Assalto ao Baronesa…

… E o dilema do detetive endividado!

Ferreira era um daqueles raros policiais que viviam exclusivamente do salário recebido do Estado. A maioria dos seus colegas tinham uma atividade paralela: uns faziam ‘bicos’ como segurança, outros tinham um comercio, alguns tinham rendas digamos…‘não declaráveis’!

Ferreira bem que tentou descolar uma renda extra. Iniciou uma granja de codornas, tentou criar galinhas entrou no ramo de mascate de roupas, foi cobrador de dívidas, foi cartola de futebol amador, enveredou-se pelo jornalismo e pelas ondas do rádio… mas nada disso rendia dim-dim! Há anos vivia no vermelho. Nos últimos anos, quando os dois filhos foram para a faculdade a situação… piorou! Pagava a faculdade dos garotos uma vez por ano, sempre em janeiro… Senão não renovava a matrícula!

Certa madrugada o detetive Ferreira teve a oportunidade de colocar as finanças em dia…

Primeiros minutos de uma madrugada fresca de segunda feira. O plantão na velha delegacia de polícia da Silvestre Ferraz estava um marasmo só. Os aviõezinhos e formiguinhas haviam distribuído toda a ‘farinha’ da cidade na madrugada anterior; os pés de cana já haviam ido dormir; os guampudos que, por qualquer motivo, costumam descer o borralho na cara-metade, também já estavam nos braços de Morfeu…  E a DP estava entregue às moscas. Até que, um telefonema da PM solicitou a presença do Perito Criminal a um local de roubo! Uma quadrilha havia feito uma limpeza no cofre do Baronesa!

Não é comum o detetive de plantão acompanhar o perito a locais de crime. Menos ainda o Ferreira, pois ele trabalhava na DH e, além de gostar, tinha mais experiência na investigação de homicídios. No entanto, quando o perito passou pelo hall com sua maleta e o convidou para acompanhá-lo ao local do roubo, ele topou. Afinal, além de quebrar a rotina, dois policiais teriam mais chances de encontrar as pistas que levariam aos assaltantes. Mal sabia o detetive que aquela seria uma das madrugadas mais “conflituosas” da sua carreira!

Os bandidos haviam entrado pelos fundos do hipermercado e após render o segurança, foram direto para o escritório. Embora tivessem completo domínio da situação e um pouquinho de perspicácia… Para evitar chamar a atenção de outros seguranças e da vizinhança no início da madrugada, eles não acenderam as luzes. Usaram lanternas para iluminar o caminho e o local do ‘pote de ouro’. Mas tinham pressa, muita pressa… e pouca habilidade e delicadeza! Após encheram os malotes com tudo que podiam carregar saíram correndo no escuro… E foram deixando os vestígios do crime pelo caminho.

Comunicado o roubo, a PM naturalmente foi a primeira a chegar ao local do sinistro… e não tocou nos ‘vestígios’!

Quando o detetive Ferreira e o perito chegaram ao local, depararam com uma cena inusitada! Ao longo da rampa de acesso ao escritório havia dezenas de pacotes de dinheiro amarradinhos com elásticos, espalhados pelo chão! Foi aí que começou o dilema do detetive Ferreira!

Com a aposentadoria quase batendo à porta, e as contas vencidas quase chegando ao pescoço, de repente ele viu a oportunidade de sair do atoleiro de dívidas. A solução estava a seus pés! Literalmente a seus pés! Bastava abaixar-se e pegar um pacotinho. Um mísero pacotinho resolveria todos seus problemas. Não precisava ficar rico. Bastava apenas pagar as contas.

Todos os pacotinhos de dinheiro espalhados, desde o escritório até ao longo da rampa, continham cem notas. As de R$ 50 somavam, portanto, cinco mil reais. As de R$100 somavam dez mil. Um pacotinho daqueles de notas de cinquenta daria para pagar todas as dívidas da faculdade dos meninos e talvez sobrasse para comer uma pizza no Pier! Se pegasse um pacotinho de notas de cem, daria para colocar e manter suas contas no verde por muito tempo. Quem sabe até passar um final de semana num hotelzinho duas estrelas em São Lourenço ou Caxambu! Precisava ser rápido e sutil! Lá atrás o gerente, ou talvez o dono do hipermercado, conversava com o oficial da PM. O perito ao seu lado estava absorto tirando fotos. Não podia escolher… Tinha que abaixar-se rapidamente e pegar o pacotinho que estivesse ao alcance da mão.

Pegar ou não pegar o pacotinho de dinheiro? This is the question!

Enquanto desciam lentamente a rampa registrando cada detalhe que pudesse identificar os assaltantes, Ferreira travou sua mais notória batalha entre o bem e o mal. Precisava pegar aquele dinheiro para pagar suas contas… Mas não podia fazê-lo! Era contra seus princípios! Além do mais, embora vivesse sempre no vermelho… andava de cabeça erguida!

“Você viveu até aqui sem pegar o que é dos outros. Esse não é seu. Não é certo”, dizia um anjinho de braços cruzados, com uma coroa dourada sobre a cabeça, à sua direita.

“Deixa de se tolo! Não tem ninguém vendo! Vai ficar na conta dos assaltantes mesmo”, dizia um chifrudinho sacudindo um tridente em brasa!

O dilema vivido pelo velho detetive naquela madrugada lembra a piada do Papa Paulo VI quando da visita de Sofia Loren – dona do mais belo par de seios de meados do século passado, ao Vaticano. Dizem que quando ela se inclinou para beijar-lhe a mão, os voluptuosos e rosados seios quase saltaram para fora do decote! Diante de tão sublime visão, o santo papa engoliu em seco e não conseguiu desviar os olhos. Ao perceber o ligeiro devaneio do papa, o anjinho à sua direita teria exclamado com os olhos arregalados:

“Papa Paaaaauuuulo”!!!

Já o ‘chifrudinho’ da esquerda teria encorajado o santo – assanhado – papa, mudando apenas a interjeição…

“‘papa’, Paulo, ‘papa’…”

 

Mas o detetive Ferreira não ‘papou’!

Seu anjinho de aureola dourada venceu a batalha!

Os pacotinhos de notas de cinquenta e de cem continuaram espalhados na rampa do escritório do Baronesa à disposição do seu dono.

De volta à delegacia Ferreira gastou o resto da madrugada para fazer o relatório do caso e de outros em investigação. De manhã, quando chegou em casa, dormiu o sono dos justos. À mesa do almoço contou o fato à família. Os filhos ouviram em silencio. Se limitaram a pousar cada um a mão no seu ombro. Um breve afago… um afago que não tem pacotes de notas de cem que pague!

Nos anos seguintes, com a promoção por antiguidade e o consequente aumento de salário, e o término da faculdade do filho mais velho, Ferreira começou equilibrar as finanças. Três anos mais tarde, ao aposentar-se, finalmente zerou as contas. Apesar de ter vivido muitos anos no vermelho, Ferreira sempre teve sinal verde por onde passou… e sempre pode encostar a cabeça no travesseiro e entregar-se imediatamente às caricias de Morfeu!

Anos atrás, durante um encontro casual com o perito, Ferreira relembrou o fato e disse que estava pensando em contar nas redes sociais o dilema vivido naquela madrugada.

“Eu não faria isso… Pode parecer demagogia”! – disse o cético perito.

Hoje Ferreira finalmente resolveu contar o dilema daquela noite.

“Julguem como quiserem” – disse ele.

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