O Sorveteiro
“Quando ensaiava os primeiros passos para se afastar do soturno prédio, um dos sujeitos pendurados na grade gritou”:
– Hei picolézeiro… Tem de groselha? Dá um aí!
Ficou na dúvida se podia ou deveria se aproximar. O pouco que sabia sobre cadeia e presos, sabia que não era um lugar comum, que não eram confiáveis. Se estavam atrás das grades é porque tinham matado ou roubado! Matá-lo certamente não podiam, mas será que não iriam roubá-lo? Enquanto pensava no que fazer, um preso de outra janela, com as pernas numa calça arregaçada e o dorso desnudo, gesticulando os dois braços através das grades, gritou irritado:
– Eu quero um de framboesa! Anda logo, pirralho!
Se o pequeno vendedor de picolés já flertava com o medo de se aproximar das janelas da cadeia, neste instante sentiu pavor! E agora? Atendia aos pedidos dos presos ou saia correndo ali? Foi salvo – ou encorajado – pelo gongo! Um sujeito que passava pela rua recebeu um pedido parecido…
– Ei ‘seu Zé’… Dá um cigarro aí! – pediu outro preso, um albino, na janela ao lado.
O sujeito de meia idade, empertigado, de calça caqui e camisa social azul clara, usando chapéu de feltro, subiu no pequeno murinho que circundava o tosco prédio, aproximou da janela, sacou da algibeira da camisa um maço de Parker de filtro amarelo e distribuiu vários cigarros. Antes mesmo de ouvir os agradecimentos, ou pedido, estendeu também um ‘bing’ para acender os cigarros e esperou a devolução. O garoto criou coragem. Afinal, levava pendurada no pescoço uma caixa de isopor cheia de picolés… Para vender! Não podia escolher os clientes… Desde que pagassem! Aproveitou a ‘segurança’ do ‘seu Zé’ e se aproximou das janelas. Vendeu nove picolés de frutas, coloridos, e dois de coco-queimado. O pagamento pelos picolés demorou. Só recebeu o dinheiro quando uma voz grossa saiu de dentro de uma das celas:
– Paga logo os sorvetes! O moleque está trabalhando… Ele não está com a vida ganha igual vocês não, seus talaricos! – disse a voz autoritária. O sorveteiro nunca soube se a voz era do carcereiro ou se de algum preso que mandava nos demais!
Esse foi o primeiro contato do garoto vendedor de picolés com o velho hotel da Silvestre Ferraz. Era verão de 1969. O velho presídio construído em 1932 tinha menos de quarenta anos de vida, mas já era velho na aparência. Paredes sujas e manchadas pela água escorrida das chuvas, trincas nos beirais no alto, e gigantescas janelas sem vidraças. “Se chover de vento deve alagar tudo lá dentro”, pensou o garoto. Tinha espaço digno para trinta e dois hospedes – cerca de zero vírgula um por cento da população da cidade, que beirava na época quarenta mil habitantes. No entanto, entre condenados, provisórios e correcionais, abrigava na ocasião pouco mais de vinte presos – a superlotação só chegaria trinta anos depois com a expansão das drogas, na virada do século. Os de bom comportamento, a maioria, ficava nas três celas da esquerda, de frente para a rua, onde podiam ter contato com transeuntes que passavam ressabiados ao lado do prédio, a poucos metros das janelas, e podiam conversar, pedir cigarros e até comprar picolés dos garotos que passavam por ali, como o assustado menino de dez anos de idade daquela tarde.
O vendedor de picolés voltaria ao velho presidio onze anos depois, em 1980. Desta vez, e de tantas outras, como policial. Nos anos seguintes o jovem Detetive de Policia e acadêmico de Direito, iniciando a carreira paralela de jornalista e cronista policial, batizaria a velha cadeia com o nome irônico e jocoso de “Velho Hotel da Silvestre Ferraz”! A partir de então, teria muita história pra contar…