Cheguei a Pouso Alegre há 40 anos, quando a população mal somava 40 mil habitantes. Não cresci ainda o suficiente para retribuir as possibilidades que Deus me deu, mas cresci e vi a cidade crescer e quadruplicar. Sempre me alegrei com o crescimento das pessoas à minha volta, especialmente aquelas do meu convívio que se tornaram social e profissionalmente homens bem sucedidos, alguns com os quais tive a felicidade de compartilhar parte de minha infância, adolescência e juventude.
Se me alegro com o sucesso, me entristeço com a decadência de meninos, que do meu convívio estreito ou não, vi crescer à minha volta. Não sei dizer quantos, mas vi crescer muitos garotos certamente com sonhos iguais aos meus ou de meus amigos, mas que nas encruzilhadas da vida fizeram a opção errada. Muitos na verdade não fizeram opção alguma. Apenas não ouviram uma palavra amiga, não tiveram um afago paterno ou um braço firme e generoso no ombro para mostrar o caminho certo e seguiram sem rumo. Desviaram-se para o que parecia mais fácil, mas que se tornou doloroso, lamacento e quase sem volta caminho do crime.
C.A. da Silva era um desses garotos. Esperto, sonhador, franzino, criado numa rua estreita do bairro São João com vários outros irmãos. Tinha medo dos outros garotos de sua idade, pois era menor e mais fraco que eles, mas logo descobriu que se batesse primeiro poderia amedrontar os outros. Ainda impúbere C.A. ganhou um apelido que o acompanharia pela – curta – vida toda; Perfeito.
Conheci Perfeito por acaso numa situação totalmente inusitada. Certa manha de meados de dezembro descia eu lentamente uma rua do bairro São João, conduzindo a 6252 juntamente com meu parceiro e futuro afilhado Fernando, quando avistamos à nossa frente um garotinho de cerca de doze ou treze anos, entre outros da mesma faixa etária, exibindo uma pistola oxidada, como se estivesse prestes a disparar azeitonas quentes. Exibindo mesmo, tanto que me aproximei com cautela e com a mão esquerda, de dentro da viatura tomei-lhe a reluzente pistola… de plástico. Assustado, não tanto pelo fato de ser surpreendido pela policia, muito mais por ter perdido seu brinquedo, Perfeito mostrou-nos sua casa, alguns metros rua abaixo. Instantes depois sua mãe, sem muito constrangimento, explicou que dera ao filho dois reais para comprar um brinquedo e não sabia que ele queria comprar uma arma – E certamente não se importaria se ele tivesse dito.
Depois do ameno sermão seguimos nossa rotina pelo bairro. Uma semana depois passamos novamente pela mesma rua, na ágil 6252 e lá estava Perfeito sentado na sombra da própria casa ladeado pelos amigos e irmãos. Como da vez anterior, de dentro da viatura fizemos o inverso. Entregamos ao franzino garoto uma bola de futebol e um panetone. Não disséramos nada quando tomamos a pistola, mas parece que Perfeito estivera ali todos os dias esperando por ‘aquela compensação’. Um dos garotos correu para dentro da casa para entregar à mãe o panetone e os outros imediatamente fizeram a bola rolar e quicar na rua poeirenta defronte sua casa como se fossem crianças!!! Não precisávamos de palavras, o gesto já dissera tudo mas, ao nos afastarmos, Perfeito desviou por um instante os olhos da bola que já estava manchada de poeira, levantou um dos braços e… acho que ele disse “obrigado”. Foi o melhor presente de Natal que já dei a alguem.
Anos depois, ao folhear os BOs na Delegacia de Policia a procura de assuntos para meu programa “Direto da Policia”, encontrei um BO da noite anterior que narrava uma tentativa frustrada de assalto a um supermercado do bairro Santa Luzia. Segundo o relato dos policiais, o comerciante percebera a presença de um sujeitinho com pinta de somongó, espreitando sorrateiramente o estabelecimento e chamara os homens da lei. Na abordagem fora encontrado com o ‘futuro’ gatuno um trezoitão meia-vida, porém devidamente municiado, pronto para ameaçar e vomitar azeitonas quentes se fosse necessário. O frustrado assaltante era C.A.da Silva, o Perfeito, agora com 15 anos e… uma arma de verdade.
Embora Perfeito já fosse conhecido por outros delitos mais leves, este foi meu primeiro contato com ele depois do presente de Natal. Muitos outros ainda aconteceriam. Furtos, uso e trafico de drogas, roubos, tentativas de homicídio ainda engrossariam a ficha criminal deste menino que vi crescer. Certa manha ao chegar para trabalhar no CPD, lá estava no banco da velha delegacia, o garotinho Perfeito, esperando uma formalidade para ser liberado, pois caíra nos braços da PM, fazendo um “aviãozinho” na madrugada e como ainda era inimputável, depois de enquadrado em ‘procedimento especial de menor’ voltaria para as ruas. Ao ver-me puxou prosa e com sorriso infantil e maroto de gato que acabou de comer o toucinho, desfiou a velha ladainha; “…parei com a nóia”. Vou arrumar um ´trampo´ e mudar de vida”. Eu ainda conversava com ele no corredor quando Teobaldo veio apagar seu sorriso, já um pouco sacana de quem diz: “fica na tua mané, daqui a meia hora ´tô´ na rua e já vou fazer outra parada”, “vocês nunca vão me pegar”. Neste momento ele foi pego. O detetive estendeu-lhe pulseiras de prata ao mesmo tempo que informava a mim e a ele; “ Você completou 18 anos ante-ontem ”. Agora você é “dimaior”. Vai ser fritado no 12 e ´subir´. E Perfeito que naturalmente já conhecia o velho hotel da Silvestre Ferraz por temporadas de custodia de 45 e 90 dias, perdeu completamente a vontade de exibir os alvos dentes. Subiu uma hora depois para o ‘lar, doce lar’ para uma temporada de 4 anos.
Na verdade não ficou tudo isso não. Dias depois na calada da noite fez um ´tatu´ no teto, subiu ao telhado, desceu pela ´tereza´ na frente do velho hotel e dobrou a serra do cajuru. Entre outras coisas, Perfeito foi pra rua acertar uma treta com Zezinho Fernandes, um velho desafeto do bairro… mas não foi perfeito. Na briga recebeu um golpe de lapiana na região abdominal e teve que adiar o acerto de contas. Levado para o PS, ele não morreu, mas voltou para o velho hotel e durante muitos meses carregou uma bolsa de colostomia presa à cintura. Mas nem isso tirou-lhe a mobilidade e nem abrandou seu coração insensível e sedento de poder. Jogava futebol daquele jeito mesmo no pateo da cadeia nos dias de banho de sol e certa vez quase matou um preso ´pé-de-couve´ que assistia a pelada da ´ventana´ do xadrez, apenas para mostrar que podia faze-lo. O homicídio por asfixia junto às barras de ferro da janela só não se perpetrou porque ouvimos os gritos abafados da vitima e de seu irmão que tentava puxar o homicida pelas pernas de volta para o pátio.
Aos vinte e dois anos, um metro e sessenta, 52 quilos, ágil como um gato preto que era, Perfeito era um dos meliantes mais conhecidos da Policia e um dos mais temidos e respeitados do velho hotel. Mas ele não podia parar, pois a lógica é simples: quem para é ultrapassado e como liderança na prisão se conquista com força, violência e maldades, quem perde a liderança se torna um mortal comum e poderá ser a próxima vitima de quem busca o poder. Para manter-se em evidencia, na crista da onda, o pequeno meliante agitava diariamente o velho hotel, arrumando confusão com outros presos e a com a carceragem. A solução encontrada pela administração para baixar-lhe o facho foi transferi-lo para outra cadeia. Em Bueno Brandão Perfeito não tardou a colocar as manguinhas de fora… e superou-se, exagerou… colocou fogo na cadeia. Foi transferido para Cambuí. Local perfeito para a aprendizagem de Perfeito. Com meliantes paulistanos que todo dia descem a Fernão Dias com grandes cargas de drogas e acabam caindo nas malhas da séria e eficiente policia mineira, o garotão do panetone faria pós-graduação no crime. Na terra dos Lambert, Perfeito naturalmente quis mostrar que era um perfeito líder… um perfeito homem mau. Ao ouvir o comentário de um colega de hospedagem de que não gostava de tatuagem, embora tivesse varias pelo corpo, Perfeito tratou de ajuda-lo a desfaze-las e para isso usou uma lamina de gilete… sem anestesia. A ‘cirurgia’ pegou mal e causou agitação e revolta no velho hotel de Cambuí. Perfeito tornou-se ‘persona non grata’ e sua permanência ali perigava explodir o caldeirão. Com a superlotação reinante na região e a fama de agitador de cadeia, Camanducaia, Santa Rita, Albertina, Extrema, Ouro Fino, Borda ou São Gonçalo não o queriam nem pintado de ouro. O jeito foi devolve-lo à origem. E o pequeno grande meliante recebeu seu ultimo ‘bonde’; retornou a Pouso Alegre. Chegou numa sexta feira no final da tarde para sua ultima viagem. Seu destino já estava traçado. Quem vai ao vento, perde o assento… Ele havia perdido seu posto de lider. A noite transcorreu aparentemente normal na cadeia. Apenas um som de ‘rap’ ou de tv mais alto numa ou noutra cela mas nada que fugisse à rotina. E ainda que a guarda fosse alertada, o que fazer quando vinte homens embrutecidos e fedidos num cubículo que cabem seis colchões estendidos no chão, decidem acertar suas contas? Na manha de sábado ao entrar na cadeia para a inspeção de rotina, o carcereiro foi informado que havia um “probleminha” no X 08. Enrolado em ‘cotonete’ – um lençol imitando uma camisa de força – Perfeito agora parecia perfeito; calado, inexpressivo e frio jazia pendurado por uma ´tereza´ na ventana.
Uma bola de futebol e um panetone às vésperas do Natal, não foram suficientes para mostrar a C.A. da Silva, o Perfeito o caminho perfeito a seguir. No ‘torto’ ele não foi longe…