Eu estava no jardim quando o telefone tocou. Era minha esposa. Pela voz percebi que ela ia chorar. Pensei por alguns segundos antes de dizer qualquer palavra que rompesse o dique de lagrimas. Não consegui… e o pranto caiu!
-… Ela está horrível! A perna esquerda está toda esmagada e ela está respirando com dificuldade… acho e que não vai sobreviver!!!
Tentei ordenar as idéias e procurar palavras para entrar no dialogo. Uma medica, por pior que seja o quadro do paciente, contem as emoções, não se deixa abalar. Qual parente dela estaria em situação tão deplorável a ponto de derrubá-la do salto? Não era ninguém da família… Por enquanto! Mesmo que tivesse perguntas bem formuladas eu não conseguiria fazê-las. Conheço as mulheres. Elas não respondem perguntas, não deixam falar, elas simplesmente desfiam o rosário… especialmente quando sob efeito de fortes emoções. A minha é particularmente assim. Resumi minha parte do diálogo dizendo apenas: conte-me tudo!
– Alguém abandonou uma Waimaraner aqui perto do hospital. Ela foi atropelada, está com a perna esmagada, perdeu muito sangue, está anêmica… magrinha, pele e osso. Já faz vários dias. As feridas já cicatrizaram com os ossos fora do lugar. O pior é que ela é velhinha, está muita fraca…
– Você já fez o que tem que fazer?
– Já… Posso levá-la para casa – aumentou o soluço para fazer pressão!
– Ahnn – fiz suspense, só para valorizar, pois o ‘não’ seria totalmente desaconselhável – Tudo bem – disse finalmente.
– Ahhh… – Exclamou ela mudando as emoções da água para o vinho. Há quarenta quilômetros dali pude vê-la dando pulinhos de alegria como uma criança que ganha um brinquedo e seu sorriso de canto a canto da boca. Acho que o Daniel quando senta-se numa moto não fica tão efusivo!!
A velhinha atropelada chegou em casa na hora do almoço… com status de estrela. Quando desci para vê-la, ela já estava confortavelmente instalada numa caminha nova, na lavanderia tendo ao alcance do focinho afunilado duas tigelas novas, uma com água e outra com ração. Toda tristeza de minha esposa pela aparência deplorável da cadela, dera lugar a sorrisos de satisfação por adotá-la. Quando olhei para aquela figura triste, quase moribunda estirada na caminha macia e ouvi a pergunta da Tatiana sobre o que eu achava, olhei bem e entre incrédulo e sarcástico pronunciei em bom tom: Linda!!!
Exclamação geral! Para nossa surpresa, a cachorra até então sem eira e nem beira e naturalmente sem um nome, moveu o languido e magro pescoço, tentou abanar o cotó de rabo, levantou a cabeça e fitou-me sorrindo ao tempo que perguntava:
– Oi, você me conhece…?
Deduzimos todos ali naquele instante… Seu nome era “Linda”.
Dois dias depois fui à Conceição dos Ouros investigar a origem da Linda. Não foi difícil chegar ao seu antigo – e cruel – dono. Cães das raças Waimaraner, São Bernardo, Dog Alemão ou mesmo o Mastim Napolitano, pelo porte e beleza, não passam despercebidos. Linda tinha até família… Tinha uma filha idêntica – sem as marcas dos anos e as do atropelamento, claro – Era um mecânico. Quando lhe perguntei o nome da garbosa cadela ele respondeu todo orgulhoso:
– Esta é a Bela…
De chofre emendei:
– … E onde está a mãe dela, a Linda?
Já peguei muita gente nesta armadilha!
Pego de surpresa, só aí o mecânico percebeu minha presença. Olhou-me de soslaio, desconfiado, pensou rápido e soltou:
– A Linda…? Eu ‘dei ela’ para um amigo de São Jose dos Campos. Faz uns três meses. Nunca mais vi!
Estava desfeita a curiosidade e confirmado o nome de batismo da cadela atropelada. Não havia mais nada a fazer. Fingi que acreditei na historia do ex-dono da Linda e fui embora.
Não perguntei a idade da Linda, pois o mecânico certamente não saberia e se soubesse não diria. Mas não era necessário. Seus bigodes, seu jeito lento de andar agravado pelos ferimentos do corpo e da alma, seu latido fundo e rouco e seu desinteresse pelas coisas do quintal – até porque havia quase uma dúzia de cachorros mais novos e fortes para fazer isso – denotavam sua idade: oito ou nove anos. Viveria feliz o resto dos seus quase oitocentos dias…
Viveu mesmo. Após um rigoroso, paciente e esperançoso tratamento na “Clinicao” – A dedicadíssima e competente Cris achou que seria necessario amputar-lhe a perna, mas resolveram tentar primeiro o procedimento menos doloroso – curou as feridas do corpo. Mudou-se da lavanderia para a garagem. Passava os dias modorrentos no jardim e à noite dormia junto à porta de serviço. Era preciso levantar o pé para não pisar nela. Ficou naturalmente manquitola, mas se movia com certa facilidade. Quando nossa numerosa matilha saia no rastro de uma lebre, lagarto ou outro bicho pelo cafezal, Linda se aventurava também na perseguição. Ia no fim da fila, mancando e gritando triste:
– Esperem por mim seus moleques …
Vez por outra Linda voltava às suas origens primitivas; sorrateiramente encantoava uma galinha gorda na tela do galinheiro, matava e quando percebíamos, só as penas… Um puxão de orelha, que ela parecia entender muito bem, baixava a cabeça e voltava para garagem tentando esconder o cotó entre as pernas.
Certa dia chegamos em casa de madrugada e levamos um susto. A garagem parecia um campo de guerra, cenas de terror… Havia sangue espalhado por todo lado. Era impossível descer do carro sem pisar nas poças e manchas de sangue. Sob uma lona que servia de cama estava linda… o que restava dela. Estirada na lona já não obedecia aos chamados. Trazia um extenso corte na cabeça e havia perdido muito sangue. Conseguimos um veterinário no meio da madrugada e uma hora depois ela voltou para casa
com a cabeça costurada e cheia de bandagem. Ainda respirava mas nunca mais ouvimos sua voz triste que parecia vir do fundo de uma caverna. Na manha seguinte sepultamos seu corpo ossudo num canto do jardim.
Na pressa de socorrer Linda de madrugada, nem investigamos o ‘cachorrocidio’. Na certa foi a Lassie, que embora morasse do outro lado da casa, debaixo de minha janela, não gostava de dividir meus cafunés ou então o Jack, o pastor Belga que foi adotado já adulto e nunca fez amizade com a ‘família’. Era sábado. Vai ver o caseiro esqueceu de abastecer sua tijela – ele também morava do outro lado da casa, debaixo da janela da Rhayane e na disputa pela comida da Linda acabou praticando lesões graves seguida de morte.
Linda, a Waimaraner de Conceição dos Ouros sucumbiu à luta pela sobrevivência… animal, mas morreu como viveu seus últimos anos…. com dignidade.