Vendedores de Fazenda

Eles realizaram milhares de vendas… mas morreram na miséria!

 

A ‘loja’ era na calçada da Praça Senador José Bento, entre a esquina da Afonso Pena e a Casa Morato. Eram vários vendedores, mais de meia dúzia. Tinha o Zé Bonitinho, o Zô, o Osvaldo, o Zé Maria, o JMS, o Vicente. Todos modesta, porém bem-vestidos, sérios e boa prosa. Aliás muita prosa! Precisavam de muita lábia para vender seu produto! Aparentemente eram independentes. Mas na verdade ‘eram’ uma firma só! Metade deles eram vendedores… a outra metade eram compradores. De vez em quando se alternavam. Os clientes, muito fáceis de serem identificados, eram escolhidos à dedo. Geralmente usavam sapatões de couro cru, calça caqui ou parda de brim, camisa xadrez, ou de flanela se fosse inverno, sempre com a fralda pra dentro da calça deixando o cinto de couro cru à vista e, claro, chapéu de junco, de feltro ou mesmo de palha em cores discretas. Só faltavam levar uma plaquinha pendurada no peito escrito: “sou da roça”!
Os vendedores eram perspicazes e sutis.
Quando o potencial cliente passava, o vendedor não entrava na sua frente. Ele saia andando a seu lado exibindo seus produtos, exaltando suas qualidades e as vantagens de comprar dele ao invés de comprar na loja.
O próximo argumento, depois de conseguir prender a atenção do comprador, era falar da vantagem de comprar logo um lote de cortes de fazenda. Um corte custava sessenta cruzeiros. Dois custava 100. Se levasse cinco cortes, pagaria apenas duzentos cruzeiros.
Era nesse momento que entrava em cena o ‘novo cliente’! Ele parava, interrompia a conversa, tocava o tecido, elogiava e perguntava o preço.
Ao se inteirar de que o preço de um corte era 60 e que cinco cortes tinham desconto de mais de 40%, custando apenas 200 cruzeiros, o novo comprador fazia a proposta indecorosa ao capiau:
– A minha patroa me encomendou apenas dois cortes. ‘Se nós dois comprar junto, sai cinco por 200’. Você pode ficar com os outros três e cada paga cem cruzeiros…
Pronto! Era a proposta que faltava para convencer o capiau, homem simples da roça, a comprar o produto pela metade do preço da loja.
Concluído o negócio das fazendas, o sujeito que havia interferido na transação e levado os dois cortes por cem cruzeiros, dava a volta no quarteirão, tomava um cafezinho no Bar do Zé Cabral do outro lado da rua, passava sorrateiro pelo local, devolvia os dois cortes ao vendedor e pegava seus cem cruzeiros de volta.
No dia seguinte os papeis se invertiam: ele seria o vendedor e seu parceiro seria o comprador. Tudo farinha do mesmo saco.
Em dias de muito movimento, trocavam de papeis no mesmo dia. O comprador contornava a catedral, passava por dentro, pedia perdão aos santos pela trapaça, atravessava a rua se misturava aos transeuntes e seguiam, ele e os demais, enganando os capiaus de calças caquis e chapéus de feltro.
Mas o que havia de errado nisso? Nesse ardil para vender os cortes de fazenda?
Quase nada.
Exceto o fato de que na outra esquina da mesma praça, na Casa Senador e nas Casas Pernambucanas, tais cortes custavam o mesmo preço, mas eram produtos de primeira qualidade, abertos e cortados diante dos olhos do comprador. Os cortes de fazenda vendidos ali na rua mediante ardil, mediante trapaça, aproveitando da boa-fé dos homens simples nascidos ao pé da serra do cajuru, eram retalhos de cortes de péssima qualidade, alguns com defeitos, adquiridos à quilo na Rua 25 de Março ou na Maria Marcolina no Brás em São Paulo.
Eram os infantes e saudosos anos 70. Até então não existia roupas prontas. Os cortes de tecidos ou ‘fazendas’ cheirando a tinta e coisa nova, eram adquiridos nas Casas Pernambucanas, Casa Senador e outras poucas na Dr. Lisboa. Demoraria ainda algumas décadas para as centenas de lojas de roupas prontas aposentarem os alfaiates e costureiras da cidade.
Naquele início de década, eu, meninão de pés no chão, estava ali, bem na esquina onde hoje está o Edifício Teixeira, vendendo raspadinhas e brincando com os filhos do Dito Celeiro, os quais vendiam suas celas, cintos e arreios ao meu lado, no pé do poste da esquina. Do alto dos meus 11, 12 anos, eu assistia àquelas trapaças todo dia, curioso, porém sem entender o engodo. Eu não sabia os nomes daqueles fazendeiros, quero dizer, daqueles vendedores de ‘fazenda’, mas nunca esqueci suas fisionomias.
Vinte anos depois voltei a encontrar quase todos eles. Continuavam no ramo das trapaças… agora nas mesas de baralho.
Hoje, quase todos já partiram para o andar de cima… ou seria de baixo? Até onde eu soube, nenhum daqueles vendedores de fazenda dos anos 70 conseguiu mais do que três metros quadrados de terra para morar!

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