Ribeirões da minha infância…
Pouso Alegre está completando 174 anos de emancipação… e outros tantos de existência ‘informal’! Sim, há duzentos anos, Pouso Alegre com o nome de Bom Jesus do Matozinhos, já travava uma batalha santa com o município vizinho de Santana do Sapucaí por causa da imagem ‘emprestada’ do santo padroeiro. Batalha esta que batizou o bairro “Ribeirão das Mortes”. Mas esta é apenas uma das histórias da pujante Pouso Alegre que me abraçou ainda pequenino e me embalou durante 51 anos.
Neste 19 de outubro, tão comemorado, resolvi homenagear minha cidade relendo as histórias que contei nos últimos 10 anos, no ‘Blog do Airton Chips’ e nos livros: “Meninos que vi crescer” e “Quem matou suicida”.
São tantas:
“Vila São Vicente de Paula” e o Asilo N.S.Auxiliadora …
“Maria Fumaça da minha infância”…
“Pouso Alegre, meio século… De aventuras e histórias”!
“O ‘velho Aterrado… E eu”!
“A verdadeira história do beco do crime”…
“Anos 70… A década de ouro da humanidade”
“O mistério do corpo seco”
“Assim nasceu o ribeirão das mortes”…
“Ribeirões da minha infância”
“A rotina do rabo verde”
“A lenda do Zorro da Zona Boêmia”
“ Os fantasmas do velho hotel da Silvestre Ferraz”…
Para assanhar o leitor, vou reproduzir abaixo parte da história “RIBEIRÕES DA MINHA INFÂNCIA”, publicada no livro “Quem matou o suicida”:
“Ribeirão Primavera
‘Em cinquenta anos, caudalosos ribeirões que formavam poços e espraiados e ofereciam peixes e diversões… desapareceram! Hoje correm invisíveis, tímidos, minguados e sujos, dentro de manilhas, por baixo de ruas e avenidas. Nossos netos jamais saberão que um dia nós pescamos e nadamos em suas águas límpidas’!
A transformação geofísica e geopolítica de Pouso Alegre nos últimos cinquenta anos salta aos olhos das pessoas que nasceram ou moraram na cidade neste período. De 1970 até os dias atuais a população passou de 40 mil para mais de 150 mil habitantes. Para abrigar tanta gente, embora a cidade tenha se expandido para o alto, com dezenas de prédios acima de dez andares, a grande expansão se deu na horizontal. Por isso pastos e fazendas se tornaram bairros, ruas, avenidas e praças. A maior ocupação se deu na direção sul da cidade, nas terras planas ou onduladas da ‘baixada do Rio Mandu’ – por sinal pouco regada de cursos d’água. O crescimento da região norte, embora tenha avançado menos por causa do humor do relevo, sepultou várias nascentes e ribeirões.
Quem nasceu da virada do século para cá não nadou, não viu e nem sonha com os ribeirões que cortavam os bairros São João, Colinas de Santa Bárbara, Saúde, Primavera, Cascalho, Fátima. Nos últimos anos o único ‘ribeirão’ que corta a cidade é o formado pelas aguas pluviais que caem na bacia do bairro Primavera e inunda as ruas Bom Jesus, Mons. Dutra e Com. José Garcia. O alagamento do local talvez seja uma vingança dos ribeirões Primavera e Cascalho pela usurpação do seu leito natural. No início do século passado podia-se pescar bagres e lambaris nos poços ali existentes.
O ribeirão Primavera nascia, como é da natureza dos ribeirões, na parte alta do bairro ainda pouco habitado, entre os bairros Santo Antônio, Esplanada e João Paulo II. Em 1970 começou a ser canalizado no início da Avenida São Francisco, avenida que, aliás, tinha apenas um quarteirão: a larga e vistosa avenida que hoje passa pela porta da Câmara Municipal, começava na Rua Olegário Maciel e terminava na rua São Pedro.
Era justamente ali na esquina, na fazenda do Luiz Reis ao pé do “Calipal do Bispo”, hoje bairro João Paulo II, que o ribeirão Primavera mostrava sua maior utilidade: refrescar a garotada que não podia frequentar os clubes, ou que moravam longe dos rios Mandu e Sapucaí Mirim. Para tal não era necessário buscar os poços que desciam a restinga de mato desde o Esplanada – até porque, os poços ficavam na restinga quase virgem que separava os bairros. Bastava ser um ‘bom menino’ para frequentar a piscina do ‘seu’ Luiz Reis. A piscina de pouco mais de doze metros quadrados por setenta centímetros de profundidade, feita de tijolos e rebocada de massa grossa sem azulejos, servia a todos os garotos da região. Era só chegar à beira da porteira na entrada da chácara e pedir ao ‘seu’ Luiz Reis. Ele fazia duas ou três perguntas e deixava o garoto nadar… Mas ficava de olho! Com seu chapéu de palha e óculos escuros, ‘seu’ Luiz ficava o tempo todo sentado na sombra da varanda a poucos metros da piscina, com uma chibatinha de couro na mão, vigiando a garotada nadar. Se um moleque fizesse alguma traquinagem, de lá mesmo ele brandia a chibatinha e corrigia o garoto. Caso o infante ‘sócio do clube’ repetisse a estripulia, seu Luiz se levantava, aproximava da piscina e o mandava sair. Se o garoto saísse sem discussão, no dia seguinte podia voltar e, depois de ouvir um breve sermão antes de passar a porteira, podia nadar de novo. Nunca foi necessário usar a chibatinha de couro trançado…
O bairro Primavera dos anos 1970 cresceu. As ruas Mons. Dutra, Professor Queirós Filho, Manoel Matias e São Francisco, que já existiam naquela época até a Rua São Pedro, rasgaram os pastos à sua frente e subiram para os bairros Santo Antônio, Boa Vista, Esplanada. Já não se vê um metro de terra ali que não esteja urbanizado.
O que restou do ribeirão Primavera virou duas minas de águas potáveis, uma, a Mina do João Paulo II e a outra, a Mina da Câmara, servida em três bicas na beira da Avenida São Francisco, na esquina de baixo da Casa de Leis. Ali, centenas de pessoas enchem seus galões com água fresca e cristalina todos os dias. O Ribeirão Primavera da minha infância, que corria por dentro da piscina do ‘seu’ Luiz Reis, mudou de endereço… Hoje mora nos recantos da memória, na fronteira do bucolismo com a saudade…
Há meio século havia ainda outros ribeirões deslizando ora alegres e sorridentes, ora sombrios e sorrateiros pelas baixadas e restingas urbanas de Pouso Alegre, tais como:
Ribeirão Cascalho
Ribeirão Saúde
Ribeirão São João
Ribeirão Santa Bárbara
Ribeirão Fátima
Ribeirão das Mortes… nosso clube popular.
Que pena que os ‘ribeirões da minha infância’ não esperaram para serem apresentados aos meus filhos e netos”…