Não basta ter fé…

… É preciso fazer escolhas!

     Catolicindo Fervoroso morava sozinho no meio da baixada, a poucos quarteirões da praia. A casa já velha era média, sem luxo e carente de conforto. O quintal, no entanto, era grande, muito grande, com um grande e malcuidado pomar. Apesar do desleixo, todo ano, por conta própria, a natureza cuidava de produzir muitos frutos. Laranja, abacate, manga, guabiroba, pitanga, goiaba… Tinha até Lichia, rosada e doce, a qual atraia centenas de abelhas e marimbondos toda safra entre dezembro e janeiro.

 

Apesar da grande produção de frutas – que definhava ano a ano por falta de cuidados -, Catolicindo não auferia nenhum tipo de lucro ou boa ação com isso. Não colhia, não comia, não vendia, não doava. Excetuando uma ou outra fruta que as vezes comia no pé, toda sua produção ao longo do ano era consumida por aves e insetos, ou então apodrecia no chão forrado de folhas secas no quintal. Altruísmo em deixar as frutas para as aves? Não. Pelo contrário. Irritava-se com a algazarra que estas faziam nos momentos de banquete. Herdara a casa com o pomar já pronto e torcia para que as fruteiras morressem e parassem de produzir … e pusesse fim à balbúrdia dos passarinhos.

 

Catolicindo não tinha os olhos arregalados, as sobrancelhas grossas e a cara feia e fechada dos ranzinzas. No entanto, não abeirava a casa de ninguém e também não recebia visitas. Era indiferente com os vizinhos e com as crianças que corriam barulhentas para a praia. Era um homem. Correto, trabalhador e cumpridor dos seus deveres sociais. Especialmente o religioso. Ia todo domingo à missa na igrejinha do bairro, sempre bem-vestido, reparando nos malvestidos, levando sua surrada bíblica debaixo do braço. Quando interpelado respondia com pouca saliva aos vizinhos, mas nunca esticava a conversa. Assim vivia num bairro populoso, sem contato com ninguém.

Certo dia a baixada passou por uma tormenta. A rádio local avisou que cairia uma grande tromba d’água que alagaria todo o bairro. E aconselhou que as pessoas deixassem suas casas. Catolicindo viu as pessoas passando, indo embora apreensivas, mas continuou impassível na sua casinha!

– “Vamos embora Catolicindo! Tudo será inundado!” diziam os vizinhos.

Ele nada respondia. No máximo conversava com sua bíblia.

A aguaceira, sacudida pelo vento, desabou e alagou toda a parte baixa do bairro. Quem ‘não tinha bíblia’ acatou o conselho da defesa civil e tratou de deixar suas casas. Quem não teve tempo, foi resgatado pelos bombeiros e pela defesa civil. Cotolicindo continuou lá… com a água subindo pela canelas finas e brancas, subindo, subindo até que ele também subiu… no telhado! Um barco da defesa civil passou por lá oferecendo ajuda, mas ele respondeu:

– Não se preocupem comigo. A chuva vai parar, a enchente vai baixar, Deus proverá!

Apesar da fé – e da teimosia! – de Catolicindo, a enchente continuou subindo. Em pouco tempo as águas chegaram ao cume do telhado. Um helicóptero dos “anjos laranja” se aproximou e tentou ajudá-lo. Catolicindo segurou firme a bíblia contra o peito e respondeu:

– Deus proverá!

No instante seguinte a casa desabou! Cotolicindo – e sua bíblia – afundou! Afundou e desencarnou! Como não estava preparado para morrer, seu espírito ficou por ali, tentando achar sua bíblia, tentando entender por que a providência divina não o salvou.

Dias depois, quando a enchente baixou deixando a mostra apenas os escombros da casa, confuso e sem ter onde morar, finalmente o espírito de Catolicindo saiu vagando desnorteado e perdido e acabou sendo resgatado por um grupo de espíritos socorristas. Afinal, ele não era uma pessoa má. Mesmo tendo passado pela vida sem produzir nada que não fosse para o seu próprio sustento; mesmo não tendo repartido nada do que lhe sobrava; mesmo não tendo distribuído sequer um sorriso para as crianças que passavam correndo felizes e barulhentas em frente sua casa, ele nunca fez maldades.

E assim Catolicindo Fervoroso chegou ao Centro de Triagem de São Pedro. E chegou fervendo, bravo, revoltado com a divina providência. O próprio São Pedro, chefe do Centro de Triagem, que atende somente os casos mais complicados e dá o destino final a cada espírito que passa por ali, teve que ser chamado para acalmar Catolicindo. Já no seu gabinete, o paciencioso santo alisou as longas barbas brancas e disse:

– Então sr. Catolicindo, conte-me sua história e os motivos da sua insatisfação com Deus.

– Eu fui um bom homem, cumpri minhas obrigações, servi o exército, sempre pensei muito antes de votar, trabalhei mais de trinta anos na mesma empresa, nunca discuti com ninguém, sempre paguei minhas contas em dia, frequentei religiosamente a igreja, sempre acreditei e manifestei minha fé na providência divina…

Recostado na grande cadeira forrada com uma colcha branca para esconder o couro puído de tanto uso, São Pedro alisava pacientemente o fio mais longo da barba quase no peito enquanto ouvia Catolicindo desfiar seu rosário de realizações. Finda a chorumela São Pedro falou:

– Além de cumprir suas obrigações como cidadão, o que mais você fez na sua missão na terra?

– Missão!!! Que missão? – estranhou Catolicindo.

– Você passou um período na terra para crescer, para evoluir…

– Ninguém me falou nada sobre isso. O que eu tinha que fazer?

– Você dedicou parte do seu tempo a alguém?

– Não…

– Você tinha um bom emprego, tinha casa confortável e dinheiro recebidos de herança! Você ajudou alguém necessitado?

Catolicindo desviou o olhar pensando no baú de dinheiro que mantinha escondido no sótão, levado pelas águas. São Pedro continuou.

– Você deu o ombro a alguém que chorava?

– Você alguma vez emprestou seu ouvido a quem precisava falar?

– Você alguma vez levou uma palavra de alento para alguém que sofria?

– Você levou uma palavra de esperança para alguém que não via saída?

– Você deu ao menos um sorriso para as crianças que passavam correndo…

Catolicindo estava atordoado com tantas indagações. Gaguejou …

– Mas eu …

São Pedro o interrompeu, com um tantinho de impaciência.

– Eu, eu, eu… Tudo eu. Tem muita gente na Terra olhando somente o ‘eu’. Quase metade só enxerga o ‘eu’. Quase metade não enxerga o ‘outro’. Tudo bem, Catolicindo. Você tem o livre arbítrio para escolher crescer ou não. Só não pode reclamar! Não pode culpar ninguém pela sua estagnação… ou sua involução! Voltemos ao questionamento que o trouxe aqui tão revoltado. Você disse que confiou na Divina Providencia e foi traído, não é?…

– Sim – respondeu Catolicindo rapidamente, aproveitando o gancho que o interessava. – No momento em que eu mais precisava a providência divina não apareceu! E me deixou morrer afogado!

São Pedro fixou seu olhar manso nos olhos inquietos de Catolicindo antes de prosseguir.

– A divina providência nunca falha. Está sempre pronta para intervir em benefício daquele que a pede. Mas é uma ação de mão dupla… É preciso que o interessado faça sua parte.

– Mas eu fiz minha parte. Já falei. Deus não fez a dele. Eu estava com a bíblia na mão, esperando até o último instante, confiando. Mas Deus não mandou a divina providência…

– Catolicindo, preste atenção. Deus jamais te abandonou. Veja bem: quando a chuva começou a se formar sobre a serra e o vale, a Defesa Civil divulgou um alerta através do rádio. Mas você continuou lá…

– !!!

– Antes da tempestade desabar as autoridades enviaram sinais sonoros na região e mensagens pelo WhatsApp. Mas você ignorou.

– !

– Quando a chuva caiu, os caminhões dos Bombeiros passaram ajudando na retirada dos flagelados antes do desastre…

– !

– Quando a enchente começou, os barcos da defesa civil passaram oferecendo ajuda.

– !

– Quando você subiu no telhado, a defesa civil enviou até um helicóptero para resgatá-lo… Observe que em todos estes momentos, Deus agiu.

– Mas eu esperei a providência, a bíblia… – tentou argumentar Catolicindo.

– A bíblia, Catolicindo, te esclarece, te orienta… Mas ela não age. Cada um tem que agir. Por isso Deus deu a cada um o livre arbítrio. Para que cada um aja de acordo com sua consciência e necessidades … e arque com suas consequências! – concluiu São Pedro com mansidão.

Catolicindo ia retrucar, mas, parou, pensou, juntou no ar tudo que havia acabado de ouvir, segurou o queixo com uma mão, juntou as duas mãos em concha na testa e assim ficou por alguns instantes até que voltou a falar:

– Quer dizer que, como eu fui ‘chamado de volta’ antes da hora, e como eu não fiz nenhum mal na terra, eu vou ficar morando aqui no céu?

– Não é bem assim… Lembra do que eu falei alguns parágrafos atrás! “Você passou um período na terra para crescer, para evoluir” … E o que você fez, além de sustentar o seu corpo, para crescer e evoluir? – perguntou São Pedro abrindo largamente os braços com as mãos espalmadas!

Sem respostas Catolicindo soltou o corpo na cadeira, desacorçoado, vencido. Depois de alguns instantes de reflexão, perguntou com voz sumida, muito diferente de quando chegara ali meia hora antes.

– Mas então, o que vai ser de mim?

São Pedro, com o mesmo olhar complacente de sempre, inclinou seu corpanzil avantajado para a frente, apoiou os dois braços sobre a mesa, tomou as mãos de Catolicindo e falou paternalmente.

– Como você não fez escolhas danosas, você vai voltar para uma escola no seu nível de aprendizado por aqui e entrar na fila da reencarnação. Tem pouco mais de 13 bilhões de espíritos na fila aguardando uma nova chance de reencarnar…

A piscina da Lili…

A mesma fonte que abastecia a piscina da Lili, hoje abastece o lago do Fórum!

Media quinze metros de largura por 25 metros de comprimento. Tanto o piso quanto as paredes laterais eram de cimento queimado, rústico, da cor de cimento queimado. A água, portanto, era turva. Quem abrisse os olhos no fundo enxergava apenas escuridão. A água batia no peito dos adultos e no pescoço dos adolescentes e das mulheres sempre mais baixas do que os homens. Do lado de baixo da piscina havia apenas um cimentado, também rústico, onde as garotas estendiam as toalhas para se bronzear. Do lado de cima dois lances de uma mureta. Era de onde os garotos mais afoitos pulavam espatifando água pra todo lado fora. Uma casinha de cangalha medindo quatro por quatro, dividida ao meio por uma parede, servia de vestiário. Uns deixavam suas roupas lá, penduradas num cabide cheio de pregos numa tábua. Outros preferiam levar suas roupas consigo para a beira da piscina – para evitar furtos.

Apesar do tamanho bem diminuto, não havia limite de lotação. As vezes tinha 40 pessoas. As vezes tinha 90.

Apesar de tão pouco espaço para tanta gente, sempre aparecia alguém com uma bola… e jogavam algo parecido com polo aquático!

Não havia salva-vidas. E muitos não sabiam nadar e, embora não houvesse salva-vidas, nunca teve acidente, pois a ‘fundura’ da piscina era toda do mesmo nível, bastava ficar em pé. Mesmo assim os mais medrosos não se afastavam da margem.

Para nadar na Piscina da Lili, todos pagavam o mesmo preço: Cr$ 5. O regulamento para frequentar a piscina era simples. Bastava pagar a entrada e usar maiô ou biquíni (mulheres) e calção (homens).

Funcionava apenas no domingo, pois toda a clientela da Lili trabalhava até sábado à tarde. Só sobrava o domingo para se divertir.

Dona Lili ficava na portaria, ou seja: no portão lateral da casa que ficava na beira da estrada, cobrando o ingresso, em cash naturalmente, a única forma de pagamento naquela época. Não havia ‘cano’, pois ninguém passava pelo portão sem deixar uma nota de cinco cruzeiros!

Além do Status de nadar na Piscina da Lili, para os homens havia uma diversão a mais, uma diversão perigosa e proibida: espiar as mulheres quando elas entravam no vestiário!

Os meninos faziam escadinha entre si e se revezavam para vê-las trocar de roupa – por cima da parede que dividia a casinha! Nunca viam nada, pois elas, acanhadas, ficavam sempre encostadas na parede e na maioria das vezes colocavam as roupas por cima do maiô ou biquíni sem tirá-los.

Mesmo assim aquela sensação de estar tão perto – e furtivamente! – de uma mulher seminua, era excitante para aqueles garotos cheios de espinhas no rosto. Mas tinham que conter a excitação e fazer silencio. Se fosse percebido seria punido. Dona Lili era chamada e mandava o ‘assanhadinho’ se retirar imediatamente. A punição durava duas ou três semanas, o tempo necessário para dona Lili esquecer o rosto do assanhado!

Era o ano de 1974…  

No ano seguinte uma nova opção de lazer surgiu na cidade… e levou à falência a Piscina da Lili.  


Falando em mazelas e carências da policia!…

     Conheço esse filme!

Outro dia, vendo uma entrevista com o delegado (aposentado) Altair Machado, no Mandu Cast, falando sobre a escassez de policiais até para escoltar presos, lembrei de alguns casos que eu protagonizei ao longo da carreira!

 

Nos anos 80, a delegacia Regional de Pouso Alegre, uma das maiores do Estado, tinha 4 viaturas oficiais. Uma Veraneio (para rondas noturnas e viagens), um fiat 147 e uma Caravan (para diligências, campanas, investigações…) e outro Fiat 147 à disposição da Perícia. Algemas tinha dois pares – exclusivamente para transporte de presos para a capital ou para outro estado. Revolver? Cada um se virava com o seu. Tinha policial que possuía apenas um Rossi 32. Trabalhei com um carcereiro que impunha sua autoridade com uma faca ‘peixeira’!

 

* Certo dia, descendo a Bueno Brandão voltando do almoço para a Delegacia, esbarrei num conhecido meliante procurado pela polícia. Japão era figurinha fácil no nosso álbum por pequenos furtos e uso de maconha – quando uso de maconha era crime previsto no artigo 16 da lei 6368/76. Eu, jovem policial, empolgado com a carreira que acabara de abraçar, não tive dúvidas! Enquadrei o meliante e disse-lhe a famigerada frase:

– “Teje preso”!!!

Sozinho, a pé, desarmado e sem as “pulseiras de prata”, atravessei a cidade conduzindo o preso numa ‘chave de braço’ até chegar à delegacia de polícia.

 

** Em 93 trabalhava eu na Delegacia de Silvianópolis quando recebi a missão de recambiar um notório condenado para nossa Comarca. O meliante havia cometido um furto anos antes numa fazenda no município de São João da Mata e dobrado a serra do cajuru. Dias depois ele cometeu outro crime e caiu nas malhas da lei  de São João da Boa Vista. Extinta sua pena lá em terras paulistas e à pedido’ cá em terras mineiras, ele foi  “extraditado” até a vizinha Poços de Caldas. O indigitado era “Peixinho”, meu velho conhecido. Velho mesmo. Velho e malvado. Na década de 70, quando eu vendia sorvetes nas ruas de Pouso Alegre, ele, mais velho e mais forte do que eu, costumava encostar no meu carrinho, chupar meia dúzia ou mais de picolés e sair sem pagar! No início da década de 80 eu o havia prendido na cidade de Campinas – Essa história, bem-humorada, está no livro “Meninos que vi crescer”! Mais bem-humorada foi nossa viagem de Poços de Caldas para Silvianópolis. Apenas nós dois na viatura. Eu atrás do volante e ele meio embodocado no porta-malas(destampado) do Uno, imobilizado por um par de pulseiras de prata.

 

*** No final de 2004, prestes a me aposentar, recebi outra missão; recambiar um preso da penitenciaria de Nova Serrana para Monte Sião, onde eu trabalhava. A missão era como tantas outras, mas tinha um ingrediente a mais. O Fiat Elba de Monte Sião não tinha condições de fazer uma viagem tão longa. Achamos a solução. Embarquei no ônibus da Gardênia (naquela época, a Gardênia não deixava ninguém na estrada! Rsrsrs…) e desci na rodoviária de BH. Cheguei de manhazinha, atravessei a famigerada “Guaicurus” ainda com cheiro de perfume barato das mariposas, peguei a Contorno, sai na Avenida dos Andradas, a pé naturalmente, e meia hora depois cheguei ao Departamento de Transportes. Lá peguei um Palio Weekend e fui buscar meu preso na ‘penita’ de Nova Serrana. Chegamos a Monte Sião no final da tarde, eu atras do volante, e meu preso, que atendia pelo epiteto de “Cafarnaum”, no banco de trás com os braços atados por dois pares de algemas na barra de proteção atrás dos bancos.

Nossa viagem de mais de 400 quilômetros foi tranquila. Viemos contando história um para o outro, estreitando laços. Ficamos quase amigos. Tão amigos que um mês depois livrei Cafarnaum de uma enrascada amorosa. Durante os meses que havia morado em Monte Sião, onde cometera diversos crimes, Cafarnaum arrumou uma namorada e foi morar com ela – meliantes são como soldados na guerra! Tem uma facilidade incrível para arrumar namoradas! Mas meu preso não era livre. Ele tinha mulher e filhos na Bahia, sua terra Natal. Tão logo ficou sabendo que o marido havia sido transferido para Monte Sião, a esposa veio visitá-lo – mulher de preso adora visitar marido na cadeia! Tudo bem. Cada um com seu cada um. O problema é que a amasia de Monte Sião não perdia uma visita de quarta-feira. Chegava sempre de mãos cheias, trazendo frutas, comidas, cigarros e chamegos! O encontro entre ‘matriz’ e ‘filial’ poderia resultar em barulho e “quebrar a rotina” do hotel do contribuinte da bucólica Monte Sião. Para evitar que a simplória cadeia e o silencioso cemitério – que ficam defronte um ao outro – aumentassem seus hospedes, caso as duas se encontrassem, barrei a visita da mineira…

– Seu ‘marido’ cometeu um ‘ilícito administrativo’ e está de castigo. Ele só poderá receber visitas na emana que vem – disse eu à jovem amante, quero dizer, amasia!

Como costumam zombar os policiais do próprio fadário, “policial ganha mal, mas as vezes se diverte”!

 

Sou – quase – da época em que os policiais eram “pegos a laço”. No início dos anos 80 era comum o Inspetor entregar três Mandados de Prisão a uma dupla de Detetives e dizer:

– Deem uma volta aí pela cidade… Tragam ao menos um desses três procurados!

– Em qual viatura a gente vai?

– Vejam se tem alguma disponível. Se não tiver, vão a pé mesmo!

 

Muita coisa mudou desde então. Hoje, para ser Detetive, tem que ter curso superior. A maioria dos policiais passam o dia – cumprem expediente – navegando… na ‘proa’ de um computador!

 

Rabo Verde… “nosso louco favorito”!

Ele foi um dos poucos ‘loucos’ que frequentaram o Hospício de Barbacena e voltaram de lá!

O destempero do nosso personagem trouxe, algumas vezes, consequências. Atendendo a reclamações de algumas senhoras mais sensíveis à palavrões, alegando que ele era um perigo e mau exemplo de educação para as crianças e donzelas que iam e voltavam das aulas nos colégios Santa Doroteia, Mons. José Paulino e Colégio Estadual, alguns maridos mais sisudos encaminhavam suas preocupações ao delegado de polícia.

– É preciso tirar o Rabo Verde do convívio com as pessoas! “Ele é louco”, diziam.

E lá ia o Rabo Verde para o hospital psiquiátrico Jorge Vaz em Barbacena. Ia no velho e barulhento trem da Rede Sul Mineira, o mesmo que o trouxera para Pouso Alegre em meados do século. No entanto, o vazio, a falta de assunto que sua presença marcante deixava nas ruas, nos bares, farmácias, durava pouco! Algumas semanas depois ele estava de volta. Não se sabe como ele achava o caminho, mas achava. Vinha no mesmo trem que o levara.

– O que aconteceu que te deixaram sair do manicômio, seu Antônio? – Indagavam alguns folgazões com um copo de cerveja na mão no Empório Goulart ou no Vila Rica, só para ouvi-lo contar do seu jeito simplório e darem risadas…

– Briguei com o doutor…

– Mas por quê?

– O doutor é burro…

– Como assim?

– Ele me entregou um jacá e mandou eu buscar água na bica: eu falei “vai você seu burro! Não tá vendo que o jacá tá furado? Aí ele ficou com raiva e mandou eu embora” …

Rabo Verde era mesmo iluminado. Ou contou com muita sorte! Ele foi uma das poucas pessoas que se tem notícia que foi internada no hospício de Barbacena, aliás várias vezes, e voltou de lá. No livro “Holocausto Brasileiro” a jornalista Daniela Arbex conta histórias de centenas, milhares de pessoas, com muito mais referências, com famílias e raízes, que entraram no malfadado hospício e de lá só saíram uma vez, fizeram uma única viagem… para o cemitério da cidade! Outras centenas e milhares não chegaram a fazer nem uma viagem… Foram enterradas nas cercanias do próprio hospício! Ou foram esquartejadas e dissecadas em faculdades de medicina de Juiz de Fora e do Rio de Janeiro sem que os familiares jamais soubessem ou buscassem informações.

Mas Rabo Verde tinha muitos quintais para carpir, escorpiões para queimar e chuchus para colher em Pouso Alegre. Por isso sempre se recusava a “buscar água no jacá”, e acabava voltando para terras manduanas, para preencher a rotina dos cidadãos de bem, alimentar a caridade das samaritanas e fazer a alegria da garotada com seus xingos e pedradas nas cercanias do centro da cidade.

Dentre todos os ‘desajustados’ que Pouso Alegre abrigou ao longo da sua história, Rabo Verde foi, sem dúvida, “nosso louco favorito”!

 

[email protected] – Quem Matou o Suicida, pags.27e28.

Cirilo ‘Bola Sete’ chegou ao fim da caminhada…

Depois de algumas décadas vivendo nos velhos hotéis do contribuinte, o cidadão que retoma a liberdade “não tem mais utilidade nem pra ele e nem para a sociedade”.

Dura realidade!

Tais egressos do sistema prisional, saem moralmente cambaleantes e nunca mais se aprumam. Vivem de favores, muitas vezes em muquifos fétidos, debaixo de pontes e viadutos, nas sarjetas, nos semáforos mendigando moedas para sustentar os pequenos vícios, morrendo aos poucos, até que a morte dê o golpe fatal!

Assim foi com o egresso Cirilo do ‘Bola Sete’!

Começou cedo o caminho torto! Aos 17 anos já era figurinha fácil no álbum da polícia. Entre uma fuga e outra, um crime e outro, uma prisão e outra, Cirilo passou mais de duas décadas vendo o sol nascer quadrado. Os últimos anos foram na APAC – de onde deveria ter saído com uma profissão definida e uma oportunidade concreta de um recomeço na vida.

No entanto, é necessário muito mais do que isso para apagar vinte e tantos anos de ócio e maculas acumuladas ao longo do caminho torto! Cirilo não teve forças para isso!

Nessa foto – que eu fiz em 2010 – apoiado na grande conteira em frente a casa do seu falecido pai no Aterrado, havia poucos meses que ele havia deixado a APAC. Ainda mantinha o viço da vida. Ao contar um pouco das suas aventuras e desventuras no mundo do crime, ele ainda alimentava a esperança do recomeço… mas não conseguiu voltar ao início da juventude para recomeçar!

A outra foto, enviada por uma amiga comum esta manhã, ilustra um pouco do que as drogas – essa mesma que o governo insistiu e o STF liberou a poucos dias – podem fazer com as pessoas.

Segundo nossa amiga, Cirilo morreu dormindo essa madrugada, num muquifo qualquer cedido por outros nóias na baixada do Mandu.

– “Cirilo estava muito debilitado. Eles fizeram um miojo pra ele e deixaram ele ficar. Pelo menos morreu de barriga cheia, numa cama quentinha” – disse a amiga, que diversas vezes tentou, sem sucesso, tirá-lo dos vícios.

As pessoas que defendem a liberação das drogas – da “maconha recreativa” – deveriam conhecer um pouco mais as histórias de “Meninos que vi crescer”. Cirilo do Bola Sete é um dos meninos que vi crescer…

O MENINO NÃO CANTA MAIS …

Na quinta-feira, enquanto dormia, passou de um sonho a outro e lá ficou…

Na verdade, faz muitos anos que ele parou de cantar. Cantava afinado, com a voz fina, doce e aguda… Cantava feliz, fingindo distração enquanto passava graxa nos sapatos dos clientes. Ganhou até o apelido de “Engraxate Cantor”!
Assim era Claudinei no final da adolescência. Cantou até tropeçar numa pedra no caminho… Até tropeçar na famigerada “pedra bege fedorenta”!
Desde então desafinou, tornou-se dependente da pedra. E para conseguir dim-dim para infringir o artigo 28 da lei 11.343, precisou infringir outros artigos do código penal. Isso o levou diversas vezes para o Hotel do Juquinha, depois APAC… Tornou-se um típico “Menino que vi crescer”!
Quitou seu débito com a justiça, mas não conseguiu voltar à encruzilhada e recomeçar sem mácula … Continuou no caminho espinhoso de quem um dia fez a escolha errada. Até que numa madrugada fria, há três anos, envolveu-se numa contenda banal com um desafeto e foi ferido a golpes de tesoura.
Desde então, quase inválido, tornou-se recluso em um quarto cedido por uma sobrinha. Já não engraxava, não cantava…
Semana passada, enquanto dormia, passou de um sonho a outro e lá ficou… não acordou mais!
Na quinta-feira, 20, seu corpo voltou ao pó… do Cemitério Municipal.
Claudinei, o Engraxate Cantor, era um dos “Meninos que vi crescer”!

Pra que serve um vice?

Há quatro meses das eleições municipais, Pouso Alegre tem 05 (cinco) candidatos ao ‘espinhoso’ cargo de alcaide! Até o momento, no entanto, não se vislumbra no horizonte nenhum postulante ao cargo de vice-prefeito.

Mas afinal de contas, para quê serve um vice-prefeito?

Quem responde essa pergunta é o meu amigo “Zé do Povo”, na edição número 15 do FOLHA no dia 18 de junho … há exatos 20 anos!

“Teoricamente o vice serve para substituir o titular na sua ausência ou impedimento. Mas na prática ele tem muitas utilidades.

– Serve para conduzir uma secretaria qualquer para fingir que justifica seu salário…

–  Serve para fazer fofoca ou oposição ao prefeito…

–  Serve para fazer ‘despachos e macumbas’ para o prefeito morrer… e ele assumir seu lugar!

– Serve para ficar quietinho em casa sem fazer nada… para não atrapalhar!

– Serve para articular sua campanha a titular nas próximas eleições!

– Serve para tirar licença nas vésperas de uma viagem do prefeito… para NÃO ter que assumir!

Enfim, um bom vice-prefeito serve para muita coisa.

E poderia servir para muito mais! Por exemplo: poderia servir para auxiliar o prefeito na sua administração …

– Para que ele cometa menos erros;

– Para que ele gaste o dinheiro público com a coisa pública;

– Para que ele beneficie a sociedade… e não os amigos!

– Para que ele possa receber o cidadão contribuinte em seu gabinete sem que o cidadão tenha que esperar dias e horas na fila;

– Para que ele tenha tempo de visitar focos de carências;

– Para que ele possa tomar café na cozinha do eleitor e dar tapinhas em suas costas como fazia na época da campanha!

Além destas utilidades & inutilidades úteis e fúteis, a maior serventia de um vice-prefeito, na verdade, começa antes da eleição. Mais cedo ainda, antes da convenção! É neste período que se percebe, pelo menos nos bastidores, a importância que tem um vice. É nesta hora que ele mostra seu valor. São intermináveis reuniões secretas e negociações envolvendo os interesses dos partidos a nível municipal, estadual e federal. Muitas vezes o campeão de popularidade é preterido em favor de um nome obscuro, para se ficar bem com o governo estadual. É no período pré-convenção que o vice mostra suas garras.

É buscando mostrar esta força que muitos pretendentes a confortável cadeira de vice lançam seus nomes estrategicamente a apreciação popular, postulando um cargo sempre mais alto, para depois soltar a demagoga frase:

“Se é para o bem do partido eu empresto meu nome”!

Ou:

“se o partido achar melhor, vou concorrer ‘apenas’ a vereança”! e outras tiradas mais.

E para isso vale tudo!

– Tem pré-candidato empresário que aparece toda semana nos jornais mostrando as qualidades, avanços e serviços prestados por sua empresa…

– Tem advogados que ganham festa de amigos e vão receber os presentes na televisão!

– Tem engenheiros que não perdem uma boca livre e até viajam para abraçar líderes partidários e aparecer em colunas sociais!

– Tem médicos que torcem para alguém rico ou famoso ficar doente… para ter que visitá-lo e aparecer na mídia!

Enfim, são muitas as artimanhas para chamar a atenção dos convencionais e ganhar a vaga de vice ao lado do candidato favorito.

Talvez seja por isso que até agora não ouvi o nome de nenhum “viçável” querendo sentar-se ao lado do cabeça de chapa!

Comentários e críticas à parte, um vice-prefeito, sem o peso das decisões nas costas, se tiver a nobreza de justificar sua escolha pelo eleitorado, poderá auxiliar e ser ainda mais importante que o prefeito numa administração.

 

*Zé do Povo é mineirinho do Mandu, mora há mais de 30 anos ao pé da serra do cajuru e trabalha como Gari no centro de Pouso Alegre

Vovô morreu…

(Imagem ilustrativa)

– Querida, o papai… desencarnou! – Falou Luquinha e esperou alguns segundos, para que a esposa processasse a informação. Em seguida contou os detalhes.

– Está tudo bem. Foi um desencarne tranquilo. Do jeito que ele deve ter pedido à Deus. Morreu sentado na sua cadeira preferida, na varanda da casa, contemplando o nascer do sol. O sorriso de satisfação continua no seu rosto.

– E as crianças… Como elas reagiram?

– Elas não sabem ainda. Elas acham que ele está dormindo e foram brincar. Vou tomar mais umas providencias e em seguida vou contar a elas.

Quinze minutos depois Luquinha chamou as crianças na varanda. Sentado entre elas no banco de madeira explicou de forma didática e romântica a partida do pai:

– Larissa, Leonardo… Quero falar sobre o vovô Chico Luca…

– Ele ainda está dormindo? – atalhou Larissa.

– Sim, minha filha. Ele está dormindo. Ele está dormindo o ‘sono da viagem’…

– “Sono da Viagem”, aquele que você contou pra nós aquele dia! Quer dizer que ele vai acordar longe daqui, no céu? – perguntou Leonardo franzindo a testa.

– Isso mesmo! O vovô já tinha feito tudo que tinha que fazer aqui na terra. Ele estava muito feliz e foi convidado a fazer aquela viagem para o outro astral. Vovô Chico Luca foi “um bom menino”… Ele trabalhou muito, amou muito, acertou muito, errou algumas vezes, pediu perdão, perdoou… Ele estava com a alma limpa, leve. Chico Luca sempre foi grato por tudo que recebeu. Hoje chegou a hora de fazer a viagem de volta à Casa do Pai – concluiu Luquinha abrindo teatralmente os braços para o alto.

– Ah, que pena! Ele não vai mais me contar histórias… Não vou ver mais aquele sorrisão de bochecha dele! – Reclamou Larissa, fazendo um bico com os lábios.

– Filhinhos… O vovô viajou! Mas ele continua morando no peito de cada um que o amou… de cada um que o ama. Quando quiser ver o vovô, basta olhar para o seu coração. – Falou Luquinha com mansidão… e os olhos brilhando! Brilhando muito…

 

*** Trecho do meu próximo livro…

Tibério… o ‘cão detetive’

O velho cão foi a peça chave para a apuração do assassinato do Pastor!


Eram nove da manhã de um ensolarado domingo de abril quando o telefone tocou na delegacia de policia. Do outro lado da linha uma voz de mulher disse apenas:
– “Tem um homem morto no mato ao lado da Vigor”!
Era meu plantão naquele dia. Como manda o bom senso que norteia a boa investigação, acompanhei o perito Praxedes ao local do crime. A informação anônima era verdadeira. Havia ali um corpo estendido no chão… sem lenço, sem documentos e sem vida! Pior! Sem um rosto que pudesse identificá-lo. O pobre homem de meia idade tinha o rosto completamente desfigurado por golpes de pedras e tijolos. Os toscos objetos do crime com as marcas da violenta agressão estavam espalhados ao lado do corpo no terreno baldio.
O corpo, que aparentava ter cerca de quarenta anos, foi levado para o IML e depois de necropsiado passou o resto do dia ali como indigente. No final daquela mesma tarde recebi uma mulher na DP para registrar um desaparecimento. Quando levantei o fantasmagórico lençol branco no IML, a mulher desandou a chorar. Era quem ela procurava! O morto era F.A.S., conhecido pela alcunha de “PASTOR”, com quem ela havia vivido maritalmente por dois anos na Baixada do Mandu. Segundo a mulher, Pastor, 38 anos, vivia de catar recicláveis e não fazia mal a uma mosca.
Apesar da vida de provações e escassez de dinheiro o rapaz era frequentador do FORRÓ DO PREGUINHO nos finais de semana. Aquela semana havia sido produtiva. Naquela noite de sábado ele estava endinheirado. Levava na algibeira pouco mais de 80 reais. Isso despertou a cobiça de lombrosianos que estavam nas imediações do forró… Foi sua sentença de morte!
As investigações do brutal assassinado nos levaram, como sempre, ao local do crime. No terreno baldio, permeado de mato, vegetação rasteira e entulho havia duas barracas velhas de camping, improvisadas. Uma delas estava vazia. Na outra havia um andarilho sem eira e nem beira. Na iminência de assinar um 121, ele nos contou – quase – tudo que sabia:
– Eu não vi nada, não, mas eu escutei. No meio da madrugada eu acordei com os latidos de um cachorro… Ele latia sem parar… aí o dono dele saiu da barraca e fez ele calar a boca – disse o mondrongo.
As informações eram poucas, mas foram o suficiente para nos levar aos assassinos. Bastava pensar. E pensamos:
– Se o cão vira-latas latiu… é porque presenciou o crime!
– Se o dono saiu da barraca para ralhar com o cão… ele também presenciou o crime!
– Se ele abandonou a barraca logo nos primeiros clarões da manhã… é porque ele não queria dar ‘entrevistas’ aos homens da lei!
As investigações nos mostraram que quem estivera abrigado na tosca e encardida barraquinha no palco do covarde assassinato do Pastor, eram M.T. e sua jovem amásia. O fato de ele ter deixado a barraca ao pezinho da manhã do crime, levando consigo o cão delator, fazia dele o principal suspeito. Por isso, não foi difícil fazer com que ele apontasse os autores… para livrar sua própria cara!
As informações de Miltinho foram confirmadas no passo seguinte. Levantamos que o telefonema recebido na manhã de domingo, partira de um orelhão instalado ao lado da casa dos assassinos!
Em seu mais célebre romance – Crime e Castigo – o grande escritor Fiódor Dostoievski traça, com muita assertiva, o perfil de todo assassino:
“O criminoso não se contenta em cometer o crime… ele quer saber o que a polícia sabe sobre o crime que ele cometeu… e se a policia vai chegar até ele”!
Ou seja: “quando o assassino não volta à cena do crime”, ele deixa pistas…
Desvendado o mistério, com a carta branca do homem da capa preta, apresentamos as pulseiras de prata aos algozes do Pastor. Os dois assassinos, bem como aquela mulher que ligou do orelhão para denunciar o crime, sentaram ao piano do paladino da lei e assinaram o latrocínio – matar para roubar.
O assassinato do Pastor nas margens da Perimetral naquela madrugada fria de abril de 2004, foi um dos casos mais fáceis e rápidos que apuramos. No entanto, toda a investigação resultaria infrutífera se o velho cão não tivesse colocado a boca no trombone, obrigando seu dono a ralhar com ele.
O cão responsável pelo esclarecimento do assassinato do Pastor por causa de 80 reais, era um ilustre desconhecido que perambulava pela cidade na companhia de um casal de moradores de rua. Depois de aparecer nas páginas do jornal FOLHA, como herói, ele ganhou holofotes e visibilidade. Principalmente depois de ser abandonado pelo dono. Miltinho era figurinha carimbada no álbum da policia e cliente antigo do Velho Hotel da Silvestre Ferraz, por uso de drogas, brigas e outros delitos menores. Moradores de rua, Miltinho e a namorada – e o cão adotivo – passavam os dias nas imediações da pracinha atrás da Catedral e dormiam em qualquer lugar que os protegesse do sereno da noite. O relacionamento do ‘casal 20 das ruas’ era, no entanto, estilo tapas & beijos! As brigas constantes do casal rendiam frequentes hospedagens gratuitas a Miltinho no Velho Hotel da Silvestre Ferraz. O pote tanto foi à fonte que o Homem da Capa Preta resolveu separar o casal. Miltinho ganhou uma estadia prolongada no hotel do contribuinte.
Sem o casal de briguentos para lhe dar um centavo de carinho e uma nesga de comida, o cão – auxiliar da lei – voltou a perambular solitário e cabisbaixo pelas ruas.

O ‘cão detetive’ atende pelo nome de TIBÉRIO. É branco encardido, tem entre dez e doze anos de idade e visíveis marcas do tempo e de maus tratos pelo corpo. Numa versão menos romântica do filme “Akita”, cujo cão passa anos esperando seu dono – Richard Gere – na estação, Tibério passou longo tempo tentando reencontrar seu dono. Passa boa parte do dia nas imediações da catedral – onde Miltinho e a namorada costumavam ficar – e à noite ronda o Velho Hotel da Silvestre Ferraz e a delegacia de polícia, onde Miltinho foi visto pela última vez… em busca de carinho e comida!
Sorrateiro, arredio e orgulhoso, não aceita agrado de qualquer um. Foi difícil fazer essa foto quando ele se aproximava para o jantar servido quase diariamente por dona Vera, na porta da sua casa defronte a delegacia. Se devemos respeitar todos os animais, certamente devemos muito mais ao Tibério, o ‘cão detetive’ que ajudou a esclarecer o fútil e bárbaro assassinato do Pastor!

Justiceiro Mascarado

   Pedro Pedreiro foi mais uma vítima do chicote do misterioso “Zorro da Zona Boemia”!

“Início da madrugada de uma quarta feira quase morta. A única rua da cidade que ainda mostrava sinais de vida era a Davi Campista. O outono ainda era um adolescente, mas o frio do inverno naquela época não esperava a estação oficial para bater na porta… e na pele!

Pedro Pedreiro desembarcou de um caminhão de entregas perto do Hotel Cometa e seguiu na direção do infante bairro Jardim América, que não tinha ainda quarenta casas. Ao passar pelo muquifo, quero dizer, boteco do João Natal, no início da Silviano Brandão percebeu, pela tênue luz que escapava pela metade da porta de aço arriada, que o boteco estava aberto. Espiou por baixo da porta e pode ver um sujeito dormindo debruçado sobre uma mesa, certamente embalado por Severina do Popote, e um casal se esfregando no balcão, cada um com um copo e um cigarro na mão enquanto o baixinho e narigudo João Natal cochilava na outra ponta do balcão com um radinho chiando ao pé do ouvido!

Pedro Pedreiro entrou e pediu uma cangibrina, para espantar o frio! Tomou três! E rumou para casa! Agora mais animado!

Qualquer cidadão no seu lugar seguiria pela Silviano Brandão até a Campos do Amaral e aí sim teria que cortar a “Zona”. Pelo menos era um trecho curto. Passar pela Davi Campista em horas mortas não era uma atitude muito sensata. A extensa rua no centro da cidade abrigava a velha “Zona Boemia”, antro de perdição! A confusão morava ali. Só de atravessar aquela rua o sujeito chegaria em casa cheirando a perfume de pomba-gira… e seria confusão na certa!

No entanto, depois de três doses da ‘marvada’ no eterno decadente boteco do João Natal, todos os empecilhos saíram do caminho de Pedro Pedreiro. Além do mais, embora fosse casado, e bem casado, com a baianinha Colombina, rechonchuda e de seios fartos, ele tinha inclinação para aventuras e o hábito de tomar umas biritas por ali, apreciando as belas coxas das morenas de vida fácil.

Atiçado pela estonteante Severina do Popote, Pedro Pedreiro resolveu cortar caminho pelo ‘paraíso do baixo meretrício’. Virou a esquina da rua do Rosário e poucos passos depois entrou na rua famosa Davi Campista, rua do amor barato conquistado no balcão… amor de perdição. Se estivesse sóbrio certamente seguiria em frente, apenas passaria pela rua e viraria sem problemas na Campos do Amaral, mas… resolveu tomar mais uma dose da cangibrina na boate da Margarida Leite! Mesmo sabendo que ali uma dose de ‘rabo-de-galo’ custaria quase meio dia de trabalho de servente!

A vitrola tocava uma música muito sugestiva para o local: “Ebrio de Amor”, seguida de “Dama de Vermelho”! A ‘dama’ Margarida Leite, já no crepúsculo de mulher da vida, era agora mulher de comercio… Era a mais rica cafetina da Davi Campista de então. Como ela fora uma das prostitutas mais cobiçadas do lugar, sua casa era agora a mais movimentada. Outrora seu corpo curvilíneo e cheio era a atração… Agora a atração era sua casa! Quem entrasse na sua boate tinha que ficar um pouco mais… E Pedro Pedreiro foi ficando! Pedro Pedreiro – que na verdade era servente – ficou por ali em meio às luzes vermelhas, aspirando a mistura de Água de Colônia com Dama da Noite, Martini, Cuba Libre e ‘suco de gerereba’, ouvindo Pedro Bento & Zé da Estrada, Celinho e Ramon no acordeom! Quando percebeu que o movimento já raleava olhou para o relógio Seiko de pulso – que trazia no bolso por causa da pulseira quebrada – e viu que passava de três da manhã! Preocupado saiu apressado e rumou para casa pensando com seus botões…

– Hoje a Colombina me tira o couro!..

Sim. Pedro Pedreiro ficou sem o couro…

Mas não foi a esposa – a mulatinha de 29 anos, dez a menos do que ele, bem feita de corpo, talvez muito mais bem feita do que dezenas da mariposas das boates soturnas da Davi Campista – quem tirou! Quando Pedro virou a esquina da Francisco Sales o couro comeu! Do nada surgiu um cavaleiro montando um cavalo preto e desceu-lhe a guasca! Enquanto ele tentava se defender do chicote de couro saltando que nem pipoca na panela para lá e para cá sem entender se era um assalto ou alguma vingança pessoal, indagava:

– Pelamordedeus cabra, o que é isso? O que que eu te fiz?

O cavaleiro, cujo rosto ele não podia ver por causa da penumbra da madrugada e da chuva fina de molhar bobo que insistia em cair, e principalmente pelos movimentos do cavalo que parecia tão assustado quanto ele, dizia apenas:

– Isso é hora de estar na rua!? Você não tem família, não tem mulher em casa, não?”

 

***Pedro Pedreiro foi mais uma vítima do chicote do misterioso “Zorro da Zona Boemia” de Pouso Alegre!