no que fazer. Teve ímpetos de mandar o traficante catar coquinhos, de dizer que não estava nem aí para suas ameaças, que não importava mais com o filho. Teve vontade de simplesmente desligar o telefone e ver no que dava. Afastou o aparelho do ouvido, olhou para ele com desprezo e ódio e o depositou placidamente no gancho, sem dizer uma palavra. Sentou-se muda no sofá. Sentiu um certo torpor.

… Viu o menino franzino balbuciar desajeitadamente o ‘mãmã’ com pouco mais de um ano.

… Viu o filhinho com a roupinha humilde, mas limpa, acenando para ela na porta da escola no primeiro dia de aula.

… Ouviu a voz eufórica do filho falando dos novos amigos da escolinha… Viu o garoto adolescente, sorrateiro, tentando esconder o boletim escolar cheio de anotações em vermelho…

… Viu o menino sair de casa tantas vezes bem arrumado, usando bermuda, camiseta e tênis novos, perfumado…

… Viu o filho tantas vezes chegar a casa com a roupa suja, rasgada, as vezes a roupa nem era dele, fedendo, às vezes descalço.

… Viu o menino enfurnado no quarto, taciturno, arredio.

… Viu o menino tantas vezes entrar no carro com o pai, levando uma pequena mochila nas mãos, partir para mais uma clínica de recuperação.

… Viu o corpo do menino magro, ossudo, pele empalidecida num caixão tosco na funerária…

… Viu o aparelho telefônico vibrando na estante.

Demorou para ouvir o som do aparelho. Pegou-o e o levou lentamente ao ouvido, muda. Ouviu a mesma voz de antes…

– E aê, tia! Vai deixar o vacilão morrer aqui mermo?

Mariana continuou muda.

– Tá de sacanagem, né tia! Tá de sacanagem que não sabe o que vai acontecer com o seu nóia? – insistiu o traficante já mais exaltado. Escute – disse ele – vou te fazer um favor… Vou levar seu filho aí na porta da tua casa agora. Quando chegar aí quero minha grana. Se não estiver com as trezentas pratas na mão, furo seu garotão aí na sua porta, na sua frente, tá ligado?”

 

 

(Paulinho & Mariana, os pais do nóia JC /“Quem Matou o Suicida” – Airton Chips – primavera de 2020).

 

 [email protected]

 

Tensão na beira do rio

       Se soltasse a corda… morreria o filho! Se não soltasse, morreriam os dois!

“Popota retirou a cápsula vazia e colocou outra intacta no tambor. Girou, esticou o braço, apontou a arma para Renato e lentamente foi movendo o braço e o Taurus na direção de Mateus. A tensão aumentou. Seria mais uma cena de tortura… ou desta vez ele atiraria? – pensou Renato. De repente um novo estampido cortou o espaço espantando um ou outro sabiá que pousava nas frondosas mangueiras. A bala desta vez tinha um alvo. Um alvo indireto, mas tinha um alvo. Atingiu em cheio a perna esquerda traseira da cadeira. Sem uma das pernas a cadeira caiu de costas para trás. Só o impacto da bala talvez não fosse suficiente para derrubá-la do barranco. Mas no susto Mateus deu um salto para trás e caiu do barranco! Desta vez Renato estava acompanhando o alvo e não o movimento do dedo do bandido. Foi providencial! Quase com um só salto desesperado ele agarrou o filho pendurado no barranco! Enquanto tentava desesperadamente trazer a cadeira e o filho, amarrados, de volta, Popota lentamente substituiu o projétil deflagrado por outro, levantou-se do tosco toco, deu três passos adiante, apontou o Taurus para Renato e ordenou:

– Solte a cadeira!

A perna da cadeira não aguentou o peso e se quebrou. Num milésimo de segundo Renato conseguiu segurar a corda que prendia os pés do filho à madeira, mas ele desceu um pouco mais. Agora ele estava totalmente pendurado no barranco. Popota votou a ordenar:

– Solte a corda!

Renato podia sentir o calor do bandido a um metro apontando o revólver para ele. Olhou para baixo, para aquele poço sereno. Nem sinal de Tortuga que havia mergulhado ali minutos antes. Se o filho estivesse livre das amarras talvez tivesse alguma chance. No entanto, preso ao que restava da cadeira velha, teria morte lenta e desesperada se debatendo no fundo do rio, se ele soltasse. Se não soltasse… o bandido mataria os dois!

– Vou falar pela última vez – soou a voz, agora colérica, do psicopata.

Depois silencio total. O filho suspenso apenas pelo braço direito já pesava o dobro. Pode ouvir o leve ranger da mola do gatilho sendo pressionada para trás. Apesar da fé, contraiu os ouvidos para minimizar o estrondo. E o estrondo veio”…

 

Esse pequeno trecho é parte integrante do romance policial de Airton Chips:

“UMA VIAGEM QUE NÃO CHEGOU AO FIM”.

O livro está disponível no site da ‘Editora Dialética’ ou, através do WhatsApp 35 9.9802-3113.

Geraldo… o ‘eremita’ de Corinto

     Há anos ele dorme numa caixa de papelão sob uma marquise e passa os dias nas imediações da sua ‘casa’!

Depois de ficar ao menos sete meses com o mesmo traje, de agosto para cá, ele já trocou de roupa três vezes!

Desde o dia em que mudei para meu novo endereço no São Luis, notei sua figura silenciosa e taciturna sob a marquise do deposito da transportadora. Ele estava sentado sobre um ‘puf’ de papelão e tinha ao lado, devidamente dobrados e empilhados, um tufo comprido de mais papelão. A princípio achei que ele fosse um dos funcionários da empresa, embora usasse uma roupa diferente dos demais. Podia ser um ‘chapa’, um daqueles serviçais contratados para serviços pesados esporádicos! A impressão se reforçou à noite, quando tornei a passar por ali e ele estava sentado no mesmo puf, fumando seu cigarrinho. Pensei com meus botões:

– “Além de chapa, ele deve fazer ‘bico’ de vigia do deposito”!

Nos dias seguintes, a caminho da escola, passei a nota-lo de manhãzinha mexendo nalguns cestos de lixo, dois quarteirões abaixo na mesma rua. Voltei a confabular com meus botões:

– “Ele deve morar no porão de uma dessas casas por aqui. Deve estar colocando o lixo para fora”!

Era começo de fevereiro, dias de chuva na região da Pampulha. Durante o dia, o sujeito desaparecia. No início da noite lá estava ele solitário, pitando novamente na porta da transportadora.

O período chuvoso durou pouco. São Pedro foi econômico na região em 2022. No meio de março as chuvas já haviam saído de férias. Bom para o meu personagem, que passou a circular de novo nas imediações… e se tornou mais visível.

Com a chegada precoce da seca, meu ‘observado’ passou a desfilar discreta e lentamente diante dos meus olhos todos os dias. Foi aí que eu me dei conta: ele não trabalhava no deposito da transportadora, nem de chapa e nem de vigia. Na verdade ele ‘mora’ ali na porta. Depois de espantar os pernilongos com a fumaça do seu cigarrinho, ele arma sua cama de papelão e dorme ainda noite criança… E se levanta com o cantar do galo do ‘seu’ Jorge, na outra ponta do quarteirão. A comprida caixa de papelão que serve de cama, serve também de canastra ou cômoda para guardar seus lençóis, travesseiros e cobertores. Desfaz a cama, dobra tudo, empilha num canto da porta da transportadora e vai para a lida.

Seus movimentos começam justamente na subida da rua, onde mexe num cesto de lixo aqui, outro acolá em busca do desjejum. Mas não tarda aparece alguém,  ainda de pijama, num portão com um pão e um copo de café. Mesmo saciado ele ainda busca alguma coisa nos cestos de lixo, pois, para o vício do tabaco não existe muitas almas bondosas.

O descanso da sua árdua labuta do dia a dia acontece no mesmo trecho onde ele toma o desjejum. Senta, fuma o cigarrinho, traça uma marmita, as vezes deita-se no chão forrado de papelão e assim passa boa parte do dia descansando na sombra das frondosas mangueiras ao lado de um grande muro sem construção. Sua rotina se resume a circular por ali, quase sempre na mesma rua em que ‘mora’. Como diria meu saudoso amigo, detetive ‘Pinguim’: “sem nem um passarinho para tratar”! Vida melhor não há.

À noite os papelões viram cama…

Mas, e a higiene pessoal, a troca de roupa…

Desde que concluí que meu vizinho é um morador de rua, passei a observá-lo mais atentamente. Não foi difícil perceber que ele usa sempre o mesmo traje. Calça de brim cor de cimento queimado, camisa de pequenas listras claras, boné de uma firma qualquer, botina de cano alto na cor da calça e, invariavelmente – faça chuva ou faça sol – uma jaqueta grande, caqui, pendendo também para o cimento verde. Parece quase um uniforme. De fevereiro, quando o conheci, até meados de agosto, ele trajou sempre o mesmo ‘conjunto’!

Sociabilidade?

Zero.

Das poucas vezes que passo por ele à pé ou pedalando, estendo-lhe o tradicional bom dia belorizontino. As vezes ele responde com um grunhido rouco, desatento ou medroso. Na maioria das vezes responde com o silencio. Até o momento não o vi trocar uma palavra com ninguém!

Outro dia, sensibilizado com a performance da pobre criatura, ao voltar de uma caminhada, resolvi investigar a vida do meu vizinho e, quem sabe, interferir na vida dele. Abordei seus vizinhos mais próximos: os funcionários da transportadora em cuja porta ele ‘mora’!

– Rapais, mexe c’ele não, sô! Seu Geraldo tá bem assim. Ele num precisa de nada não – disse o gerente da firma gastando seu peculiar belorizontez.

– Segundo os vizinhos, tem uns 15 anos que ele tá aqui no bairro. Só aqui na porta do deposito tem uns 3 anos que ele dorme. Desde que eu vim trabalhar aqui ele já dormia aí! – corroborou o auxiliar do gerente.

– Ele está com a mesma roupa desde fevereiro… – tentei esticar a conversa.

– Tá? A gente já se acostumou tanto que nem repara mais…

– E banho? Eu moro no fim da rua. Tenho banheiro externo… eu poderia…

– Ih moço, seu Geraldo não liga pra banho não sô. Eu tenho chuveiro aqui no deposito, para os funcionários… Já ofereci, mas ele não quis não. Um tempo atrás eu insisti muito pra ele tomar banho. Ele saiu resmungando e ficou vários dias sem aparecer aqui… – interpelou o gerente.

– E comida…

– Comida sobra. Tem dia que ele ganha umas três marmitas na mesma hora.

– Vocês têm informação sobre a procedência dele? Saúde mental…

– Parece que ele é de Corinto (norte de Minas). Ouvi dizer que ele tem até casa lá – informou o gerente.

– Além de comida e banho, sabem se alguém tentou tirá-lo da rua?

– Tempos atras o pessoal da Assistência Social esteve aí, queriam levar ele… Ele não quis não – respondeu o secretário.

Eu imaginava que minha investigação redundaria nisso.

São mais de 40 anos esbarrando na rua em pessoas com perfil parecido. Esbarrando e observando…

Das minhas observações, posso concluir que os moradores de rua hoje, pertencem a três grupos.

A – ‘Loucos de todo gênero’.

B – Desajustado familiar.

C – Egressos do sistema prisional.

Os loucos não têm noção de higiene, de vida organizada em grupo familiar ou grupo social e nem obrigações pessoais. Essa é uma condição natural. A pessoa já nasce com esse ‘dom’! E não tem conserto… só vai mudar quando parar de respirar!

O desajustado é aquele que, embora tenha conciência, discernimento dos seus direitos e deveres, ele não se sujeita as regras e obrigações no seio da família. Prefere viver na rua, sem dar satisfação a ninguém dos seus atos. Neste perfil se enquadram também as pessoas que desacorçoaram diante das dificuldades da vida – muitas vezes chefes de família já maduros – e foram pra a rua pra fugir dos problemas.

O terceiro e mais numeroso grupo, é o dos egressos do sistema prisional. Geralmente são pessoas que começaram cedo no crime. Não aprenderam a trabalhar. Acostumados com o ócio nas cadeias, não valorizam o trabalho. Some-se a isso a discriminação social pela condição de egresso da prisão, o que é natural. Afinal, em todo país subdesenvolvido, há milhares de pessoas com ficha limpa procurando emprego. Enfraquecidos pelo vício das drogas, pouquíssimos conseguem se inserir no mercado de trabalho. Quase a sua totalidade está nos semáforos das médias e grandes cidades fazendo malabarismos e tentando sujar os para-brisas dos carros que passam em troca de uma moeda. Não raro estão cometendo pequenos delitos para sobreviver.

Com o advento do Crack – a droga mais viciante e barata do mercado – em meados dos anos 90, os egressos do sistema prisional quintuplicaram nas duas últimas duas décadas… E não dá sinais de parar por aí! Portanto, não esperem que os semáforos se esvaziem!

Mas o que essa definição de morador de rua tem a ver com o nosso pacato Geraldo do bairro São Luís?

Nada. Até onde as investigações me conduziram, o ‘ermitão urbano’ de Corinto tem um único vicio: o tabaco. E ele não incomoda ninguém… Pelo contrário. Ele não quer nenhum tipo de relacionamento com ninguém. E se afasta de fininho para não ser incomodado!

Desisti de interferir na vida do Geraldo…

Mas não desisti de pensar nele!

É quase impossível mergulhar debaixo de um lençol limpo, cheiroso, numa cama macia, espaçosa e não lembrar de Deus…

… E não lembrar de Geraldo!