Meninos assassinos

Diariamente ela dobrava aquele morro de volta do trabalho! Até que certa tarde ela não chegou em casa…

Toda tarde ela passava por ali. Descia do ônibus no ponto final, defronte a Britasul, atravessava a cerca de arame farpado, pegava o trilho batido, por ela própria, subia lentamente o pasto, virava no cume do morro e descia margeando o capão de mato até chegar à casa dos pais do lado oeste do morro.

Era a única pessoa da família – e das redondezas – que fazia esse trajeto para chegar à cidade, a qual avistava de longe. O que a jovem não sabia é que seus passos lentos pasto afora eram observados por dois pares de olhos malvados, insensíveis e gananciosos! Até que certa tarde ela não chegou em casa.

Os pais perceberam sua ausência mas esperaram até a noite para saírem à sua procura. Começaram pelo salão onde ela trabalhava na cidade, mas estava fechado. Procuraram pelas colegas de trabalho, mas ninguém sabia seu paradeiro.

– Ela saiu um pouco mais cedo do trabalho, pegou o ônibus como sempre e foi pra casa – disse uma colega.

A jovem, bela e delicada cabeleireira não era sequestrável. Não tinha namorado, não tinha problemas familiares ou emocionais conhecidos. Seu desaparecimento era um mistério e, naturalmente foi levado ao conhecimento da polícia. Depois de uma noite de angústia e tensão, enquanto os homens da lei iniciavam os levantamentos de praxe, os próprios familiares saíram à sua procura. Junto deles estava um garoto, que fazia pequenos serviços braçais no sítio dos pais da cabeleireira. Começaram refazendo o trajeto que ela fazia todas as manhas a caminho do trabalho. Subiram o pasto e, na virada, decidiram adentrar o capão de mato. A cabeleireira estava lá! Estendida no chão, inerte, sem vida. A cena era chocante, tenebrosa! J. tinha o crânio fraturado… E faltava parte do rosto!

Segundo os peritos e o médico legista concluíram, os ferimentos na cabeça e o sangue atraíram a presença de bichos, ou talvez porcos do próprio sitio dos pais, e eles teriam comido parte do seu rosto! Além da violência na cabeça, a jovem tinha também marcas de estupro.

A rotina da jovem cabeleireira de 28 anos, moradora na grota do bairro Cemig, em Pouso Alegre, era bastante conhecida pelos moradores do bairro Faisqueira. Era ali que ela embarcava toda manhã e desembarcava toda tarde no ponto final do ônibus circular, de volta para casa. Subia o pasto, chegava ao cume próximo da pedreira da Britasul, avistava a cidade e descia os metros restantes até a casa dos pais. A investida da Policia Civil na busca do assassino começou por ali, interrogando moradores, comerciantes e qualquer pessoa que pudesse esclarecer o violento e horrendo crime.

A informação contundente veio de um vendeiro do bairro, perto da igreja. Segundo ele, na noite passada, dois fregueses que até então não tinham mais do que moedas para gastar na sua venda, haviam consumido grande quantidade de doces, salgados e refrigerantes. Os dois ‘fregueses’ da venda foram os primeiros a receber a visita dos homens da lei. Surpreendidos com a intempestiva visita dos detetives, com pouco mais do que um centavo de prosa eles abriram o livro… e confessaram o hediondo crime.

A bolsa da cabeleireira com documentos e demais pertences, prova material do sinistro, estava enterrada atrás de uma moita de bananeira no quintal da residência dos assassinos.

Ao piano do paladino da lei na DP os assassinos contaram com detalhes a dinâmica simples dos fatos. A abordagem, segundo eles, foi fácil, pois eram conhecidos da cabeleira. Quando ela dobrou o morro os dois pularam sobre ela e a arrastaram para o mato. Após quebrar seu crânio com uma pedra e tomar sua bolsa, abusaram do seu corpo e, como bichos do mato, a deixaram entregue aos bichos do mato.

A pena para o crime de Latrocínio, segundo o Código Penal, pode chegar a 30 anos. O estupro, segundo o mesmo código, chega a 10. Caso fossem maiores de idade, os dois irmãos poderiam se hospedar no Hotel do Juquinha por pelo menos 30 anos. E.N. o mais fortinho da foto acima e mais velho, tinha 16 anos. O menorzinho, N.M., o mesmo que trabalhava no sítio do pai da cabeleireira e fingiu ajudar a procurá-la, tinha 12 anos.

Após assinarem o 157 c/c 213, os pequenos latrocidas foram se hospedar na Febem de Sete Lagoas, onde, em tese, poderiam ficar até os 21 anos.

 

* O hediondo crime da cabeleireira aconteceu no início de dezembro de 1999.

Vendedores de Fazenda

Eles realizaram milhares de vendas… mas morreram na miséria!

 

A ‘loja’ era na calçada da Praça Senador José Bento, entre a esquina da Afonso Pena e a Casa Morato. Eram vários vendedores, mais de meia dúzia. Tinha o Zé Bonitinho, o Zô, o Osvaldo, o Zé Maria, o JMS, o Vicente. Todos modesta, porém bem-vestidos, sérios e boa prosa. Aliás muita prosa! Precisavam de muita lábia para vender seu produto! Aparentemente eram independentes. Mas na verdade ‘eram’ uma firma só! Metade deles eram vendedores… a outra metade eram compradores. De vez em quando se alternavam. Os clientes, muito fáceis de serem identificados, eram escolhidos à dedo. Geralmente usavam sapatões de couro cru, calça caqui ou parda de brim, camisa xadrez, ou de flanela se fosse inverno, sempre com a fralda pra dentro da calça deixando o cinto de couro cru à vista e, claro, chapéu de junco, de feltro ou mesmo de palha em cores discretas. Só faltavam levar uma plaquinha pendurada no peito escrito: “sou da roça”!
Os vendedores eram perspicazes e sutis.
Quando o potencial cliente passava, o vendedor não entrava na sua frente. Ele saia andando a seu lado exibindo seus produtos, exaltando suas qualidades e as vantagens de comprar dele ao invés de comprar na loja.
O próximo argumento, depois de conseguir prender a atenção do comprador, era falar da vantagem de comprar logo um lote de cortes de fazenda. Um corte custava sessenta cruzeiros. Dois custava 100. Se levasse cinco cortes, pagaria apenas duzentos cruzeiros.
Era nesse momento que entrava em cena o ‘novo cliente’! Ele parava, interrompia a conversa, tocava o tecido, elogiava e perguntava o preço.
Ao se inteirar de que o preço de um corte era 60 e que cinco cortes tinham desconto de mais de 40%, custando apenas 200 cruzeiros, o novo comprador fazia a proposta indecorosa ao capiau:
– A minha patroa me encomendou apenas dois cortes. ‘Se nós dois comprar junto, sai cinco por 200’. Você pode ficar com os outros três e cada paga cem cruzeiros…
Pronto! Era a proposta que faltava para convencer o capiau, homem simples da roça, a comprar o produto pela metade do preço da loja.
Concluído o negócio das fazendas, o sujeito que havia interferido na transação e levado os dois cortes por cem cruzeiros, dava a volta no quarteirão, tomava um cafezinho no Bar do Zé Cabral do outro lado da rua, passava sorrateiro pelo local, devolvia os dois cortes ao vendedor e pegava seus cem cruzeiros de volta.
No dia seguinte os papeis se invertiam: ele seria o vendedor e seu parceiro seria o comprador. Tudo farinha do mesmo saco.
Em dias de muito movimento, trocavam de papeis no mesmo dia. O comprador contornava a catedral, passava por dentro, pedia perdão aos santos pela trapaça, atravessava a rua se misturava aos transeuntes e seguiam, ele e os demais, enganando os capiaus de calças caquis e chapéus de feltro.
Mas o que havia de errado nisso? Nesse ardil para vender os cortes de fazenda?
Quase nada.
Exceto o fato de que na outra esquina da mesma praça, na Casa Senador e nas Casas Pernambucanas, tais cortes custavam o mesmo preço, mas eram produtos de primeira qualidade, abertos e cortados diante dos olhos do comprador. Os cortes de fazenda vendidos ali na rua mediante ardil, mediante trapaça, aproveitando da boa-fé dos homens simples nascidos ao pé da serra do cajuru, eram retalhos de cortes de péssima qualidade, alguns com defeitos, adquiridos à quilo na Rua 25 de Março ou na Maria Marcolina no Brás em São Paulo.
Eram os infantes e saudosos anos 70. Até então não existia roupas prontas. Os cortes de tecidos ou ‘fazendas’ cheirando a tinta e coisa nova, eram adquiridos nas Casas Pernambucanas, Casa Senador e outras poucas na Dr. Lisboa. Demoraria ainda algumas décadas para as centenas de lojas de roupas prontas aposentarem os alfaiates e costureiras da cidade.
Naquele início de década, eu, meninão de pés no chão, estava ali, bem na esquina onde hoje está o Edifício Teixeira, vendendo raspadinhas e brincando com os filhos do Dito Celeiro, os quais vendiam suas celas, cintos e arreios ao meu lado, no pé do poste da esquina. Do alto dos meus 11, 12 anos, eu assistia àquelas trapaças todo dia, curioso, porém sem entender o engodo. Eu não sabia os nomes daqueles fazendeiros, quero dizer, daqueles vendedores de ‘fazenda’, mas nunca esqueci suas fisionomias.
Vinte anos depois voltei a encontrar quase todos eles. Continuavam no ramo das trapaças… agora nas mesas de baralho.
Hoje, quase todos já partiram para o andar de cima… ou seria de baixo? Até onde eu soube, nenhum daqueles vendedores de fazenda dos anos 70 conseguiu mais do que três metros quadrados de terra para morar!

J.C. e seu fadário!

O tempo passou … mas “o vento ‘não’ levou”!

Não levou o vício de JC! não levou as aflições – e nem a firmeza de propósito – de mãe de Mariana; não levou a saudade que sentia do marido; e nem trouxe Paulinho de volta. Mas a fome trouxe alguém de volta! Duas semanas depois, ao chegar do trabalho no fim do dia, lá estava novamente J.C. sentado na calçada. Mariana se surpreendeu ao ver o filho sentado no mesmo lugar de antes. A roupa era outra, mas tão maltrapilha quanto a da vez passada. Parou na sua frente e, sem saber o que dizer, ficou esperando que o filho falasse primeiro. Depois de longos segundos olhando nos olhos tristes um do outro, JC finalmente falou.

– Tô aqui de novo… posso entrar dessa vez? – Perguntou com voz mansa, sem se levantar.

Mariana demorou para responder. Talvez porque não tivesse certeza do que responder; talvez porque o tempo tivesse abrandado seu coração; talvez porque esperasse que ele insistisse na pergunta; talvez porque esperasse que ele fizesse uma abordagem diferente! Quando por fim respondeu, foi com outra pergunta:

– Pra que você quer entrar? – Perguntou num tom de desafio.

– Só para comer um prato de comida… não sei quando comi a última vez – disse ele cabisbaixo, com a voz quase sumindo.

Desta vez Mariana respondeu com rispidez. A falta de dignidade do filho causou-lhe irritação e apressou sua resposta.

– Para comer você não precisa entrar. Espere aqui que eu vou preparar a comida… E não vá fazer como da última vez! – completou já trancando o portão por dentro. Seis minutos depois tornou a abri-lo. Desta vez JC continuava lá, sentado no mesmo lugar, na porta da casa da mãe, esperando o prato de comida …

– Entra… senta aqui na escada – disse ela com um gigantesco prato de comida na mão.

JC levantou-se com dificuldade, se apoiando no muro e foi sentar-se no primeiro dos três degraus da escadinha da porta da sala. Mariana sentou-se numa cadeira que trouxera, quase à sua frente, e ficou olhando em silencio o filho comer. Olhava para o filho sujo, magro, ossudo, olhos fundos, barba por fazer … Era difícil assistir àquela cena, olhar para aquele filho tão amado e constatar que tudo que podia fazer era aquilo… Dar-lhe um prato de comida no portão! Como a um mendigo maltrapilho qualquer! Olhava para o jovem mendigo de trinta e poucos anos, mas via outra pessoa. Via um menino moreno, corado, forte, cabelos bem cortados, de uns doze ou treze anos. O que fora feito daquele garoto?

– Tava gostoso, mãe…

A voz fraca de JC trouxe Mariana de volta ao presente. Ele havia acabado de comer e estendia-lhe o prato vazio. Mil palavras ululavam na sua mente, mas Mariana não deixou que elas passassem pela sua garganta. Recolheu o prato vazio e ficou olhando em silencio para o filho. Depois de quase um minuto, também em silencio, JC se levantou e saiu… Saiu pelo mesmo portão que entrara minutos antes, sem dizer uma palavra, mas Mariana não o viu sair. Se ele tivesse feito o inverso, entrado pela porta aberta a poucos passos da escada, ela também não teria visto. Estava por demais absorta em seus pensamentos distantes para ver alguma coisa ao seu redor… As lembranças de tudo que passara nos últimos anos a levara a tomar aquela decisão. Ela não iria passar por aquilo de novo. Mas estava sendo difícil! Muito difícil ver o filho definhando na droga daquele jeito, dar-lhe um prato de comida no portão sem ao menos um abraço, um afago, uma palavra… Isso tocou fundo sua alma! Precisou de forças para não desabar ali mesmo, na frente dele!

– Que isso mãe? Por que o portão está escancarado?… E esse prato na mão… – perguntou a filha assustada, chegando da rua.

Arrancada dos devaneios, Mariana trancou o portão e empurrou a filha para dentro de casa sem responder. Antes, porém, deu uma olhada na rua, mas não viu mais JC. Mal lavou o prato na cozinha correu para o banheiro… E o chuveiro chorou com ela! Difícil saber de onde caiu mais lagrimas! Num misto de raiva, angústia e tristeza, esmurrou as paredes do banheiro. Quando saiu e se vestiu, tentando disfarçar a cor dos olhos, a filha pegou-a pelas duas mãos, fê-la sentar-se diante dela e disse com mansidão:

– Mãe… você ficou quase meia hora no chuveiro, quase quebrou a parede com murros! Eu estou aqui… Posso te ajudar?

Mariana havia ido correndo para o banheiro. Não queria que a filha a visse chorar. Mas não adiantou… Reclinou-se para o ombro da filha e chorou novamente. Chorou baixinho, em silencio… até soluçar!

– Seu irmão esteve aqui. Pela segunda vez eu lhe dei um prato de comida… no portão! – contou Mariana, olhando-a nos olhos, recuperando a altivez. E acrescentou:

“Tá tudo bem, agora. Vai passar…”

E os dias passaram. Os anos passaram…

 

Onde estará JC agora?

 

MISTÉRIOS E MORTES NO BUTECO!

Nove e meia da noite de sexta-feira, 20.

As mesas e estendiam desde a porta do pequeno e aconchegante buteco até a beira da avenida.

O movimento, por conta do show do outro lado da cidade, era pequeno. Talvez por isso ela resolveu atacar. Veio da rua e foi se esgueirando por baixo da mesa. Dava três ou quatro passos rápidos e parava… Por alguns instantes ficava imóvel. Apenas as compridas antenas se mexiam farejando a comida sobre as mesas… ou uma vítima, para assustar e ouvir seus gritos! De repente subiu na parede… e continuou se esgueirando furtivamente, no mesmo ritmo de antes. Dava alguns passos, parava e ligava as antenas… e assim foi se aproximando da mesa de um casal.

Edinho e a companheira conversavam animadamente de frente um para o outro, diante das canecas de cerveja e do delicioso prato de tudo um porco.

Na mesa ao lado, na diagonal, eu estava de costas para o casal. Tatiana estava de frente. Foi a única pessoa a notar a presença sorrateira e o ataque iminente da intrusa cor de pinhão! Tatiana, como a maioria das mulheres, morre de medo desse tipo de intrusa! Se fosse perto dela, teria jogado até a mesa pra cima de mim e saído correndo dali aos gritos.

Embora estivesse em relativa segurança, sua apreensão aumentou quando a intrusa se aproximou da cabeça da companheira do Edinho, até então um desconhecido. A qualquer momento a intrusa nojenta e asquerosa poderia pular no rosto ou nos cabelos da senhora e só Deus sabe o poderia acontecer!

Tatiana tinha que intervir, tentar salvar a senhora do ataque iminente… sem causar um pandemônio.

Apesar do medo, do perigo do ataque iminente daquelas garras sujas e nojentas, Tatiana se controlou. E teve ‘presença de espírito’… Interrompeu delicadamente a conversa com o butequeiro que contava aventuras gastronômicas ao nosso lado e lhe disse, com jeito:

– Peça àquela senhora para se levantar e vir até aqui, por favor!

Quando a senhora se levantou, a intrusa sorrateira se assustou e vou para o chão… e então foi notada por todos.

Num movimento certeiro, o ‘pisante’ 42 do Edinho acabou com a raça da intrusa traiçoeira. No segundo seguinte ela estava morta aos seus pés!

 

A morte abrupta da asquerosa intrusa ao pé da mesa acabou com o suspense no boteco!

 

Acabou com o suspense… mas começaram os assassinatos, os suicídios mal contados, os acidentes de avião e todo tipo de mortes violentas nos últimos dez anos na região. A conversa passou de baratas para ratos e em poucos minutos chegou ao IML e ao Blog do Airton Chips. Pronto! Acabou!… Aliás, começou.

 

– Nossa! Você é legista? – surpreendeu-se a companheira do Edinho.

– Então você é que é o Chips? Eu sigo você desde o tempo que você escrevia no jornal, quer ver? – disse Edinho manuseando o celular até chegar na minha foto.

 

E a conversa, tanto nossa quanto do outro casal, se estendeu.

Durante mais de hora matamos, enterramos e exumamos todo tipo de cadáver que passou pelo IML de Pouso Alegre. Desde a linda Larissa de Extrema, torturada, morta e jogada no abismo na Serra do Lopo em Extrema, passando pelo envenenado Silvio Santos de São Gonçalo do Sapucaí, até o esquartejamento em Silvianópolis em 2018. Tivemos que ressuscitar Fernando da Gata para contar um pouco da sua curta e malfadada passagem por Pouso Alegre em 82. Mais! Voltei à 1955 para esclarecer a verdadeira historia do Beco do Crime. É assim mesmo. Conversa de buteco com quem tem história para contar… e bons ouvintes, quase não tem fim. Até um cliente do buteco que estava de costas pra nós, numa mesa isolada, se virou para ouvir nossas histórias. A estadia no aconchegante buteco do Fernando, que era para encerrar antes das dez, passou das onze!   

     O surgimento da intrusa sorrateira no buteco, muito comum em estabelecimentos que servem na calçada, não trouxe nenhum tipo de prejuízo ao comerciante. Muito pelo contrário. Em quase duas horas a mais de resenha, tanto eu quanto o Edinho, tivemos que abraçar mais algumas loiras… geladinhas!

    Apesar das histórias tétricas e assombrosas ressuscitadas no buteco, entre mortos & feridos, além do porco que se transformou em deliciosos torresminhos e da gigante barata cor de pinhão, que voltou esmagada para o bueiro de onde saiu, todos se salvaram!

Girafa… “Filhinho de Papai”

Ele achava que ‘sua casa nunca iria cair’!

     Ele pertencia a outro mundo social. Vários anos mais novo do que Pardal ele entrou no crime pela porta aberta da droga. Filho de família de classe média – seu pai era funcionário público concursado e sua mãe dentista -, ele estudou em colégio particular e embora não desfrutasse de luxo, não lhe faltava conforto. Teve infância e adolescência tranquila ao lado de uma irmã mais velha.

Aos dezessete anos, no entanto, a vida ficou chata, sem graça, os pais lhe pareceram distantes, os amigos uma mesmice. Precisava sair do marasmo, procurar emoções novas, sentir alguma vibração, buscar alguma adrenalina!… A maconha estava à sua frente, sorrindo… de braços abertos! Era só abraçar. Sentiu seu perfume e seus afagos e se apaixonou. Era tudo muito passageiro… mas era ‘um barato’. Girafa fumou seus baseadinhos durante vários meses. À sorrelfa dos pais e dos amigos mais próximos, naturalmente!

Era fácil adquirir a erva proibida. Na própria escola ele conhecia alguns colegas sorrateiros, dos quais sempre mantivera distância, que vendiam. Tornou-se cliente assíduo deles. Com o tempo virou companheiro de ‘quebradas’!

Em casa não foi difícil esconder o novo hábito. Afinal os pais supriam todas suas necessidades materiais e não tinham tempo para cuidar das necessidades afetivas, das emocionais, das existenciais!… Por isso Girafa podia manter suas pequenas porções de drogas na própria mochila escolar, ou mesmo no seu quarto – o qual era visitado apenas pela diarista -, para usar quando quisesse.

Seis meses depois de adquirir o vício, a erva cheirosa já não dava mais tanto ‘barato’. Era preciso algo mais intenso, mais forte… e mais caro!

Aí começaram os problemas!

A mesada não era mais suficiente.

No início Sergio Girafa apelou para a mágica caseira para conseguir dinheiro. Com frequência fazia ‘desaparecer’ uma cédula ou outra da carteira do pai ou da mãe sem que ninguém percebesse.

Aos vinte anos Girafa sabia de cor e salteado os riscos que corria. E aprendera a viver com eles. Na verdade, zombava do perigo. Universitário, inteligente, boa pinta, boa família, ambicioso… Ele não achava que ‘sua casa poderia cair’!

– “Cana é para os outros, não pra mim”! pensava. E foi flertando cada vez mais com criminosos envolvidos com drogas e outros crimes.

Foi assim que Girafa, o universitário ‘filhinho de papai’, conheceu Popota e Pardal… e cometeram juntos vários roubos à mão armada!

Até que…

… Um dia amanheceu com os pés quase tocando o chão da cela fedorenta, pendurado pela ‘tereza’ na grade da janela. Acabava ali a ‘caminhada’ do ‘filhinho de papai’.

Tartaruga “Ninja”… O Justiceiro do Recanto das Margaridas

       Apesar da brutalidade do crime, ele recebeu calorosa acolhida dos ‘manos’ de caminhada!

Chegamos à fazenda do Alfredinho, no Pouso do Campo, quase dez da noite, debaixo de uma chuva torrencial que parecia querer impedir que fôssemos até lá. Chegamos porque na encruzilhada, dois quilômetros atrás, um amigo do fazendeiro nos esperava com os faróis de um fusca acesos para nos mostrar o caminho. Eu e o sempre animado, bem-humorado e falante perito Mario Luiz de Faria. A cena que vimos mais uma vez era de filme americano, não policial, mas de terror de quinta categoria, só que… era real!

O calçamento tosco de concreto da entrada do curral havia sido desfeito pelo bater constante dos cascos das malhadas girolandas e formara uma grande panela, transbordando lama, estrume, chuva, urina e agora …  sangue! Era impossível entrar na cocheira sem afundar até as canelas na poça fétida e macabra onde as mimosas certamente roçavam os úberes e tetas inchadas ao passar.

Era exatamente neste local que o defunto, em decúbito dorsal, muito pálido à luz das lanternas nos esperava… completamente nu!

Os ferimentos perfuro cortantes na região torácica e os corto contusos na cabeça, já estancados, contrastavam com a lama meio zinabre por causa da urina e do sangue, e o tornavam espectral. A cena era de terror!

Eu havia visto o carcereiro Marcos Alves numa poça de lama, numa viela do Aterrado com cinco tiros no rosto em 83; vi Anete Garcia, mãe dos meninos que vi crescer, Rodrigo e Reinaldo, com o peito perfurado à faca, pelo meu ex-vizinho Demetrius Macedo, no interior do banheiro no Jardim Vergani em 2001; vi meu ex-colega de exército Elcio Luiz dos Reis com o pescoço degolado e outra dúzia de golpes mortais, de faca, no tórax e no abdome na sala de sua aconchegante casa no Colinas de Santa Bárbara em 2003; vi o preso Totó no corredor do novo hotel do Recanto das Margaridas alguns meses antes, com sessenta ferimentos feitos à faca… Vi outros tantos casos de homicídio em que acompanhei os peritos mas,… se vi algum mais chocante e macabro,… não me lembro!

O assassino deu sua versão dos fatos ao patrão e dobrou a serra do cajuru sem me esperar para entrevista. Segundo o fazendeiro, ele estava com medo de ser preso, por isso abandonara o local. Ninguém na fazenda debaixo daquele diluvio soube informar quem era o defunto. Terminada a perícia ele foi descansar na geladeira do IML à espera que alguém dissesse ao menos seu nome…

Sem a identidade do morto e sem a presença do matador do curral, estávamos de mãos atadas, sem o fio da meada para esclarecer o macabro assassinato.

Na manhã seguinte eu estava correndo atrás de ciganos ladrões de cavalo quando o telefone tocou. Era o carcereiro do Hotel Recanto das Margaridas. Pensei logo o pior: “está acontecendo mais uma fuga no Hotel Recanto das Margaridas”! “Mataram mais um”!

Não.

Desta vez não havia morte e não havia ninguém saindo pelos muros ou tatús do presídio ‘modelo do Sul de Minas’.

Ao contrário!

Havia um sujeito completamente mamado, quase trôpego, delirando, querendo “entrar” no presidio! Querendo ser preso… dizendo que havia matado um sujeito no seu curral na noite passada!

O Mistério do Corpo Seco

Será que ele existiu mesmo?

* Uma doença corriqueira para os dias de hoje, a qual seria curada com um simples antibiótico – porém incurável há 80 anos…

* Uma depressão advinda dessa mesma doença…

* A fama de boêmio e valentão…

* Os boatos de que costumava espancar a mãe…

* O boato de que teria colocado um arreio e cavalgado a própria mãe…

* Um irmão que vez por outra saia andando a esmo pelo mundo, como um andarilho, e voltava meses depois maltrapilho como tal…

* A vida reclusa do jovem filho de fazendeiro, que nunca mais foi visto na rua…

* A vergonha da família em esconder o filho doente…

* As conversas de botequim numa época em que a comunicação social era feita de boca em boca

* O disse-me-disse numa velha cidadezinha de 25 mil habitantes…

* O hábito de se reunir em volta da fogueira, nas esquinas, para contar causos de assombração – era a única diversão da garotada há pouco mais de meio século…

 

Estes ingredientes criaram e fomentaram durante décadas a “Lenda do Corpo Seco”!

 

Mas será que o Corpo Seco existiu de verdade?

 

Sessenta anos depois da sua morte, arregacei as mangas e fui investigar o Mistério do Corpo Seco.

 

Morte? Ele morreu?

Sim. Embora muitos acreditem que ele continua vivo nas matas da antiga propriedade da família, “João”, o Corpo Seco, morreu. Seus restos mortais repousam no mesmo túmulo onde, anos depois, seu pai foi enterrado, no cemitério municipal de Pouso Alegre.

 

Mas então não tem mistério?

Bem… na verdade, em 2014, houve sim, um mistério nessa história do Corpo Seco.

O desfecho dessa investigação, realizada em 2010, está no livro “Meninos que vi crescer”… Ou está em  “Quem matou o suicida”?

Eis o mistério!

Bora Viajar…

O crime da rua Vieira de Carvalho

Nove e quarenta da quinta-feira abafada de agosto, véspera de aniversário do padroeiro da cidade. O jovem alto, forte, cabelos raspados, subiu lentamente a Dr. Lisboa, sem destino, olhando a esmo para todo lado… sem olhar para ninguém. O único objetivo era… respirar o ar puro da liberdade!

Quando cruzou o semáforo da Rua Marechal de Teodoro e pisou no passeio defronte o prédio do 17º Departamento de Policia Militar, instintivamente olhou para a larga e movimentada avenida. Seus olhos pararam na rua em frente, a Vieira de Carvalho… Mais precisamente num antigo sobradinho, onde funcionava um salão de beleza.

Uma lembrança o atraiu.

Encostou-se ao poste em frente o quartel e ficou ali por alguns instantes, olhando para a plaquinha do sobradinho da estreita rua. Suas lembranças o levaram ao passado. Há três anos havia cometido um furto na galeria em frente e acabara sendo preso pela PM algumas horas mais tarde. No momento da prisão não tinha mais a res furtiva e a policia não tinha prova da sua autoria, portanto, não ficaria preso. A menos que alguém o apontasse como autor do furto! E alguém apontou! A policia parara a viatura ali perto e chamara algumas pessoas para ver se alguém o reconhecia…

– “Foi ele mesmo que eu vi saindo da loja…” – Disse a bonita senhora de meia idade olhando pra ele no banco de trás da viatura.

Ele nunca mais voltara naquela rua desde então, mas soubera que a ‘coroa’ que dissera “foi ele mesmo” era uma cabeleireira que tinha um salão ali em frente a Galeria Portal. No começo tivera muita raiva dela e pensara em vingança, mas sua vida já era amarga demais para cultivar mais um sentimento negativo. Acabou esquecendo a cabeleireira cujo nome nem sabia. Agora ali na esquina, olhando para a placa pendurada no velho sobradinho tomara conhecimento do seu nome.

“Ester: Cabeleireira”!

De repente, o perreio que passara naquele cubículo, olhando através das grades remendadas de solda para a cela das mulheres no Velho Hotel da Silvestre Ferraz, veio à tona. Ficou alguns minutos ali encostado no poste pensando na vida, sentindo uma certa angústia. Apesar de, depois daquela bronca ter assinado outras, já ter atingido a maioridade penal e estar a mais de ano morando no novo Hotel do Juquinha, aquela fita na galeria fora marcante. Na verdade, não se lembrava mais o que havia furtado, mas se lembrava nitidamente por que fora preso;

 

     -“Foi ele mesmo” – dissera a cabeleireira.

 

Ele só tinha 19 anos, mas já estava na ‘caminhada’ há quase dez! Morando uma hora com o pai, outra hora com a mãe, outra com uma tia, outra na rua, outra por conta do Conselho Tutelar internado em clínicas. Apanhou do pai, da mãe, dos moleques da rua, de traficantes; tomou puxões de orelha dos conselheiros, do promotor da infância, do juiz da infância! Passou diversas temporadas de 45 dias atrás das grades. Dormiu debaixo da ponte, foi amarrado em casa com correntes para não ir pra rua!…

– “É. A cabeleireira não tem nada a ver com minha vida tão dura… Mas também não tinha que se intrometer”! – pensou ele incógnito, encostado no poste ali a poucos metros da porta do quartel, olhando para a placa do salão de beleza:

 

“Ester Cabeleireira”…

 

Já ia se ‘despedir’ do poste e seguir seu caminho sem rumo tentando esquecer os pensamentos ruins, quando a bonita senhora que o identificara apareceu na sacada do sobradinho. Se reteve ao pé do poste mais um minuto, ou dois, pensando na coroa na janela da viatura anos atrás. Pôde ouvir sua voz:

 

“Foi ele mesmo…”!

 

“Fazia tempo que era ‘dimaior’. Até outro dia estava hospedado no Hotel do Juquinha… Deixa pra lá. Melhor deixar quieto” – dizia a sensata razão.

Mas as lembranças da cabeleireira tranquila e serena livre, leve e solta, falando ao celular no parapeito da janela, cutucavam sua emoção… Decidiu chegar perto, só pra ver sua reação!

– “Vou fazer-lhe uma visita… Quero ver se ela se lembra de mim”! – Pensou o jovem taciturno e calado.

Quando a funcionária do salão chegou para o trabalho por volta do meio-dia, Ester estava inerte sobre a cama. Tinha no corpo pequenas escoriações, marcas de resistência física… de luta pela vida. Na boca, enfiada goela abaixo, havia quase um metro de pano… Morrera asfixiada!

 

*** O crime da Rua Vieira de Carvalho – e suas consequências -, começa na página 459 do livro “MENINOS QUE VI CRESCER”.

BORA VIAJAR…

Cirilo… e o promotor

Debaixo de uma saraivada de bala dos homens da lei, Cirilo passou sebo nas canelas e tentou dobrar a serra do cajuru mas… tropeçou numa cerca de arame farpado e caiu nas malhas da lei! Antes de passar pelo nosocômio, ele teve uma entrevista com o promotor de justiça de Ouro Fino, e desfiou seu rosário de chorumelas.

– Os ‘zomi’ atiraram em mim, doutor. Eu tô ferido… Tem uma bala encravada na minha perna! – informou ele.

Conhecendo suficientemente o tamanho da ‘capivara’ do meliante, o promotor não lhe deu trela.

– Ah, é um ferimento à toa! Podem trancá-lo… Amanhã durante o expediente vocês cuidam disso! – teria dito o promotor.

A indiferença do promotor doeu muito mais na alma do que na perna do meliante. Por pouco lhe custaria a vida anos mais tarde!

Numa noite chuvosa de fim de ano, Cirilo descia a Dom Nery em Pouso Alegre nos braços de Severina do Popote, tentando se proteger sobre as marquises, quando de repente cruzou com um vulto soturno e bem-vestido debaixo de um guarda-chuva. Apesar do mau tempo, Cirilo encarou o sujeito para ver se resistia aos desejos mundanos de anos atrás quando era jovem. Talvez até resistisse se o vulto soturno debaixo do guarda-chuva fosse uma pessoa qualquer. Mas não era. Que azar! De ambos!

O vulto bem-vestido tentando se proteger da chuva era um velho conhecido… um velho algoz!  Um algoz que ele viu apenas uma vez na vida…, mas que fora cruel com sua dor!

Se fosse o policial que colocou a bala em sua perna naquela noite no bairro Caneleira perto de Ouro Fino, teria passado batido, pois estava fazendo seu trabalho caçando bandido. Mas o inimigo era muito pior!

O inimigo não fizera o seu trabalho. O inimigo não permitiu que ele fosse medicado e mandou que o trancafiassem atrás das grades sem nem mesmo uma aspirina para amenizar a dor do ferimento à bala na perna… Era o promotor de Ouro Fino!

Tomado pelo ódio, Cirilo saltou sobre o promotor e bateu nele até vê-lo prostrado no meio da chuva. E seguiu seu caminho pela rua deserta… com a alma lavada. Duplamente lavada…. pela chuva e pelos socos desferidos no inimigo.

– Tanto tempo depois, você se arrependeu de ter batido assim no promotor? – Perguntei.

– Me arrependi amargamente…. de não ter conferido se ele estava morto! Isso me custou 4 anos e oito meses de cadeia! – respondeu Cirilo.

 

*** As aventuras e desventuras do Cirilo Bola Sete começam na página 293 do livro “Meninos que vi crescer”.

OS DEDOS DE FERNANDO DA GATA…

… Foram jogados numa lata de lixo qualquer nos fundos da delegacia!

“O epílogo da história de Fernando da Gata em Pouso Alegre seria escrito quase três semanas depois, devido a uma falha profissional: esquecemos de colher suas impressões digitais! Romeu Norte Pereira, um baixinho invocado, filho de fazendeiro do Triangulo Mineiro, fora meu colega no curso de Detetive da Acadepol e, como cursava medicina, exercia também as funções de Auxiliar de Necropsia na Regional de Pouso Alegre. Foi ele que desenterrou o gatuno – naturalmente nauseabundo – muitos dias depois e fez a coleta das impressões papiloscópicas. A prova cabal da identidade do famigerado bandido, que aterrorizou três estados, foi colhida na garagem da delegacia regional… mas apenas os dedos foram levados para lá, numa pequena bacia de alumínio, ‘delicadamente’ cortados com uma tesoura! O resto do corpo não saiu do tosco caixão no cemitério… até ser requisitado pela família!

No dia 20 de setembro de 1982, já sem alarde, sem clamor e sem glamour, sem saudade e sem os dedos, Fernando da Gata embarcou em um carro funerário em Pouso Alegre e desembarcou no aeroporto de Guarulhos. De lá fez sua primeira e única viagem – da morte – de avião rumo ao aeroporto Pinto Martins na capital cearense. De Fortaleza seguiu de madrugada em um carro fúnebre para Russas, sua terrinha natal, onde era esperado como herói! Enquanto uma radio local anunciava de hora em hora sua chegada, centenas de pessoas, algumas dormindo, outras cochilando e outras eufóricas aguardavam na porta do cemitério para recebê-lo!

‘Foi-se o bandido… ficaram-se os dedos’!!! Numa lata de lixo qualquer nos fundos da Delegacia Regional de Pouso Alegre!