O caseiro saiu do Pará, no extremo Norte do Brasil, para trabalhar de caseiro em Concepción, no sul do Chile. Viajou 7 dias de ônibus e ao chegar à rodoviária foi assaltado. Passou 50 dias dormindo na rodoviária de Santiago à espera de uma passagem de volta para o Brasil. Tudo isso na companhia da esposa… gravida de sete meses!
Estava eu pesando as malas na balança do aeroporto de Santiago, mês passado, quando percebi que um cidadão de camisa amarela olhava atentamente pra mim. Quando retirei o excesso de peso das malas ele disparou:
– Na mala de mão pode levar até quatro garrafas de vinho! Dona Ana falou que pode… minha mulher emprestou a mala dela para levar as garrafas…
Nós já tínhamos esta informação antes mesmo de comprar as garrafas de Casillero Del Diablo na vinícola Concha y Toro, mesmo assim troquei meio centavo de – peso – de prosa com o moço de camisa não oficial da Seleção Brasileira enquanto passava duas garrafas de vinho da mala grande para a de mão, e nos afastamos. Voltamos vinte minutos ao mesmo local, pois era ali, perto da balança, que começava a fila para o check-in. Lá estava o moço da camisa amarela na ponta da fila e foi logo dizendo:
– Podem voltar para os seus lugares… Vocês já estavam aqui antes de mim.
Assumimos a pole-position para o check-in e logo esticamos prosa. Em meio a uma fila toda embolada, tipicamente brasileira, em poucos minutos estávamos andando de norte a sul do Chile, até que o moço da camisa ‘made in Vila Xurupita’ disparou a pergunta básica, aquela que grita para sair da garganta nessas ocasiões:
– O que vocês acharam do Chile?
Enquanto as pessoas mais próximas da ponta da fila limpavam a garganta em busca da resposta, ele mesmo respondeu a pergunta:
– Eu não gostei… Eu fui assaltado logo na chegada!
Ao dizer isso o moço da camisa amarela tornou-se o centro das atenções. Afinal, nenhum de nós havia vivido aventura tão marcante na terra dos Aliende’s, Pinochet’s, e Bachelet’s! O moço da camiseta amarela não desceu para Valparaiso, não conheceu Vina Del Mar, não subiu o Cerro Santa Lucia para venerar ‘Nuestra’ Senhora de La Concepción, não visitou a caverna onde nasceu o mais famoso vinho das Américas, não subiu na Torre Costanera, a mais alta da América Latina, mas conheceu muito bem três ‘cartões postais’ do Chile que ele nunca mais irá esquecer: o hospital, a embaixada brasileira e a estação rodoviária! Aliás, na rodoviária ele ‘morou’ quase dois meses! O moço da camiseta amarela chama-se Marcelo Fabio Santos Freire, tem 39 anos e passou 50 dias no Chile, como um indigente, nestes três lugares.
Ao ouvir a narrativa de Marcelo, achei seu sotaque parecido com o mineirês, lembrando um pouco o nordestino, e não demorou, chegamos a Alenquer, no Pará. Foi lá que ele nasceu e vive há muito tempo numa comunidade indígena.
Foi com sotaque parecido com mineirês e nordestino que o paraense de Alenquer contou sua história, prendendo cada vez mais a atenção de pelo menos uma dúzia de turistas que bagunçaram de vez a fila do check-in para ouvir sua aventura em terras chilenas, mais precisamente na rica, bela e patriótica Santiago Del Chile.
– Eu moro numa comunidade indígena no município de Alenquer. Foi lá que eu conheci o Sr. Cortez, um engenheiro chileno. Ele me convidou para trabalhar de caseiro no seu sitio em Concepción, no sul do Chile. Eu e minha mulher. Ele me deu mil reais adiantados e pagou nossas passagens. Viemos de ônibus direto de Fortaleza para Santiago. A viagem custou quatrocentos reais e durou sete dias.
O silencio aumentou em torno do paraense… e ele continuou.
– Nós tínhamos acabado de desembarcar e seguíamos para a rodoviária arrastando as malas, de noite, quando percebi que minha mulher caiu no chão! Quando virei para socorrê-la, senti uma pancada nas costas. Uma costela está quebrada até hoje. Só no segundo chute foi que me dei conta que estávamos sendo assaltados… Eram três. Eles bateram sem dó, sem dar tempo de reagir. Enquanto dois batiam, o outro passou a mão pela minha cintura e arrancou a pochete. Só queriam a pochete. Não levaram mais nada. Eu é que tive que levar… minha mulher para o hospital. Ela ficou três dias internada no hospital… Mas graças à Deus o bebê não se machucou, apesar dos chutes que ela tomou na barriga! Na pochete que os bandidos levaram estava todo nosso dinheiro, os documentos e o endereço do patrão Cortez, no celular. No dia que minha mulher teve alta no hospital fomos procurar o consulado do Brasil para chegar até o sitio do patrão em Concepción… Mas eles disseram que não podiam fazer nada. Cortez é sobrenome no Chile…
– E aí, o que vocês fizeram…? – atalhou um curioso apreensivo com o desfecho da estória do paraense.
– Eles disseram que dariam as passagens pra nós voltarmos para o Brasil… mas só poderiam liberar as passagens no dia 20 de abril!
– E quando foi isso? – Quis saber outra turista ao lado, com a curiosidade saltando dos olhos castanhos…
– Pois é, nós chegamos no dia 10 de fevereiro e minha esposa ficou três dias no hospital. No dia seguinte nós fomos para o consulado… Antes, o pessoal do hospital fez uma vaquinha pra nós pagarmos o guarda-volumes onde nós deixamos as malas…
– E vocês ficaram hospedados no consulado do Brasil? – questionou outro.
Apesar de estar com os olhos já nodosos e brilhantes, Marcelo conseguiu dar um sorrisinho sarcástico antes de responder…
– Não. Nós ficamos, até ontem, morando na rodoviária…
– Como assim!!! – perguntou Tatiana a meu lado, com as lentes verdes quase saltando dos seus olhos.
– … o consulado nos deu 20 mil pesos e mandou a gente voltar no dia 20 para pegar as passagens…
Ah, bom! Pelo menos o consulado do Brasil deu 20 mil pesos para o casal ‘se virar’ no Chile até o dia da viagem de volta para casa…!
Vinte mil pesos equivalem a R$110 reais! No Chile, a única coisa que existe mais barato é o vinho, seu produto nacional. Os da Concha Y Toro, por exemplo, custam cerca de 40% do que custa no Brasil. O resto tudo é mais caro. Uma camisa oficial do Colo-Colo ou da “U”. custa cerca de 300 reais, ou, 55.000 pesos. Se Marcelo tivesse levado quatro camisas do Brasil ou mesmo do Paysandu para o Chile, teria levado vida de nababo nas sete semanas que passou no Chile! Ou voltado imediatamente. Bastava vender as camisas na moeda local!
– Mas como vocês viveram esses quase dois meses com cento e poucos reais? – perguntou uma jovem noiva que voltava para Goiânia, com o óculos de sol escorregando de indignação dos cabelos lisos loiros.
– Nas marquises da rodoviária sempre passam algumas almas boas, alguns anjos… – respondeu Marcelo, visivelmente emocionado. E emendou:
– O pior não foi isso. O pior é que depois do oitavo mês de gravidez eles não deixam mais a gente viajar de ônibus! A Adriana vai dar a luz no início de maio, mês de Maria. A gente não ia poder viajar de volta para casa…
– E onde está sua esposa? Você vai voltar sem ela?
Agora o sorriso de Marcelo não foi forçado. Foi de emoção, seus olhos brilharam mais do que nunca. Ele não conseguiria segurar por muito mais tempo as lágrimas…
– Então… ontem nós conhecemos um anjo… Estava frio na estação. Minha mulher me mandou vestir uma blusa que estava na mala. Eu tinha até esquecido a blusa, porque é do Corinthians… – ele tirou a blusa da mala e mostrou. Nisso o anjo passou, viu a gente sentado ali no chão, minha mulher gravida e, ao ver a blusa do Corinthians, puxou conversa, perguntando se a gente era do Brasil… Nos contamos nossa historia. O anjo se chama “Ana” e mora em Fortaleza. É uma senhora de setenta e poucos anos. Ela pediu pra gente cuidar da mala pra ela ir ao banheiro. Quando voltou ela nos levou pra jantar. Foi a primeira vez que eu sentei numa mesa de restaurante aqui em Santiago! O anjo de Fortaleza resgatou suas milhas, juntou mais um pouco de dinheiro e comprou as passagens minha e da minha mulher. Mas só tinha um assento. Por isso minha esposa foi com ela essa ontem à noite. Inclusive emprestou a mala de mão dela para dona levar as garrafas de vinho… Eu volto para casa na próxima madrugada… se Deus quiser!
À medida que desfiava seu rosário no Chile, permeado com a fé de que tudo terminaria bem com as graças de N. Senhora de La Concepcion – cuja imagem fincada no cume do Serro Santa Lucia, de onde ele e a esposa Adriana puderam ver apenas de longe -; coroado com a bondade da anjo Ana, as pupilas negras de Marcelo passaram do brilho ao afogamento. Quando o primeiro turista, calado, se adiantou e entregou-lhe uma garrafinha d’agua, e outro também mudo, um pacote de biscoito, seu corpo todo estremeceu… e as lagrimas caíram! Muitas pessoas em volta tiveram que baixar os óculos escuros dos cabelos para esconder os olhos molhados!
Quando a historia parecia ter chegado ao fim, Marcelo disparou:
– Minha filha vai se chamar vai se chamar Ana Vitoria. Vitoria em homenagem a nossa luta aqui no Chile… Ana em homenagem ao nosso anjo!
Se o anjo Ana garantiu sua passagem de avião para Fortaleza, o mínimo que podíamos fazer era garantir sua passagem de ônibus de Fortaleza para Alenquer. Ao tirá-lo da fila para fazer a foto acima, discretamente Tatiana entregou-lhe o que havia sobrado da nossa viagem; algumas notas de reais. Entregou até a única cédula vermelha, de 5 mil pesos, que estava guardando como lembrança do Chile.
A aventura do casal de caseiros no Chile, além do viés de esperança e fé que os manteve vivos e de cabeça erguida, mostra a inépcia da diplomacia brasileira. Enquanto o país consome uma fortuna incalculável para manter cerca de 600 mil funcionários, boa parte deles diplomatas em suntuosas mansões, em mais de 130 países, um casal de brasileiros mortal comum, grávido, diante de uma fatalidade quando tentava melhorar de vida, só tem R$110 reais para sobreviver cinquenta dias nos saguões e marquises de um terminal rodoviário a seis mil quilômetros de casa!