Bora Viajar…

O crime da rua Vieira de Carvalho

Nove e quarenta da quinta-feira abafada de agosto, véspera de aniversário do padroeiro da cidade. O jovem alto, forte, cabelos raspados, subiu lentamente a Dr. Lisboa, sem destino, olhando a esmo para todo lado… sem olhar para ninguém. O único objetivo era… respirar o ar puro da liberdade!

Quando cruzou o semáforo da Rua Marechal de Teodoro e pisou no passeio defronte o prédio do 17º Departamento de Policia Militar, instintivamente olhou para a larga e movimentada avenida. Seus olhos pararam na rua em frente, a Vieira de Carvalho… Mais precisamente num antigo sobradinho, onde funcionava um salão de beleza.

Uma lembrança o atraiu.

Encostou-se ao poste em frente o quartel e ficou ali por alguns instantes, olhando para a plaquinha do sobradinho da estreita rua. Suas lembranças o levaram ao passado. Há três anos havia cometido um furto na galeria em frente e acabara sendo preso pela PM algumas horas mais tarde. No momento da prisão não tinha mais a res furtiva e a policia não tinha prova da sua autoria, portanto, não ficaria preso. A menos que alguém o apontasse como autor do furto! E alguém apontou! A policia parara a viatura ali perto e chamara algumas pessoas para ver se alguém o reconhecia…

– “Foi ele mesmo que eu vi saindo da loja…” – Disse a bonita senhora de meia idade olhando pra ele no banco de trás da viatura.

Ele nunca mais voltara naquela rua desde então, mas soubera que a ‘coroa’ que dissera “foi ele mesmo” era uma cabeleireira que tinha um salão ali em frente a Galeria Portal. No começo tivera muita raiva dela e pensara em vingança, mas sua vida já era amarga demais para cultivar mais um sentimento negativo. Acabou esquecendo a cabeleireira cujo nome nem sabia. Agora ali na esquina, olhando para a placa pendurada no velho sobradinho tomara conhecimento do seu nome.

“Ester: Cabeleireira”!

De repente, o perreio que passara naquele cubículo, olhando através das grades remendadas de solda para a cela das mulheres no Velho Hotel da Silvestre Ferraz, veio à tona. Ficou alguns minutos ali encostado no poste pensando na vida, sentindo uma certa angústia. Apesar de, depois daquela bronca ter assinado outras, já ter atingido a maioridade penal e estar a mais de ano morando no novo Hotel do Juquinha, aquela fita na galeria fora marcante. Na verdade, não se lembrava mais o que havia furtado, mas se lembrava nitidamente por que fora preso;

 

     -“Foi ele mesmo” – dissera a cabeleireira.

 

Ele só tinha 19 anos, mas já estava na ‘caminhada’ há quase dez! Morando uma hora com o pai, outra hora com a mãe, outra com uma tia, outra na rua, outra por conta do Conselho Tutelar internado em clínicas. Apanhou do pai, da mãe, dos moleques da rua, de traficantes; tomou puxões de orelha dos conselheiros, do promotor da infância, do juiz da infância! Passou diversas temporadas de 45 dias atrás das grades. Dormiu debaixo da ponte, foi amarrado em casa com correntes para não ir pra rua!…

– “É. A cabeleireira não tem nada a ver com minha vida tão dura… Mas também não tinha que se intrometer”! – pensou ele incógnito, encostado no poste ali a poucos metros da porta do quartel, olhando para a placa do salão de beleza:

 

“Ester Cabeleireira”…

 

Já ia se ‘despedir’ do poste e seguir seu caminho sem rumo tentando esquecer os pensamentos ruins, quando a bonita senhora que o identificara apareceu na sacada do sobradinho. Se reteve ao pé do poste mais um minuto, ou dois, pensando na coroa na janela da viatura anos atrás. Pôde ouvir sua voz:

 

“Foi ele mesmo…”!

 

“Fazia tempo que era ‘dimaior’. Até outro dia estava hospedado no Hotel do Juquinha… Deixa pra lá. Melhor deixar quieto” – dizia a sensata razão.

Mas as lembranças da cabeleireira tranquila e serena livre, leve e solta, falando ao celular no parapeito da janela, cutucavam sua emoção… Decidiu chegar perto, só pra ver sua reação!

– “Vou fazer-lhe uma visita… Quero ver se ela se lembra de mim”! – Pensou o jovem taciturno e calado.

Quando a funcionária do salão chegou para o trabalho por volta do meio-dia, Ester estava inerte sobre a cama. Tinha no corpo pequenas escoriações, marcas de resistência física… de luta pela vida. Na boca, enfiada goela abaixo, havia quase um metro de pano… Morrera asfixiada!

 

*** O crime da Rua Vieira de Carvalho – e suas consequências -, começa na página 459 do livro “MENINOS QUE VI CRESCER”.

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