MotoCross e barraco em Camanducaia

     Quando passava pela praça Santa Rita na manha de ontem, chegando de Camanducaia, vimos um comboio de motoqueiros trilheiros se preparando para pegar a estrada rumo a Camanducaia. Foi inevitável comentar a coincidência e acrescentamos; “Tomara que tudo termine em festa, sem acidente e sem B.O…

     Não terminou. Já no final da exibição dos motoqueiros, que acontecia no Loteamento Tancredo Neves, o casal L.C.F. & R.R.C. armou o barraco. Enfadado, ele queria ir embora. Curiosa, ela queria ficar até o fim da festa. Discutiram, trocaram desaforos, fizeram ‘biquinhos’ e finalmente o rapaz disse; “Eu vou embora… pode ficar”.

     Andou alguns metros e arrependeu-se de deixar a pombinha no meio dos gaviões e voltou para buscá-la.

     A jovem impetuosa e ofendida fincou pé e recusou-se acompanhá-lo. Sem argumentos civilizados para convencê-la, Roberto encheu sua cara de bolachas no meio do povão. Ela revidou e o barraco só aprumou com a chegada da PM.

     Desta vez, querendo ou não, a mocinha deixou a festa e acompanhou o marido… mas foi direto para a DP.

A historia de Valeria…Como a falta de instrução, uma casinha mal-assombrada e a cachaça podem mudar o destino de uma familia!!!!

       Como todo cidadão do interior João Batista sonhava dar conforto e alegria para sua familia. Apesar do espirito aventureiro, era um homem serio, sisudo e conservador, daqueles que corrigem os filhos onde quer que esteja se eles fazem feiúra. Escola ele frequentou apenas o suficiente para aprender a ler e escrever, não o bastante para assumir uma carreira profissional estável, nem mesmo com mão de obra qualificada. Por isso, sem estudos e sem profissão definida, em 1993 João Batista, resolveu partir em busca de aventuras. Deixou sua pequena Camanducaia e foi parar em Carlopolis no norte do Paraná, levando a esposa e os tres filhos recem-saidos das fraldas.

     A bagagem era pequena, pouco mais do que malas de roupas, mas ia recheada de sonhos. Inicialmente teve sorte. Conseguiu um emprego de zelador num predio da cidadezinha de 13 mil habitantes banhada pela imensa represa artificial. Para morar, conseguiu de graça uma singela casinha mobiliada nos fundos de um Terreiro de Macumba em troca de cuidar do imovel. Mal sabia ele que aquele local ja era habitado e muito ‘mal habitado’ por sombras que somente permitiriam que eles morassem ali se ‘jogassem no seu time’. 

      Em pouco tempo a sisudez de João Batista deu lugar à irresponsabilidade e ele, até então abstemio, apaixonou-se perdidamente por Severina do Popote e entregou-se à bebida. Não tardou a perder o emprego de zelador. Como desgraça pouca é bobagem, à medida que a situação economica definhava, a prole aumentava. Desempregado, sem ter como sustentar a familia e sem dinheiro para voltar para Camanducaia onde deixara parentes, ele passou a pedir esmola pelas ruas. Sua esposa Vanderleia passou a ajudá-lo… a consumir o famigerado suco de gerereba. Agora, além de sustentar meia duzia de rebentos, todos na primeira infancia, tinha que sustentar também o vicio de ambos.  Precisava conseguir ajuda ao menos dos filhos. E conseguiu. A garotinha Valeria, que quando sairam de camanducaia era a filha do meio, tinha agora 9 anos e passou a ajudá-lo… a roubar. Não lembravam nem de longe a famosa dupla “Bonnie & Cleide”, mas formavam uma dupla quase perfeita. Valeria, pequenina, mirrada, mal nutrida, cabia perfeitamente em pequenos espaços e janelas de residencias. Ele proprio ajudava a filha passar pelas grades dos quintais e frestas de portas e janelas. Passaram a viver de pequenos furtos e daria até para fazer um pé de meia se Valeria não tivesse se apaixonado…. pela cannabis sativa de Linneu. Agora eram tres viciados em casa. E a familia continuava aumentando que nem coelho.

      Os sonhos de grandeza do casal João Batista/ Vanderleia, pelo menos num aspecto estava se realizando. Deixaram Camanducaia com tres filhos e mesmo em meio a derrocada moral conseguiram ter outros sete filhos na cidadezinha paranaense. Um deles morreu sem ver o mundo cruel dos pais. Certa manhã Vanderleia saiu de casa para mendigar levando numa sacolinha de plastico um dos filhos. No primeiro boteco que avistou deu um abraço na katia…ça. Depois da primeira dose, como sempre acontecia, perdeu a razão e a noção de quantidade e qualidade. Bebeu o resto do dia. No final da noite, uma alma caridosa ou curiosa que lhe deu umas moedas, mesmo sabendo que seriam trocadas por umas doses da Cangibrina, quis saber o que ela levava na sacolinha. Nem ela sabia mais. Quando o samaritano abriu a macambuzia sacolinha, lá estava o bebê. Palido, desnutrido, duro, frio, sem vida. O medico legista atestou apenas inanição mas não soube precisar quando ele parara de respirar. Talvez  no final da manhã. Vanderleia passara o dia inteiro carregando o caçulinha morto pela cidade sem se dar conta disso.

      Se Vanderleia assistia passivamente o definhar dos filhos, João Batista, não. Muito pelo contrario. Ele enfrentava até balas para defender os filhos, especialmente sua ‘parceira’ Valeria, que lhe garantia os trocados para a cachaça. Certa vez os homens da lei vieram buscar a adolescente, a mando do Juizado da Infancia e Juventude para interná-la em clinica de tratamento e João Batista escorou os homens da lei com um arfanjo. Foi necessario atirar em suas pernas para levar a pequena ladra ja viciada na pedra bege fedorenta.

      Depois de sucessivas audiencias no Conselho Tutelar e Juizado da Infancia, finalmente a justiça tirou as crianças do antro de perdição. Tres infantes foram mandados para adoção no estado do Mato Grosso e outros tres foram para Rondonia.

     Para se ver livre das deprimentes cenas de mendicancia, furtos e consumo exagerado de alcool que manchavam a acolhedora cidadezinha a Assistencia Social de Carlopolis ‘extraditou’ o restante da familia para Camanducaia. João Batista, depauperado moral e financeiramente voltou para ‘casa’ com a mulher e os mesmos tres filhos que levara. Voltou e trouxe a mala – Mala? Quando muito uma mochilinha!!! –  recheada dos vicios adquiridos naquela casinha nos fundos do “terreiro” de macumba de Carlopolis.

     Sem casa para morar, sem credito, sem saude e sem moral, o outrora sisudo João Batista ficou uns dias em casa de parentes mas não tardou a retomar a mendicancia, unica atividade cujos ‘requisitos’ preenchia. E seguiu capengando moral e fisicamente – a bala do policial em Carlopolis deixou sequela – até o ano passado quando o fígado não resistiu mais ao banho diario de suco de gerereba. Morreu tão pobre quanto os espiritos com os quais dividiu aquela casinha nos fundos do Centro Espirita lá em Carlopolis

      Vanderleia, apesar da degradação fisica e moral, aos quarenta anos, com aparencia de sessenta, ganhou um sopro de vida. Separada, por lei, dos filhos, separou-se do que restava da familia; o decrépito marido e foi viver em Joanópolis, logo depois da divida do Estado onde voltou a juntar os cobertores com um novo companheiro. Mas não conseguiu se desgarrar completamente da estonteante cangibrina.

      O filho mais velho que ja conhecia Severina  do Popote e a fumacinha do diabo, arrumou uma companhia feminina, que vem tentando mante-lo na linha – Mulher quase sempre endireita o homem – A caçula mineira teve melhor sorte… foi entregue para adoção a uma familia de Divinopolis.

        E Valeria?

       A jovem Valeria, apesar das marcas desregradas das drogas pelo corpo, ainda mantinha alguns atrativos fisicos e alguma experiencia no trafico. Não foi dificil conseguir ocupação – perniciosa – em Camanducaia. Em pouco tempo estava fazendo ‘programas’ na beira da Fernão Dias. A prostituição era complementada com a atividade de ‘mula’ do trafico. Sua casa era a rua, a estrada, muquifos de amigos, companhia de noias, mendigos…. Mesmo assim, apesar de não dar a minima para sua dignidade, Valeria defendia com unhas e dentes suas conquistas – Conquistas!?!?!? Esperneava e chorava quando o irmão lhe tomava as merrecas que ganhava na boléia de um caminhão, tendo que encarar um suado e mal-cheiroso caminhoneiro por dez reais ou quando o guampudo deixava de lhe pagar por um ‘aviaozinho’.

      Aos 19 anos deu a luz a um filho – que não teve nenhum pudor em entregar para adoção. Não teve mais porque implantou DIU para evitá-los. Mesmo sendo util ao trafico a vida não lhe sorriu. Apanhava até do irmão, o unico que ficou na cidade. E recebeu golpes de machado do padrastro nas poucas vezes que visitou a mãe. O que ela aprendeu na pequenina Carlopolis, foi só um aperitivo. Entregando drogas em Camanducaia, Cambui, Extrema, Bragança… Valeria conheceria todos os meandros do crime. Mas conhecê-los não lhe daria dinheiro, poder e nem mesmo status.

      Apesar da vida completamente desregrada, Valeria não era uma pessoa má. Vivia aquela vida porque não conhecera outra. Era fragil, carente, não tinha freios na boca e nem escolhia vocabulario.

 –“ Aquele safado tomou meus dez reais… Eu que ‘dei’ para o cara para ganhar, era meu…” – Se referindo ao irmão que vez por outra à ‘assaltava’, muito mais preocupado com o dinheiro do que com o que ela fazia para ganhá-lo. Em outra ocasião chegou ao Pronto Socorro da cidade toda esfolada e contou à tia enfermeira;

 – “Eu fui levar uma remessa para um nóia, quando cheguei lá, eram tres… Eu ja estava chapada. Eles me ‘comeram’, me bateram e me mandaram embora”. Quando voltei p’ra ‘biqueira’ sem o dinheiro e sem a droga, tomei outra surra…”.

      Usando e entregando a erva marvada, a pedra bege fedorenta e farinha do ‘capeta’, ela se aproximava a passos largos ‘dele’. Jamais passaria de um mulambo no crime. E foi assim que morreu.

     Numa noite fresca do dia 03 de outubro – as noites de Camanducaia são todas frescas, exceto as de inverno… que são geladas – Valeria consumiu sua ultima dose de suco de gerereba na companhia de mendigos e saiu pela estrada. Seu corpo foi encontrado na manhã seguinte, no trevo da cidade, com marcas de estrangulamento. A mãe ligou, de Joanopolis, para confirmar a noticia da morte da filha… dois dias depois do enterro´… bem menos concorrido do que o de Amy Winehouse.

     Foi assim, numa madrugada fria na beira da estrada, aos 25 anos, que terminou a saga da menininha que aos 09 anos de idade trocou a boneca pelos pequenos furtos na companhia do pai embriagado nas ruas da cidadezinha beira-lago do norte do Paraná. Se vivesse mais, certamente entraria para o folclore de Camanducaia, com seus rompantes de ‘brabeza’ desbocada, com seus momentos de ternura, com seu olhar carente dizendo; “Me leva p’ra casa… cuida de mim”…

     Dividir gratuitamente o espaço, com dezenas de espiritos perturbados, atrazados, desajustados e cachaceiros na casinha de meia-água nos fundos do ‘terreiro’ em Carlopolis, custou caro à familia de João Batista.

Triangulo amoroso, barraco e tentativa de suicidio em Camanducaia

      A jovenzinha Arian viveu um ardente romance com Airton, com quem teve um filho. A falta de ‘prendas domesticas’ da moça acostumada receber tudo de mãos beijadas da mãe, ofuscou o brilho do romance e o casamento acabou.

     Precisando trabalhar para se sustentar ela conseguiu emprego de faxineira no motel “Momentos” de Camanducaia. Lá conheceu o gerente Marcos e como estava livre, leve e solta, enamorou-se do companheiro de trabalho. Viveu ‘momentos’ de idilio com o moço. Mas para algumas mulheres, amores são como chuvas de verão; eles vem e vão. Quando parecia que fincaria raizes no novo ninho Arian começou frequentar em demasia a casa da avó, perto da casa do antigo marido, para despertar o ciume de Marcos.

      Com o relacionamento abalado, preocupado com a possibilidade de perder a cara-metade para o antigo amor, Marcos tentou tirar o escalpo da jovem. O momento de destempero do rapaz aconteceu no interior do motel ‘Momentos’, onde antes viveram momentos de fogo e paixão. Ele somente não acabou definitivamente com o romance porque a mae de Arian socorreu-a e ambas distribuiram socos e pontapés, inclusive naquela região que faz até o mais valente dos homens se curvar…

      Ao deixar o motel brigado com a morena, Marcos abraçou a loira gelada e tentou se matar. Tomou um coquetel de Losartana com higroton, captopril e rivotril e saiu pela cidade atras do volante do seu golzinho branco. A cabeça ficou grande, a rua ficou pequena e um poste irresponsavel entrou na sua frente. O choque foi tão violento que o poste ficou desmaiado no chão. Ao ser levado para o hospital com algumas escoriações, Marcos contou aos policiais e às enfermeiras que havia rolado na poeira com o rival Airton, por isso estava ferido e tentara se matar.

       Curou as feridas do corpo mas não as da alma e continuou com as ideias suicidas. Ao sair do nosocomio foi logo se atirando na frente do primeiaro carro que viu passar. ‘Tirou uma fina’… e ganhou xingamentos do motorista furioso; “ Ô, maluco, quer se matar vá pra BR….”. E Marcos foi mesmo. Desceu a rua resmungando e fazendo graça e se deitou no meio da pista da Fernão Dias.

       Apesar de todo forrobodó, Marcos é como todo suicida apaixonado; daqueles que faz a lambança com os dedos cruzados nas costas, torcendo para não acontecer nada, pedindo ‘pelamordeDeus’ para alguem salvá-lo. Por isso, deitou-se na pista do trevo, em frente o posto da BRVida, onde havia dezenas de socorristas de plantão. Nem chegou a engraxar as rodas de uma carreta. Foi demovido da ideia insana … ou infantil, e levado de volta para o hospital onde recebeu um sedativo e dormiu até o meio dia de sexta feira… até passar os xiliques suicidas.

      Mas… pelo andar da carruagem, o triangulo amoroso nascido no motel “Momentos”, ainda promete ardentes momentos …

Roubou mas não conseguiu levar

      Desde que eu usava calça curta lá no meu aconchegante bairro dos Coutinhos, eu já ouvia o velho ditado; “…Feio é roubar e não poder carregar…”. Se assim é, o meliante J.H.S. de 26 anos, além de fazer feiúra, ficou com cara de tacho ao pé da noite de ontem em Camanducaia.

       J. H. entrou sorrateiramente numa loja de roupas do centro da cidade e passou a mão leve n’algumas peças e saiu de fininho. Mais acima, na Avenida Rio Branco, ao passar pelo cidadão C.B.F. – não confundir com a milionária entidade que promove o campeonato brasileiro de futebol, de cujas tetas Ricardo Teixeira não larga nem morto – bem ao estilo ‘trombadão’, deu-lhe um empurrão e tomou-lhe o aparelho celular. Não era seu dia. C. B. atracou-se com ele tentando recuperar o aparelhinho e rolaram na poeira.

        Antes que o meliante recebesse a merecida sova, os homens da lei passaram por ali e puseram fim à contenda. Depois de sacudir a poeira C.B. justificou as bolachas que dera no meliante e entregou o caso e o malfeitor para dona lei.

      Pois é… roubou e não deu conta de carregar. Sentou ao piano, assinou um 157 e foi se hospedar no velho hotel de Camanducaia.  Que feiúra…..!!!

Perfeito, a pistola e o panetone

      Cheguei a Pouso Alegre há 40 anos, quando a população mal somava 40 mil habitantes. Não cresci ainda o suficiente para retribuir as possibilidades que Deus me deu, mas cresci e vi a cidade crescer e quadruplicar. Sempre me alegrei com o crescimento das pessoas à minha volta, especialmente aquelas do meu convívio que se tornaram social e profissionalmente homens bem sucedidos, alguns com os quais tive a felicidade de compartilhar parte de minha infância, adolescência e juventude.

        Se me alegro com o sucesso, me entristeço com a decadência de meninos, que do meu convívio estreito ou não, vi crescer à minha volta. Não sei dizer quantos, mas vi crescer muitos garotos certamente com sonhos iguais aos meus ou de meus amigos, mas que nas encruzilhadas da vida fizeram a opção errada. Muitos na verdade não fizeram opção alguma. Apenas não ouviram uma palavra amiga, não tiveram um afago paterno ou um braço firme e generoso no ombro para mostrar o caminho certo e seguiram sem rumo. Desviaram-se para o que parecia mais fácil, mas que se tornou doloroso, lamacento e quase sem volta caminho do crime.

     C.A. da Silva era um desses garotos. Esperto, sonhador, franzino, criado numa rua estreita do bairro São João com vários outros irmãos. Tinha medo dos outros garotos de sua idade, pois era menor e mais fraco que eles, mas logo descobriu que se batesse primeiro poderia amedrontar os outros. Ainda impúbere C.A. ganhou um apelido que o acompanharia pela –  curta – vida toda; Perfeito.

     Conheci Perfeito por acaso numa situação totalmente inusitada. Certa manha de meados de dezembro descia eu lentamente uma rua do bairro São João, conduzindo a 6252 juntamente com meu parceiro e futuro afilhado Fernando, quando avistamos à nossa frente um garotinho de cerca de doze ou treze anos, entre outros da mesma faixa etária, exibindo uma pistola oxidada, como se estivesse prestes a disparar azeitonas quentes. Exibindo mesmo, tanto que me aproximei com cautela e com a mão esquerda, de dentro da viatura tomei-lhe a reluzente pistola… de plástico. Assustado, não tanto pelo fato de ser surpreendido pela policia, muito mais por ter perdido seu brinquedo, Perfeito mostrou-nos sua casa, alguns metros rua abaixo. Instantes depois sua mãe, sem muito constrangimento, explicou que dera ao filho dois reais para comprar um brinquedo e não sabia que ele queria comprar uma arma – E certamente não se importaria se ele tivesse dito.

         Depois do ameno sermão seguimos nossa rotina pelo bairro. Uma semana depois passamos novamente pela mesma rua, na ágil 6252 e lá estava Perfeito sentado na sombra da própria casa ladeado pelos amigos e irmãos. Como da vez anterior, de dentro da viatura fizemos o inverso. Entregamos ao franzino garoto uma bola de futebol e um panetone. Não disséramos nada quando tomamos a pistola, mas parece que Perfeito estivera ali todos os dias esperando por ‘aquela compensação’. Um dos garotos correu para dentro da casa para entregar à mãe o panetone e os outros imediatamente fizeram a bola rolar e quicar na rua poeirenta defronte sua casa como se fossem crianças!!! Não precisávamos de palavras, o gesto já dissera tudo mas, ao nos afastarmos, Perfeito desviou por um instante os olhos da bola que já estava manchada de poeira, levantou um dos braços e… acho que ele disse “obrigado”. Foi o melhor presente de Natal que já dei a alguem.

      Anos depois, ao folhear os BOs na Delegacia de Policia a procura de assuntos para meu programa “Direto da Policia”, encontrei um BO da noite anterior que narrava uma tentativa frustrada de assalto a um supermercado do bairro Santa Luzia. Segundo o relato dos policiais, o comerciante percebera a presença de um sujeitinho com pinta de somongó, espreitando sorrateiramente o estabelecimento e chamara os homens da lei. Na abordagem fora encontrado com o ‘futuro’ gatuno um trezoitão meia-vida, porém devidamente municiado, pronto para ameaçar e vomitar azeitonas quentes se fosse necessário. O frustrado assaltante era C.A.da Silva, o Perfeito, agora com 15 anos e… uma arma de verdade.

         Embora Perfeito já fosse conhecido por outros delitos mais leves, este foi meu primeiro contato com ele depois do presente de Natal. Muitos outros ainda aconteceriam. Furtos, uso e trafico de drogas, roubos, tentativas de homicídio ainda engrossariam a ficha criminal deste menino que vi crescer. Certa manha ao chegar para trabalhar no CPD, lá estava no banco da velha delegacia, o garotinho Perfeito, esperando uma formalidade para ser liberado, pois caíra nos braços da PM, fazendo um “aviãozinho” na madrugada e como ainda era inimputável, depois de enquadrado em ‘procedimento especial de menor’ voltaria para as ruas. Ao ver-me puxou prosa e com sorriso infantil e maroto de gato que acabou de comer o toucinho, desfiou a velha ladainha; “…parei com a nóia”. Vou arrumar um ´trampo´ e mudar de vida”. Eu ainda conversava com ele no corredor quando Teobaldo veio apagar seu sorriso, já um pouco sacana de quem diz: “fica na tua mané, daqui a meia hora ´tô´ na rua e já vou fazer outra parada”, “vocês nunca vão me pegar”. Neste momento ele foi pego. O detetive estendeu-lhe pulseiras de prata ao mesmo tempo que informava a mim e a ele; “ Você completou 18 anos ante-ontem ”. Agora você é “dimaior”. Vai ser fritado no 12 e ´subir´. E Perfeito que naturalmente já conhecia o velho hotel da Silvestre Ferraz por temporadas de custodia de 45 e  90 dias, perdeu completamente a vontade de exibir os alvos dentes. Subiu uma hora depois para o ‘lar, doce lar’ para uma temporada de 4 anos.

         Na verdade não ficou tudo isso não. Dias depois na calada da noite fez um ´tatu´ no teto, subiu ao telhado, desceu pela ´tereza´ na frente do velho hotel e dobrou a serra do cajuru. Entre outras coisas, Perfeito foi pra rua acertar uma treta com Zezinho Fernandes, um velho desafeto do bairro… mas não foi perfeito. Na briga recebeu um golpe de lapiana na região abdominal e teve que adiar o acerto de contas. Levado para o PS, ele não morreu, mas voltou para o velho hotel e durante muitos meses carregou uma bolsa de colostomia presa à cintura. Mas nem isso tirou-lhe a mobilidade e nem abrandou seu coração insensível e sedento de poder. Jogava futebol daquele jeito mesmo no pateo da cadeia nos dias de banho de sol e certa vez quase matou um preso ´pé-de-couve´ que assistia a pelada da ´ventana´ do xadrez, apenas para mostrar que podia faze-lo. O homicídio por asfixia junto às barras de ferro da janela só não se perpetrou porque ouvimos os gritos abafados da vitima e de seu irmão que tentava puxar o homicida pelas pernas de volta para o pátio.

         Aos vinte e dois anos, um metro e sessenta, 52 quilos, ágil como um gato preto que era, Perfeito era um dos meliantes mais conhecidos da Policia e um dos mais temidos e respeitados do velho hotel. Mas ele não podia parar, pois a lógica é simples: quem para é ultrapassado e como liderança na prisão se conquista com força, violência e maldades, quem perde a liderança se torna um mortal comum e poderá ser a próxima vitima de quem busca o poder. Para manter-se em evidencia, na crista da onda, o pequeno meliante agitava diariamente o velho hotel, arrumando confusão com outros presos e a com a carceragem. A solução encontrada pela administração para baixar-lhe o facho foi transferi-lo para outra cadeia. Em Bueno Brandão Perfeito não tardou a colocar as manguinhas de fora… e superou-se, exagerou… colocou fogo na cadeia. Foi transferido para Cambuí. Local perfeito para a aprendizagem de Perfeito. Com meliantes paulistanos que todo dia descem a Fernão Dias com grandes cargas de drogas e acabam caindo nas malhas da séria e eficiente policia mineira, o garotão do panetone faria pós-graduação no crime. Na terra dos Lambert, Perfeito naturalmente quis mostrar que era um perfeito líder… um perfeito homem mau. Ao ouvir o comentário de um colega de hospedagem de que não gostava de tatuagem, embora tivesse varias pelo corpo, Perfeito tratou de ajuda-lo a desfaze-las e para isso usou uma lamina de gilete… sem anestesia. A ‘cirurgia’ pegou mal e causou agitação e revolta no velho hotel de Cambuí. Perfeito tornou-se ‘persona non grata’ e sua permanência ali perigava explodir o caldeirão. Com a superlotação reinante na região e a fama de agitador de cadeia, Camanducaia, Santa Rita, Albertina, Extrema, Ouro Fino, Borda ou São Gonçalo não o queriam nem pintado de ouro. O jeito foi devolve-lo à origem. E o pequeno grande meliante recebeu seu ultimo ‘bonde’; retornou a Pouso Alegre. Chegou numa sexta feira no final da tarde para sua ultima viagem. Seu destino já estava traçado.  Quem vai ao vento, perde o assento… Ele havia perdido seu posto de lider. A noite transcorreu aparentemente normal na cadeia. Apenas um som de ‘rap’ ou de tv mais alto numa ou noutra cela mas nada que fugisse à rotina. E ainda que a guarda fosse alertada, o que fazer quando vinte homens embrutecidos e fedidos num cubículo que cabem seis colchões estendidos no chão, decidem acertar suas contas? Na manha de sábado ao entrar na cadeia para a inspeção de rotina, o carcereiro foi informado que havia um “probleminha” no X 08. Enrolado em ‘cotonete’ – um lençol imitando uma camisa de força – Perfeito agora parecia perfeito; calado, inexpressivo e frio jazia pendurado por uma ´tereza´ na ventana.

      Uma bola de futebol e um panetone às vésperas do Natal, não foram suficientes para mostrar a C.A. da Silva, o Perfeito o caminho perfeito a seguir. No ‘torto’ ele não foi longe…