Um tiro à sangue frio!

      O motivo demoraria alguns anos para ser compreendido…

A pantera negra deslizava suavemente pelo asfalto quente da rodovia naquele início de tarde. De repente meu pequeno passageiro, que parecia cochilar, acordou o assunto que dormia há quase uma semana.

– Você pode contar agora a história do seu vizinho, aquele que evoluiu em relação aos cães igual ao Osvaldo – perguntou ele voltando ao assunto interrompido na chegada à Pouso Alegre na semana anterior.

– Hein… Ah sim, posso. Mas tenho de avisá-lo que a história, apesar de … instrutiva, é um tanto triste! Está preparado para ouvir?

Daniel se ajeitou bem no banco e fez uma carinha dramática antes de responder.

– Eu estou com onze anos. Já aprendi que a roseira, além de rosas, também tem espinhos.

Olhei surpreso para meu filho. Surpreso com sua citação filosófica, embora soasse como frase feita! Mas nada comentei. Entrei direto na história antes aludida.

– Bem, filho… essa história eu vivenciei quando eu era pequeno… Acho que eu tinha a sua idade. Como eu te falei antes, a relação do homem com seus cães, naquele tempo, era apenas de serventia… O cão não podia ‘trazer problemas’ para o seu dono. Se isso acontecesse, o cão perdia o ‘emprego’ e, não raro… a vida!

Daniel olhou rápido para mim, mas nada disse. Continuei.

– Briosa era o nome da nossa heroína. Ela pertencia a um sisudo sitiante com o qual eu avizinhei na infância, quando ainda usava calça curta e cortava o cabelo na ‘cabaça’. Briosa teve a infelicidade de nascer no século passado, bem lá atrás! – fiz uma pequena pausa para ultrapassar uma fila de carretas na subida. Tão logo a pista clareou à minha frente retomei a narrativa.

– Como eu disse antes, a importância e afinidade dos ‘pets’ na vida das pessoas é coisa recente, coisa do século XXI, resultado natural da evolução da espécie humana. Até poucas décadas atrás os cães só tinham uma utilidade: servir ao homem, especialmente na zona rural. O cão servia apenas para vigiar o quintal, espantar bichos à noite, tanger o gado… A única recompensa por estes serviços eram duas refeições diárias – restos de comida colocada numa tigela velha ou na tampa da marmita na roça. Os cães de hoje têm nomes pomposos e pertencem ao ‘gênero’ ‘pets’! Até o século passado eles pertenciam ao gênero ‘cachorro’… Eram batizados ou rebatizados com os nomes de Lulu, Leão, Bolinha, Briosa, Brilhante, Rajado, Peludo, Pantera, Risonha, de acordo com a aparência, característica ou habito de cada um. Briosa era uma cadelinha do ‘gênero cachorro’. Era malhada de branco e amarelo, pequena, alegre, obediente, acanhada e dedicada ‘recepcionista’… ninguém se aproximava da varanda do seu dono sem ser anunciado por ela! Por isso mesmo era muito querida pela família. Tinha grande serventia no sítio… desde que não levasse ‘problemas’ para casa! Não podia correr atrás de galinhas – a menos que o dono quisesse encantoar a galinha para pegá-la -, não podia comer ovo no ninho, não podia morder visitas ou vizinhos, não podia aumentar a prole…

– O que é prole? – interrompeu meu ouvinte.

– Filhos. Para o seu dono, Briosa não deveria engravidar e ter filhos. Pelo seu porte físico e estilo de vida livre, leve e solta, Briosa teria vivido seguramente uns quinze anos, mas… Cometeu um pecado! Pecado natural e inevitável a toda espécie animal: entrou no cio! Nesse dia ela selou seu destino.

Daniel franziu a testa e fixou os olhos em mim. Continuei, agora com um toque de mistério.

– Como a maioria dos cães da roça, Briosa costumava acompanhar seu dono na lida no pasto, na lavoura. O dono não precisava dar nenhuma ordem. Bastava se afastar do quintal que a cadelinha seguia atras dele… às vezes na frente. Naquela manhã, ao sair para cuidar da lavoura junto com seus filhos imberbes, meu vizinho levou dois objetos estranhos à rotina: um pedaço de corda de pouco mais de um metro e a velha espingarda cartucheira. Alheia aos objetos estranhos e sua utilidade, Briosa seguiu tranquila ao lado dos donos, ora na frente, ora ao lado, ora atras, ora espantando um passarinho ou simplesmente sorrindo com a língua pra fora atendendo um chamado ou assovio dos meninos.

Meu ouvinte registrava cada palavra que ouvia. Atento.

– Ao chegar ao local da lida, não muito distante da moradia, meu vizinho passou a cordinha no pescoço da cadelinha, amarrou a outra ponta no pé de um arbusto numa elevação do terreno, retirou a espingarda do ombro, aproximou o cano a pouco mais de um metro da cabeça dela, fez mira!…

Daniel engoliu em seco. Mas não abriu a boca para não interromper a narrativa.

– Briosa, com a língua de fora, ainda arfante do esforço para acompanhá-los, ficou olhando curiosa para o cano escuro da espingarda, tentando adivinhar que tipo de brincadeira nova era aquela. O indicador da mão direita do dono foi pressionando lentamente o gatilho da espingarda, até que … Buuummmm!

O meu ‘bum’ inevitavelmente saiu com um volume bem mais alto. Daniel deu um pulo na poltrona. E continuou calado, torcendo para que eu não confirmasse o que ele imaginava. Baixei o tom e minimizei o fato.

– Briosa não deve ter ouvido nada. Se ouviu, não compreendeu… Não teve tempo de compreender. Os filhos do sitiante, meninos malungos meus, também de calça curta e cabelos cortados na cabaça, ouviram o estrondo e viram a cena… Mas também não compreenderam!

Meu filho quis fazer perguntas, confirmar o que havia entendido, mas a voz não saiu. Continuei no mesmo tom sutil.

– O restante da manhã seguiu sem incidentes, em silencio. No final do trabalho pai e filhos, a cordinha com alguns respingos de sangue ressecados e a espingarda ainda cheirando à pólvora, voltaram para casa – falei lentamente.

Daniel se remexeu, limpou a garganta, mas antes que as perguntas brotassem eu respondi…

– Briosa ficou lá, rente à cerca da divisa… debaixo de dois palmos de terra!

Meu pequeno passageiro afundou-se na poltrona. Precisava de silencio para acalmar seus sentimentos. Tentei sintonizá-lo com os sentimentos dos meninos que assistiram a cena.

– Levaria alguns anos para os meninos loirinhos entenderem o crime cometido pela cadelinha malhada. Ou o crime seria do seu dono?

Rodamos vários quilômetros de Fernão Dias em completo silencio…

 

* Esse texto é parte integrante de um novo livro que está em fase de revisão.

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