Filomena…
Filomena morava com os irmãos ‘Zelino’ e Messias… Nenhum dos três se casou. Eram muito queridos e respeitados no bairro, mas eram de pouca prosa. O mais comunicativo era o caçula Messias… ele era surdo-mudo! Toda vez que se aproximava de alguém na estrada, emitia sons, gesticulava e sorria. Nunca consegui entender um gesto ou palavra sequer… mas eu tinha certeza que ele estava feliz em conversar com alguém.
Sua casa foi a última de pau-a-pique e ser demolida no bairro. Era amarela, grande, baixa, rente ao chão, cheia de janelas de madeira, coberta de telhas de bica como todas as casas da roça. Em seu lugar foi construída outra, também de pau-a-pique… Agora branca. Tinha um pequeno terreiro em volta. Algumas flores nativas. Logo em seguida começavam as plantações, uns dois hectares de terra roxa, plana. As vezes plantavam mandioca, outras vezes milho, feijão… Certa vez plantaram batata-doce, roxa. Quando plantavam milho a casa de pau-a-pique desaparecia atras do milharal. Como não usavam adubo, de vez em quando precisavam descansar a terra… aí simplesmente não plantavam nada e deixavam a soqueira de milho virar pasto, para arrendo. Animais na casa e no seu entorno, além de tatus e pacas que viviam do outro lado do ribeirão e frequentemente vinham comer milho no quintal, apenas galinhas e um gato preguiçoso. Ah, tinha também alguns lagartos do tamanho de jacarés, que vinham comer tenros pintinhos amarelinhos ainda em penugem na beira do terreiro! É dela uma frase que era contada em toda roda de contadores de causos do bairro… Nos seus afazeres domésticos um gato gordo e preguiçoso vivia se esfregando na barra do seu vestido, enquanto pedia comida. No mesmo ritmo enfadonho do gato ela teria dito:
– Chiiiiiiipa gaaaato, ôh amolaaaaannnnntttteeee…
Filomena tinha dois hábitos marcantes… Um, era não ir às casa das pessoas. Não que fosse antissocial, pois conversava muito bem com as pessoas quando as encontrava na estrada. E também recebia com cortesia as que a visitavam. Falava do tempo, reclamava da poeira, da falta de chuva, da falta de sol, da colheita que estava próxima… O outro hábito era ir à missa na igreja matriz de Congonhal, religiosamente, nos dois sentidos, todo domingo. Na capelinha do bairro ela ia uma vez por mês, pois o padre só vinha pastorear seu rebanho uma vez na ultima semana de cada mês! Chegava cedo. Se a missa era às sete da noite, muito antes de o sol recolher os bigodes ela já estava sentada num dos bancos ou na frente da capelinha na beira da estrada, no centro do bairro dos Coutinhos. Vinha devagar, caminhando ao lado do inquieto Messias – quando a capelinha ficou pronta, Zelino já havia partido – Se sabia que estava adiantada para a missa, vinha ainda mais devagar.
O passar dos anos promoveu muitas mudanças, muitas transformações sociais no país. Inclusive no bairro dos Coutinhos. Uma das mudanças diz respeito ao número de veículos existentes no bairro. A outra reporta ao hábito de oferecer carona. Há poucas décadas, ninguém passava de carro pela estrada sem oferecer carona para quem estivesse caminhando, fosse conhecido ou não. Porém, décadas atrás havia pouquíssimos veículos circulando ali. Durante muito tempo o único veículo, além da bicicleta, do cavalo ou do carro de boi, que levantou poeira na estrada do bairro dos Coutinhos, foi o Jipe com capota e janelas de lona do Abrão Venâncio! Hoje dezenas de carros, de todas as marcas e modelos, trafegam quase dia e noite! Mas ninguém oferece carona a ninguém! Até porque, ninguém conhece ninguém!
Essa transformação, da qual os irmãos “Lino” assistiram boa parte, não mudou uma vírgula as suas vidas. Os seis quilômetros que separavam sua casa de pau-a-pique amarela na Vargem do Coqueiro, da igreja Matriz de São José em Congonhal para a missa dominical, continuaram sendo percorridos com o mesmo motor… à pé! Iam sempre à ‘missa de cedo’, a das oito da manhã. Depois da missa faziam o mercado semanal no armazém do ‘Zé Véio’, distribuíam em três sacos de sal, jogavam nas costas e voltavam passo-a-passo para casa. Quem fosse à ‘missa do dia’, às dez da manhã, podia cruzar com os três irmãos ao longo da rodovia… Zelino, Filomena e Messias, em fila indiana, sempre nessa ordem, voltando lentamente para casa. Ela, na maioria das vezes, debaixo de um guarda sol preto.
A casa de pau-a-pique da Filomena era a mais próxima da minha, menos de duzentos metros, na direção da ‘civilização’. Bastava sair à janela da sala da nossa casa alta para avistar o telhado da casa dela. No entanto só fui lá uma vez, salvo engano, em 1987, velar o octogenário corpo do Zelino. A ausência do irmão mais velho mudou uma única coisa na vida de Filomena… Agora ela era vista na estrada do bairro, a caminho da missa em Congonhal, na companhia ‘apenas’ do irmão surdo-mudo e sorridente!
Seis anos mais tarde, aos 78 anos, o sorridente Messias calou de vez sua voz, tirou seus passos da estradinha poeirenta do bairro, e foi morar com o irmão no andar de cima!
A ausência do irmão caçula e silencioso, mais uma vez não alterou os hábitos de Filomena. Uma vez por mês ela beijava a ponta dos dedos e depositava o beijo na imagem do Menino Jesus de Praga, padroeiro da capelinha do bairro dos Coutinhos. A ‘missa de cedo’ aos domingos, continuou levando Filomena à igreja matriz de Congonhal… agora sozinha!
Certa manhã de domingo, em meados dos anos 90, depois da missa de cedo, demorei-me alguns minutos num mercadinho. Quando peguei a estrada alcancei Filomena. Sua figura era inconfundível, desde longe. Debaixo do velho chapéu de sol preto, ela seguia, como sempre passo a passo à margem da rodovia. Usava a costumeira saia grande quase arrastando pelo chão, uma discreta blusinha clara, um crucifixo de madeira pendurado no peito e o lenço bege cobrindo o coque de cabelos cinzas. Parei meu Escort prata alguns metros à sua frente e quando ela passou, ofereci carona!
– Não… Eu vou à pé mesmo! – respondeu ela, quase no mesmo ritmo em que falava com seu gato… e continuou andando.
Mais tarde comentei o fato na cozinha enfumaçada do meu tio …
– Ela escuta pouco e tem a vista ruim… Decerto ela não reconheceu você! – respondeu o ‘filósofo’ Antonio Paula.
O relógio de Filomena e dos irmãos sempre fora o sol, a lua e… o galo! Quando o sol se deitava, era hora de dormir. Quando o galo cantava, era hora de se levantar. Agora, octogenária, sem os irmãos para cuidar, sem o gato modorrento e amolaaaaaaannnnteeee se esfregando na barra da sua saia cinza na cozinha da sua casa -agora branca -, com a vista cansada e os ouvidos menos apurados, Filomena começou a confundir as horas do dia… e da noite! Como conservava o hábito de ir à missa na capelinha do bairro e à missa de cedo – e como mineiro, ainda mais Coutinho! não perde a hora – Filomena chegava sempre muito adiantada às solenidades religiosas. Se o ‘Pequeno Príncipe’ de Saint Exupery já estava à postos meia hora antes do encontro, Filomena se preparava muito melhor… Se a missa no bairro era às seis e meia da tarde, ela chegava com o sol alto… antes das cinco! Essa falta de noção das horas não acarretava prejuízo a ninguém… mas causava cenas ao menos curiosas! Bem curiosas…
Já debilitada pela idade e precisando de mais tempo para percorrer os seis quilômetros de estrada que a levariam à tradicional missa de cedo em Congonhal, Filomena saia de casa muuuuuito cedo… antes de o galo cantar! E muitas vezes chegava à igreja muitas horas antes de o educado e cortês sacristão Zé Olimpio abrir as portas. Tornou-se comum ver a velhinha solitária, sentada ao pé da pilastra da torre da matriz, ainda de madrugada, esperando o dia amanhecer! Se essa cena era comum, inusitado era cruzar com ela usando uma blusinha parda sobre o indefectível vestido cinza – o de ir à missa! – com a barra roçando a ponta da guanxuma, caminhando lentamente à margem da rodovia deserta, sob o plácido luar da lua cheia, no meio da madrugada!
Esta cena me remete à “Maria… 90 anos de solidão”, história da velhinha também octogenária que saiu para catar gravetos no pasto perto da sua casa à meia noite de lua cheia! A historia de Maria está no livro “Quem Matou o Suicida”!
Quem presenciou esta cena – uma velhinha caminhando solitária pela estrada de madrugada, iluminada pela lua cheia – com certeza, não parou para oferecer carona!
Se estivesse entre nós, hoje, em dias de Covid, Filomena não teria dificuldade de distanciamento. Era totalmente avessa a aglomerações. Alguns diziam que ela também não gostava de ser fotografada. Filmada então, nem pensar! Certa tarde fresca de meados dos anos 90, consegui filmar Filomena há cerca de cinquenta metros. Era um sábado, dia de missa na capelinha do bairro…
Filomena vinha lentamente pela estrada poeirenta, sem pressa de chegar. Quando eu a vi, a pretexto de filmar a casa da Catarina, posicionei a filmadora e fui captando uma panorâmica, lentamente, passando pela estrada por onde ela vinha. Demorei um pouco mais na figura octogenária, aproximei a imagem e segui filmando até a torre da igreja. Alguém que me viu filmando sutilmente a velhinha com fama de pouca prosa, falou:
– Se ela souber que você a filmou, ela vai te xingar!
… Acho que, de fato, ao menos de longe, Filomena não tinha vista muito boa!… rsrsrsrs.
Essa foi a última vez que vi Filomena caminhando. Em 2001, já sob os cuidados e o carinho dos funcionários do Asilo de Congonhal, Filomena foi se juntar aos irmãos Zelino e Messias… e, quem sabe, ao seu gato amolannnnte.
‘Filomena do Lino’ foi uma destas pessoas que exigiam pouco da vida… das pessoas, mas teve presença marcante na vida de várias gerações do bairro dos Coutinhos! Lembra um pouco, ao menos o título, do clássico de Erico Veríssimo inspirado nos ensinamentos bíblicos… “Olhai os Lírios do Campo”…
Poucas pessoas deixaram tantos rastros, – literalmente –, como Filomena, na minha terra!
*** Um velho hospede do Hotel do Juquinha acaba de tropeçar e cair nas malhas da lei.
Breve você vai saber, aqui no blog, quem é ele e os detalhes da sua prisão.
Uma dica: ele tem nome de cantor!