Corria o ano de 1975.

“Rinha” e seus Rodeios, no centro de Pouso Alegre, nos anos 1970.
“Rinha” e seus Rodeios, no centro de Pouso Alegre, nos anos 1970.
Alheio aos ritos cerimoniais, ele estava misturando Jesus com Genésio!
Você já pensou em ser artista de teatro no cotidiano? Se passar por outra pessoa?
Já pensou em se apresentar numa delegacia de polícia dizendo que é delegado e assumir suas funções?
Ou então se apresentar no fórum da Comarca dizendo que é o novo promotor de justiça e ter acessos aos processos, participar das audiências e até mesmo convocar e participar de diligências policiais?
E Padre?
Já pensou em ser padre de mentirinha? Celebrar missas, ouvir confissões, ganhar presentes das beatas, dar a benção para fiéis, ser reverenciado na rua e morar de graça na casa Paroquial? E, quem sabe, até dar assistência… digamos, ‘calientes’ à algumas beatas ‘pouco católicas’ e fogosas?
Este parece ser o melhor personagem, não é?
Pois foi o personagem que Fabrício G.M., 35 anos escolheu. Ele se apresentou na igreja de São Pio, no bairro Quitandinha, na cidade de Araraquara como Padre Fabrício e passou a celebrar missas e outras cerimonias. Tratado pelos fiéis com o devido respeito e crédito que merece um emissário de Deus, ‘padre’ Fabrício foi até uma livraria católica e comprou cerca de R$ 2 mil reais em livros e artigos religiosos…. e mandou ‘pendurar’ na conta da paróquia, naturalmente.
O falso padre estava ‘vivendo no céu’! Só tinha um problema: como ele nunca foi um assíduo frequentador de igreja, e não fez nenhum curso preparatório, ele não estava sabendo celebrar direito as missas. Na verdade, ele ‘não sabia da missa o terço’! e passou a misturar os ritos e santos, além de confundir Jesus com Genésio.
Alguns fiéis, percebendo que o novo padre não era muito católico, resolveram pedir ao padre da matriz de Araraquara para ajudá-lo…. E foi aí que o santo mostrou as ‘solas dos pés sujos’! Era um tremendo picareta, infiel, tentando levar a vida de bem-bom da batina.
Constatando que o padre era bem menos padre do que o sacristão, o vigário da paroquia, sem estardalhaço, levou o fato ao conhecimento dos homens da lei. Consultando sua capivara, descobriu-se que Fabricio era figurinha fácil no álbum da polícia paulista pelos crimes de falsidade ideológica e furto.
Ao interpretar mal o papel de padre, o palco do Fabricio caiu, e ele finalmente se enroscou nas malhas da lei. Na sua última missa celebrada na capela da Vila Quitandinha, havia dois beatos a mais na plateia de fieis. No final da missa os dois se aproximaram com cara feia, sacaram da algibeira um “mandamus” do Homem da Capa e disseram aquela velha frase que faz gelar a espinha:
– “Teje preso”! – E lhe mostraram as pulseiras de prata.
Embora cultue a arte da representação teatral, Fabricio, de 35 anos, não leva jeito para a vida artística. Na capital paulista e arredores ele já foi “advogado” e “Delegado Federal”, mas nunca recebeu aplausos e sempre teve que sair pela porta dos fundos!
Se Deus perdoou Fabricio pela farsa da batina, não sabemos. A justiça, não! Depois da missa ele recebeu as pulseiras de prata da lei, como qualquer mortal pecador, e foi se hospedar no hotel do Juquinha de Jaboticabal.
*** O falso padre conseguiu enganar os fiéis do bairro Quitandinha por apenas duas semanas. Em Pouso Alegre, no final dos anos 80, um cidadão serio e bem trajado se apresentou no Fórum da Comarca dizendo que era Promotor de Justiça. Assumiu o cargo e durante quase três meses acompanhou audiências e falou em processos. Como ele gostava mesmo era do trabalho policial, acompanhou dezenas de blitz e rondas policiais pela cidade. Era tão Promotor de Justiça quanto o padre Fabricio. Mas ele foi mais bem sucedido do que o padre. Quando percebeu que a casa iria cair, o falso promotor desistiu da promissora “carreira’ e dobrou a serra do cajuru!
A noite estava mais escura do que qualquer outra. Das encostas e colinas as pessoas viam apenas as luzes tremeluzentes dos poucos carros que se arriscavam a subir ou descer a serra pela serpenteante estradinha para cruzar o caudaloso Rio das Antas. Aos poucos a estrada foi ficando deserta, até que ninguém mais passou por ali. Agora a ponte, as águas vermelhas e agitadas do rio, o cume das montanhas de todos os lados e parte do vale só apareciam quando os relâmpagos cortavam o céu. Era nesse momento também que as pessoas viam o tamanho do pavor: uma nuvem gigantesca pairava no alto, no nível dos cumes das montanhas que cercam o vale e o rio. Parecia uma nave gigantesca, do outro mundo, que as vezes se deslocava seguindo o curso natural do rio parecendo que ia seguir para o mar distante. Do nada, ao sabor do vento, a nuvem amedrontadora voltava para a escuridão da serra. De repente a nuvem começou a desintegrar … e o gigantesco diluvio caiu sobre o rio, sobre a serra, sobre as casas! Não só molhando, mas quebrando arvores, deslocando pedras, destruindo!…
A primeira vítima foi a energia elétrica. E o vale ficou totalmente no escuro. E ficaria assim durante 41 dias!
A segunda vítima da tempestade foram os cumes das montanhas. Arvores centenárias, gigantes, pedras há milênios intocadas se desprenderam dos cumes, das encostas e desceram montanha abaixo arrastando impiedosamente tudo que encontrava pelo caminho.
A terceira vítima foram os moradores daquelas encostas. Pessoas que estão ali há décadas, nos pequenos sítios, nos comércios de beira de estrada…
Só ali no Distrito de Tuiuti, no Vale do Rio das Antas, duas dezenas de vidas foram levadas ou soterradas pelos deslizamentos de terras.
O caso mais comovente aconteceu no alambique de um amigo meu, fincado ali na encosta do Vale do Rio das Antas desde o início do século passado.
Uma família, cuja casa corria rico de ser arrastada pela fúria da tempestade, abandonou a moradia e foi se abrigar no alambique, do lado de cima da estrada. Uma garotinha de 4 anos, que não tivera tempo de se agasalhar, passava frio. A funcionária do alambique se ofereceu para buscar um agasalho para ela em sua casa, a cem metros dali. O marido quis ir com ela pela trilha escura. Mas foi o pai, que também morava com eles, que a acompanhou. E foram ambos, a jovem e o pai buscar os agasalhos a poucos metros dali. Passados alguns minutos as pessoas que estavam no abrigo ouviram mais um estrondo. Correram na direção da casa a tempo de presenciar parte da tragédia. Um pedaço do cume da montanha havia se despregado e descera a encosta arrastando pedras, arvores, canaviais, cafezais e tudo que havia em seu caminho. A casa dos funcionários, a poucos metros do alambique estava no seu caminho. Os patrões e o marido da jovem chegaram a tempo de ver a casa ser moída e arrastada pela avalanche como se fosse um pedaço de cana. Em segundos a casa e tudo que havia nela desapareceu em meio à montanha de entulhos e escorregou para o traiçoeiro rio poucos metros abaixo da estrada. Os corpos da jovem esposa e do seu pai nunca mais foram encontrados.
Os proprietários do alambique e o marido viúvo continuam lá, tocando o centenário alambique artesanal, tocando a vida. Do canavial, do alambique, das janelas de suas residências ao lado, do deck, da porta da loja, de qualquer lugar se pode ver as cicatrizes na terra, o rio que continua seu destino silencioso, às vezes sereno, às vezes caudaloso escondendo seus segredos. Nalgum lugar do seu leito repousam os corpos da jovem esposa e seu pai. As águas seguem, a vida segue… mas nunca mais serão as mesmas!
Sete meses depois da revolta da natureza e da tragédia que ceifou vidas e sonhos, a vegetação rasteira começa cobrir de verde as chagas vermelhas da montanha ferida… Mas a cicatriz ficará para sempre, na montanha… e nalguns corações!
Garibaldi…
Dois mil e vinte quatro foi (mais) um ano abençoado! Voltei para minha terrinha, para meu habitat…
Tatiana deu uma guinada na carreira e vem se projetando numa nova atividade profissional…
Meu caçula fez uma transição perfeita da infância para a adolescência, conquistando seu espaço, novas amizades… Cresceu sem perder a pureza!
Publiquei meu quarto livro – Cachorradas da Minha Vida -, cada vez mais lido. E conclui o quinto para publicar este ano… Sim, um ano para brindar!
E se é para tilintar taças nada melhor do que um bom vinho! Então, fomos para o Sul… nosso velho roteiro de férias!
Primeira parada: Bar do Alemão – uma mistura de castelo com barracão rústico no centro histórico de Curitiba. Parada obrigatória de quem desce do Sul de Minas para o Sul do Brasil. Lugar meio mágico, místico, bem frequentado e barato!
Destino final – e estratégico: Farroupilha.
De Farroupilha se vai para uma dúzia de cidades e uma centena de vinícolas num raio de trinta quilômetros – meia hora de viagem – tais como Garibaldi, Bento Gonçalves, Carlos Barbosa, Pinto Bandeira, Flores da Cunha, Caxias do Sul…
Do centro de Farroupilha ao Vale dos Vinhedos, onde em cada encruzilhada tem uma nova vinícola brotando a cada ano, são menos de trinta minutos. Ali estão as vinícolas Aurora, Miolo, Casa Madeira, Casa Valduga, Dom Candido, Carrara e tantas outras.
A bucólica Casa da Erva Mate, a Casa da Ovelha e outros endereços tradicionais, acolhedores, bucólicos e cheios de saudosismo estão no “Caminho de Pedra”, a menos de 15 quilômetros do centro de Farroupilha.
Se, no final do dia, a gente quiser dedicar uns minutos para afagar a religiosidade e apascentar o espírito, o Santuário de Caravaggio, através de uma estradinha florida, está a dez minutos de viagem. O Por do sol, em qualquer estação do ano, entre os braços da imagem de Nossa Senhora de Caravaggio, não cobra nada, mas vale o ingresso!
O “Natal dos Vinhedos”, realizado na sexta e no sábado que antecede o Natal, é o ‘cartão de visitas’ para quem desce para o Sul nessa ocasião. Regada a muuuuiiiito vinho, churrasco e boa música temática, ao vivo, a festa acontece desde o crepúsculo até a madrugada no pátio da vinícola Miolo, em Bento Gonçalves. Criada pelos produtores de uvas da região para ressuscitar o turismo pós-Pandemia, a festa encanta, contagia, emociona e nos renova.
E Gramado?
Ir à Serra Gaúcha e não visitar Gramado e Canela… é como ir à Roma e não visitar o Coliseu!
É linda, colorida, mágica, encantadora… e cara! E basta um dia e uma noite. Programa ideal é o passeio no ônibus turístico (vermelho, de dois andares e teto solar) pelos principais pontos turísticos de Gramado e Canela, cerca de duas horas de passeio, de preferência pela manhã. Depois do almoço o turista volta de carro aos pontos que mais agradou. Foi o que fizemos em 2016. À noite, o jantar na Rua Coberta completa o sonho de conhecer a Serra Gaúcha.
Depois dos fermentados de uva da Serra Gaúcha, era hora de degustar fermentados de cevada em Blumenau, a capital nacional da cerveja. E de degustar também alguns destilados de cana produzidos ali nas imediações. A Cachaçaria Moendão, uma das mais premiadas nos concursos de Bruxelas fica na beira da estrada em Gaspar. A Bylaardt de Luiz Alves, não menos laureada, tem uma loja só dela no centro comercial de Pomerode, a cidade mais alemã fora da Alemanha.
De Blumenau para… Rio de Janeiro!
Afinal, a maior queima de fogos do Reveillon – no Rio e Niterói – pode ser vista da casa da sogra no Aterro do Flamengo, rsrsrs. Terminamos o ano velho e começamos o ano novo com o pé na estrada. Sim, 2024 foi fantástico. 2025, com as bênçãos de Deus, vai pelo mesmo caminho.
Meu novo livro chega no começo de março…
A você que acabou de ler este post, espero que seu 2024 tenha sido tão bom quanto o meu. E desejo que 2025 seja ainda melhor.
Deus te abençoe!
Madrugada fria e silenciosa de finados no bairro Lagoinha. Um soturno lombrosiano se aproxima da grade que circunda o prédio, joga cobertores velhos e trapos sobre a afiada e ameaçadora concertina, neutraliza suas garras e a cerca elétrica, escala a grade e pula para o pátio do pequeno condomínio. Seu alvo é o terceiro andar do predinho de apartamentos cuja cortina balança suavemente ao sabor da brisa que entra pela janela aberta. Pacientemente ele coloca seus talentos aracnídeos em ação… E escala o prédio usando as janelas e as sacadas até chegar ao apartamento da sua escolha. Silencioso como um gato, ele desfila pelo apartamento, escolhe pacientemente a res furtiva e, tão sorrateiro quanto entrou, sai de fininho sem ser percebido.
O morador continua solenemente nos braços de Morfeu. Tem o sono pesado. Sonha, talvez, com uma promoção no trabalho ou, quem sabe, com os meliantes que prendeu no dia anterior.
– Esse foi o crime perfeito! Digno de Oscar’. Meus ‘parças’ de caminhada vão me respeitar. Já o tira vacilão, quando acordar de manhã e descobrir a ‘parada’, vai ter um mistério para investigar! – Pensa o homem aranha descendo sorrateiramente as escadas internas do predinho.
Seria mesmo um crime perfeito!… e misterioso!
Mas…
Eram as primeiras horas do Dia de Finados… Havia muitos espíritos desencarnados fazendo festa por ali, comemorando seu dia. Mas foi um encarnado que casualmente saia para o trabalho que o surpreendeu. Quando o gatuno descia a última escada para chegar à garagem, onde pegaria a principal rês furtiva cuja chave levava na algibeira, o morador apareceu no seu caminho e colocou a boca no trombone! Em segundos o prédio todo foi sacudido pela desafinada sinfonia do morador do primeiro andar:
– “Pega ladrão”!…
Metade dos moradores do prédio saltaram dos braços de Morfeu e desceram a escada para ajudar o vizinho… inclusive o dono do apartamento invadido e furtado!
Em poucos minutos o gatuno foi dominado pelos moradores e entregue aos homens da lei que não tardaram a atender ao chamado…
Ao deter o gatuno, o morador do apartamento invadido minutos antes, sem saber que ele havia sido a vítima da vez, reconheceu o meliante. Duas semanas antes, ele, o morador, havia detido o mesmo gatuno – sem convite – no interior do condomínio e o havia entregado à polícia militar. Por isso mesmo ele fez questão de ir à delegacia acompanhar a lavratura do flagrante. – Quem sabe desta vez o meliante criasse raízes no hotel do contribuinte.
– Que ousadia! Entrar no mesmo prédio uma semana depois de ter sido preso! – pensava o morador revoltado.
Mais surpreso ele ficou quando adentrou seu apartamento para pegar os documentos e as chaves do carro. Não estavam onde ele costumava deixar! Bastou uma rápida procura para chegar à conclusão: ele fora o premiado com a visita sorrateira do gatuno da madrugada! O lombrosiano havia furtado roupas, as chaves do carro e…pasmem!!! sua pistola Glock, carregada até a boca de azeitonas.
Sim, a vítima – escolhida – do furto do terceiro andar é policial! O meliante roubou sua ferramenta de trabalho e pretendia roubar também sua caminhonete que estava na garagem!
As surpresas não param por aí!
Ao chegar à delegacia – em tempo recorde – o policial constatou que sua pistola ainda estava na cueca do gatuno! Felizmente ele usava pulseiras de prata e não pôde exibir a pistola. Além da arma, que não teve oportunidade de usar, o meliante usava calça, camiseta e tênis furtados do policial enquanto ele dormia. As chaves da caminhonete estavam na algibeira da calça de camuflagem …
O ousado gatuno ladrão de policial – e dublê de Peter Parker – é figurinha fácil no álbum da polícia. Seu currículo é recheado de 33, 157 e 155 como esse. Se ele tivesse conseguido levar a caminhonete e a pistola do policial, por um bom tempo seus ‘parças’ de caminhada o tratariam como a ‘última batatinha do pacote’! Ganharia status no submundo do crime…
Metade da façanha ele conseguiu, mas… “Perdeu gatuno”!
Ah, no momento da prisão, o ‘homem aranha de araque’ portava na canela um famoso ‘adereço’, também conhecido como: ‘passaporte para cometer novos crimes’! Aliás, passaporte muito comum entre os meliantes – e políticos – hoje em dia: uma ‘tornozeleira eletrônica!
Jó… quando ainda rachava lenha para ganhar um prato de comida!
Ninguém sabe ao certo quando elas pararam no bairro pela primeira vez! Quando os moradores perceberam, elas estavam acampadas sob uma caneleira na beira da estrada. Dormiam sob arvores e sobre trapos! Quando se deslocavam carregavam as tralhas em sacos nas costas. Pediam o almoço aqui, o jantar ali e tornavam a arranchar sob frondosas arvores nativas. Quando chovia, dormiam na beira de ranchos ao longo da estrada. Ficavam uns dias por ali nessa rotina até que desapareciam. Cavaleiros ou carreiros de boi que levavam mercadorias ou gado de Congonhal para Pouso Alegre diziam tê-las visto caminhando ou arranchadas ao longo do caminho. Alguns meses depois voltavam a arranchar no bairro dos Coutinhos. Vinham sempre pelo bairro dos Macacos, dobravam o morro das onças e chegavam ao centro do bairro. Inicialmente eram duas: Bastiana ‘velha’ e a filha Bastiana ‘nova’. Depois vieram os filhos da Bastiana nova: Dito e Jó.
Jó cresceu andando pelas estradas quase desertas da região, andando lentamente atrás da mãe e da avó. Andava lentamente porque elas, carregando as tralhas ajoujadas nos ombros, não conseguiam andar rapidamente. E não havia pressa. Não tinha uma tarefa para tirar. Não tinha um destino aonde chegar. A única coisa que os esperava no final do caminho era uma sombra de arvore para descansar. E a sombra não ia sair do lugar ou reclamar se eles atrasassem.
A hospitalidade peculiar dos descendentes de João Coutinho Portugal, pôs fim à vida nômade da família da Bastiana. Inicialmente faziam paradas mais longas ali no bairro do que em qualquer outro trecho da região. No seio daquele povo alegre, compassivo e ordeiro – e religioso – era fácil conseguir comida. Depois de anos andando pelas estradas com as tralhas em sacos ajoujados nos ombros, no final dos anos 50, finalmente fixaram residência ali, onde construíram uma choça na beira da estrada. Era uma choça mesmo. Feita de bambus inteiros e coberta com sapé. Apenas o lado interno das paredes era preenchido com barro, para evitar a entrada do vento. Juntando pedras e barro construíram também um fogãozinho no chão na entrada da morada. A utilidade maior do fogão era esquentar água e… esquentar os pés, antes de dormir! A choça foi construída embaixo de uma moita de bambu, entre a BR 459 que seria asfaltada e a estrada Velha que levava quem quisesse para Congonhal. A água corrente ficava há cerca de cem metros abaixo no Ribeirão Santo Antônio que corta em toda extensão o bairro.
Jó era saudável e tinha braços fortes, mas tudo que aprendeu na vida durante suas andanças, era rachar lenha, carpir horta, limpar curral, atividades que não exigiam nenhuma habilidade construtiva, ferramenta especial ou apego à terra. Jamais plantou um pé de milho, jamais tirou uma tarefa de quinze braças, jamais fincou mourões e esticou uma cerca de arame farpado, jamais tangeu ou ordenhou uma vaca Jersey cor de caramelo. Aprendera desde pequeno, com a avó e a mãe, que para conseguir um prato de comida bastava rachar um monte de lenha na casa do ‘patrão’. A cachaça que ele bebia de vez em quando na vendinha do Vilino, essa custava menos. Era só pedir que alguém pagava. – Nas vendas de beira de estrada na roça, nunca faltou alguém que pagasse uma pinga para quem pedisse!
– “Cê pode dá um gole de cachaça pra mim”? – dizia Jó se aproximando do balcão de madeira da vendinha do Vilino.
Assim Jó e as Bastianas viveram no – quase – paraíso chamado bairro dos Coutinhos. Até que tempo e natureza cobraram seu preço pela vida singela e quase primitiva que levavam. O primeiro a desfalcar a família foi o Dito, o mais soturno e calado. Não muito tempo depois Bastiana velha sumiu da porta da choça, da beira do fogãozinho a lenha…
Alguns anos depois foi a vez da Bastiana nova se despedir. Morreu vítima da mesma enfermidade do filho Dito: pneumonia. Trazido para o velório na casa do padrinho, sem saber que era o da própria mãe, quando parou na beira do caixão no centro da sala, Jó tirou o boné da cabeça como era costume entre os cristãos, contemplou o rosto sereno, inerte… e limpo! da mãe, e se limitou a dizer, sem alterar a voz lenta e rasgada:
– Tá boniiiiita!
Da sala se dirigiu para a cozinha, sentou-se num banquinho na taipa do fogão como se fosse sua casa e falou:
– Tem café?
Tão solitário quanto o tamanho do seu nome, ficou Jó. E foi morar numa casinha construída pelo padrinho na beira da estrada no centro do bairro. A casinha de um cômodo só, media três por quatro metros. A mobília se resumia a uma cama e uma mesinha de madeira rústica. Um bambu sustentado por dois pedaços de arame que desciam do teto servia de guarda-roupa. Havia também, dentro da casinha, um pequeno fogão à lenha, pois Jó, como todo homem da roça, cultivava o hábito de esquentar os pés enquanto fumava seu cachimbo antes de dormir. A historia não acaba aqui.
Jó… seus últimos dias no asilo…
Jó nada produziu! Não plantou arvores; não teve filhos; não escreveu livros; mas ainda vive … na memória de alguns. O ‘bugre’ Jó é uma destas pessoas que deixaram rastros, muitos rastros, na minha terra!
Passava pouco de três da tarde quando a viatura dos Homens da Lei embicou na entrada do sítio do Nicolau, ao pé da Grota do Monjolo no município de Toledo. O sargento desceu preguiçosamente do Palio, abriu a porteirinha de quatro tábuas, fechou e andou os poucos metros atrás da viatura até a porta da casinha branca de alpendre azul. Depois de acalmar ‘Gigante’, o cãozinho malhado pouco maior do que um Pinscher, o sargento fez o levantamento visual do entorno da casinha branca: um pomar e uma horta à direita, um capão de capim Napier ao lado do curral à esquerda, um pequeno ribeirão encachoeirado ao fundo, um chiqueiro com meia dúzia de porquinhos grudados na barriga de uma porca carioca e algumas galinhas ciscando aqui e ali no terreiro vigiadas de perto por um galo carijó dourado. Do rancho ao lado do curral, Nicolau, que estava apartando uma vaquinha Jersey do bezerro, se apressou para vir receber os homens da lei. Se aproximou sorridente, limpando as mãos na calça e abrindo o diálogo:
– Boa tarde sargento, boa tarde seu cabo! Que bons ventos os trazem?
– Visita de rotina, sr. Nicolau – respondeu o sargento, querendo esticar o assunto.
– Mas então vamos entrar… Vamos tomar um cafezinho – emendou o sitiante.
Os dois PMs fingiram relutância, mas, no minuto seguinte estavam na pequena, porém arejada cozinha da casa de onde exalava um delicioso cheiro de bolo de fubá. Enquanto conversavam amenidades da roça ouvindo o chilrear dos passarinhos no pomar, o café da dona Guilhermina, feito no fogão à lenha, ficou pronto. O Sargento até então nunca havia estado ali. Conhecia Nicolau apenas de vista, mas sabia da sua hospitalidade, comum a todo homem – raiz – da roça. Aliás, ele e o cabo haviam planejado chegar ao sítio exatamente por volta de três e meia da tarde… para garantir a merenda.
Como diz o velho ditado, “barriga cheia, pé na areia”. Após encher o pandu de bolo e café quente, era hora de entrar no assunto que levara a dupla de policiais ao sítio do Nicolau: ‘denúncia de porte de arma de fogo’!
– O senhor tem arma de fogo em casa? – perguntou o cabo à queima roupa.
– Tenho sim, senhor… Mais quem contou procêis?
– Ah, foram alguns amigos ocultos da lei – respondeu o sargento dando pouca importância ao ‘detalhe’. E emendou:
– O sr. pode nos mostrar a arma?
– Posso sim. Guilhermina, pega a espingardinha lá na parede do quarto… – ordenou ele.
No minuto seguinte a prendada dona de casa – aquela mesma que fizera e servira o bolo de fubá ainda morno com café quente – ‘serviu também’ a espingarda na mesa.
– O senhor tem o registro da arma?
– A espingarda tem registro não, sargento. É uma espingarda veinha, veinha…
– De quem o senhor comprou a espingarda?
– Comprei, não… É lembrança do meu saudoso avô Neco. Faz 20 anos que ele morreu. Ô saudade! Eu era o neto preferido dele, por isso ele me deu a espingardinha para guardar de recordação…
– Sinto muito seu Nicolau, mas vamos ter que levar a espingarda para a delegacia… E o senhor também!
– Mas… com que eu vou afugentar os ladrões de madrugada?… Com que arma eu vou espantar lobos, onças e cachorros do mato que aparecerem para comer galinhas aqui no sítio!? – argumentou o sitiante.
– Sinto muito seu Nicolau, mas … “Dura lex, sed lex…” – disse o cabo gastando seu latim.
– Ô, diacho, então vamos… fazê o que, né? – concordou resignado o simplório velhinho.
Toledo, cidadezinha de 7 mil habitantes encravada nas escarpas da Serra da Mantiqueira, pertinho das nuvens, como a maioria das cidades desse porte em Minas Gerais, não tem um delegado de polícia para chamar de seu. Casos de flagrante de ‘porte de arma’ como esse são levados para a delegacia da Comarca.
E lá foi nosso “Winchester Jack” e sua espingarda de espantar gavião predador de galinhas para a delegacia de polícia de Extrema. Viagem modorrenta, já perto do crepúsculo, pela estradinha estreita e cheia de curvas. Quando chegaram a Extrema a delegacia já estava fechada. Fecha às dezoito. O jeito então foi levar o perigoso caubói do pé da Grota do Monjolo para Pouso Alegre.
Como a Regional atende 35 cidades, seu Nicolau entrou na fila. Noite já alta, ele sentou-se ao piano do paladino da lei, assinou o 14 da 10.826 e teve sua fiança – como prevê a lei – arbitrada em R$ 700. A esta altura do sacolejar da carruagem os dois policiais já estavam redondamente arrependidos de terem prendido o velhinho. Agora ao menos, era só pagar a fiança e poderiam dar-lhe uma carona de volta para casa.
– O senhor tem dinheiro para pagar a fiança? – indagou o sargento.
– Tenho não sinhor… eu nem sabia que ia ser preso!!
– Tem parente aqui que possa emprestar o dinheiro da fiança?
– Conheço ninguém nesta cidade, não senhor…
– Bom, então o senhor liga para sua casa e pede para fazer um deposito…
– Tem telefone em casa, não sinhor…
– … Tem filhos nalgum lugar que possam pagar a fiança…?
– Tenho três filhos. Todos moram na roça, tem telefone, não sinhor…
Com uma tonelada de peso na consciência por terem tirado o velhinho do conforto do seu habitat, os dois PMs se transportaram pra lá. Viram a casinha na sombra das mangueiras e abacateiros; viram as galinhas chitas, os frangos das canelas amarelas e o garboso galo carijó dourado ciscando no terreiro; viram o ribeirão cantando dolente por entre as pedras na grotinha; sentiram o cheiro do bolo de fubá da Guilhermina… Foram além! Viram o bezerro gabiru berrando de fome no cercadinho na manhã seguinte, a vaquinha malhada mugindo no pasto com a úbere cheia… Quem iria ordenhá-la? Tudo por causa de uma espingarda velha!… Tudo por causa da famigerada “lei do desarmamento”!
Andaram para lá, andaram para cá no corredor da delegacia, coçaram a cabeça, e concluíram: “Dura lex, sed lex”. Mas eles não podiam ser tão duros. Eles não podiam deixar o velhinho atrás das grades a cento e cinquenta quilômetros de casa, entregue à própria sorte. Tinham que levar Nicolau de volta para casa.
– Nos dê quinze minutos. Espere aqui que nós vamos buscar o dinheiro da fiança – disseram ao delegado e ao sitiante.
Foram a um caixa eletrônico, sacaram trezentos e cinquenta reais das suas próprias contas, pagaram a fiança do velhinho e o levaram de volta para a casinha branca na beira do ribeirão ao pé da Grota do Monjolo…
Quase tudo voltou ao normal no sítio do Nicolau. Só uma coisa mudou. Agora, se alguma raposa sorrateira abeirar o galinheiro das galinhas chitas, sem a velha espingarda de estimação para afugentá-la, só penas…
Catolicindo Fervoroso morava sozinho no meio da baixada, a poucos quarteirões da praia. A casa já velha era média, sem luxo e carente de conforto. O quintal, no entanto, era grande, muito grande, com um grande e malcuidado pomar. Apesar do desleixo, todo ano, por conta própria, a natureza cuidava de produzir muitos frutos. Laranja, abacate, manga, guabiroba, pitanga, goiaba… Tinha até Lichia, rosada e doce, a qual atraia centenas de abelhas e marimbondos toda safra entre dezembro e janeiro.
Apesar da grande produção de frutas – que definhava ano a ano por falta de cuidados -, Catolicindo não auferia nenhum tipo de lucro ou boa ação com isso. Não colhia, não comia, não vendia, não doava. Excetuando uma ou outra fruta que as vezes comia no pé, toda sua produção ao longo do ano era consumida por aves e insetos, ou então apodrecia no chão forrado de folhas secas no quintal. Altruísmo em deixar as frutas para as aves? Não. Pelo contrário. Irritava-se com a algazarra que estas faziam nos momentos de banquete. Herdara a casa com o pomar já pronto e torcia para que as fruteiras morressem e parassem de produzir … e pusesse fim à balbúrdia dos passarinhos.
Catolicindo não tinha os olhos arregalados, as sobrancelhas grossas e a cara feia e fechada dos ranzinzas. No entanto, não abeirava a casa de ninguém e também não recebia visitas. Era indiferente com os vizinhos e com as crianças que corriam barulhentas para a praia. Era um homem. Correto, trabalhador e cumpridor dos seus deveres sociais. Especialmente o religioso. Ia todo domingo à missa na igrejinha do bairro, sempre bem-vestido, reparando nos malvestidos, levando sua surrada bíblica debaixo do braço. Quando interpelado respondia com pouca saliva aos vizinhos, mas nunca esticava a conversa. Assim vivia num bairro populoso, sem contato com ninguém.
Certo dia a baixada passou por uma tormenta. A rádio local avisou que cairia uma grande tromba d’água que alagaria todo o bairro. E aconselhou que as pessoas deixassem suas casas. Catolicindo viu as pessoas passando, indo embora apreensivas, mas continuou impassível na sua casinha!
– “Vamos embora Catolicindo! Tudo será inundado!” diziam os vizinhos.
Ele nada respondia. No máximo conversava com sua bíblia.
A aguaceira, sacudida pelo vento, desabou e alagou toda a parte baixa do bairro. Quem ‘não tinha bíblia’ acatou o conselho da defesa civil e tratou de deixar suas casas. Quem não teve tempo, foi resgatado pelos bombeiros e pela defesa civil. Cotolicindo continuou lá… com a água subindo pela canelas finas e brancas, subindo, subindo até que ele também subiu… no telhado! Um barco da defesa civil passou por lá oferecendo ajuda, mas ele respondeu:
– Não se preocupem comigo. A chuva vai parar, a enchente vai baixar, Deus proverá!
Apesar da fé – e da teimosia! – de Catolicindo, a enchente continuou subindo. Em pouco tempo as águas chegaram ao cume do telhado. Um helicóptero dos “anjos laranja” se aproximou e tentou ajudá-lo. Catolicindo segurou firme a bíblia contra o peito e respondeu:
– Deus proverá!
No instante seguinte a casa desabou! Cotolicindo – e sua bíblia – afundou! Afundou e desencarnou! Como não estava preparado para morrer, seu espírito ficou por ali, tentando achar sua bíblia, tentando entender por que a providência divina não o salvou.
Dias depois, quando a enchente baixou deixando a mostra apenas os escombros da casa, confuso e sem ter onde morar, finalmente o espírito de Catolicindo saiu vagando desnorteado e perdido e acabou sendo resgatado por um grupo de espíritos socorristas. Afinal, ele não era uma pessoa má. Mesmo tendo passado pela vida sem produzir nada que não fosse para o seu próprio sustento; mesmo não tendo repartido nada do que lhe sobrava; mesmo não tendo distribuído sequer um sorriso para as crianças que passavam correndo felizes e barulhentas em frente sua casa, ele nunca fez maldades.
E assim Catolicindo Fervoroso chegou ao Centro de Triagem de São Pedro. E chegou fervendo, bravo, revoltado com a divina providência. O próprio São Pedro, chefe do Centro de Triagem, que atende somente os casos mais complicados e dá o destino final a cada espírito que passa por ali, teve que ser chamado para acalmar Catolicindo. Já no seu gabinete, o paciencioso santo alisou as longas barbas brancas e disse:
– Então sr. Catolicindo, conte-me sua história e os motivos da sua insatisfação com Deus.
– Eu fui um bom homem, cumpri minhas obrigações, servi o exército, sempre pensei muito antes de votar, trabalhei mais de trinta anos na mesma empresa, nunca discuti com ninguém, sempre paguei minhas contas em dia, frequentei religiosamente a igreja, sempre acreditei e manifestei minha fé na providência divina…
Recostado na grande cadeira forrada com uma colcha branca para esconder o couro puído de tanto uso, São Pedro alisava pacientemente o fio mais longo da barba quase no peito enquanto ouvia Catolicindo desfiar seu rosário de realizações. Finda a chorumela São Pedro falou:
– Além de cumprir suas obrigações como cidadão, o que mais você fez na sua missão na terra?
– Missão!!! Que missão? – estranhou Catolicindo.
– Você passou um período na terra para crescer, para evoluir…
– Ninguém me falou nada sobre isso. O que eu tinha que fazer?
– Você dedicou parte do seu tempo a alguém?
– Não…
– Você tinha um bom emprego, tinha casa confortável e dinheiro recebidos de herança! Você ajudou alguém necessitado?
Catolicindo desviou o olhar pensando no baú de dinheiro que mantinha escondido no sótão, levado pelas águas. São Pedro continuou.
– Você deu o ombro a alguém que chorava?
– Você alguma vez emprestou seu ouvido a quem precisava falar?
– Você alguma vez levou uma palavra de alento para alguém que sofria?
– Você levou uma palavra de esperança para alguém que não via saída?
– Você deu ao menos um sorriso para as crianças que passavam correndo…
Catolicindo estava atordoado com tantas indagações. Gaguejou …
– Mas eu …
São Pedro o interrompeu, com um tantinho de impaciência.
– Eu, eu, eu… Tudo eu. Tem muita gente na Terra olhando somente o ‘eu’. Quase metade só enxerga o ‘eu’. Quase metade não enxerga o ‘outro’. Tudo bem, Catolicindo. Você tem o livre arbítrio para escolher crescer ou não. Só não pode reclamar! Não pode culpar ninguém pela sua estagnação… ou sua involução! Voltemos ao questionamento que o trouxe aqui tão revoltado. Você disse que confiou na Divina Providencia e foi traído, não é?…
– Sim – respondeu Catolicindo rapidamente, aproveitando o gancho que o interessava. – No momento em que eu mais precisava a providência divina não apareceu! E me deixou morrer afogado!
São Pedro fixou seu olhar manso nos olhos inquietos de Catolicindo antes de prosseguir.
– A divina providência nunca falha. Está sempre pronta para intervir em benefício daquele que a pede. Mas é uma ação de mão dupla… É preciso que o interessado faça sua parte.
– Mas eu fiz minha parte. Já falei. Deus não fez a dele. Eu estava com a bíblia na mão, esperando até o último instante, confiando. Mas Deus não mandou a divina providência…
– Catolicindo, preste atenção. Deus jamais te abandonou. Veja bem: quando a chuva começou a se formar sobre a serra e o vale, a Defesa Civil divulgou um alerta através do rádio. Mas você continuou lá…
– !!!
– Antes da tempestade desabar as autoridades enviaram sinais sonoros na região e mensagens pelo WhatsApp. Mas você ignorou.
– !
– Quando a chuva caiu, os caminhões dos Bombeiros passaram ajudando na retirada dos flagelados antes do desastre…
– !
– Quando a enchente começou, os barcos da defesa civil passaram oferecendo ajuda.
– !
– Quando você subiu no telhado, a defesa civil enviou até um helicóptero para resgatá-lo… Observe que em todos estes momentos, Deus agiu.
– Mas eu esperei a providência, a bíblia… – tentou argumentar Catolicindo.
– A bíblia, Catolicindo, te esclarece, te orienta… Mas ela não age. Cada um tem que agir. Por isso Deus deu a cada um o livre arbítrio. Para que cada um aja de acordo com sua consciência e necessidades … e arque com suas consequências! – concluiu São Pedro com mansidão.
Catolicindo ia retrucar, mas, parou, pensou, juntou no ar tudo que havia acabado de ouvir, segurou o queixo com uma mão, juntou as duas mãos em concha na testa e assim ficou por alguns instantes até que voltou a falar:
– Quer dizer que, como eu fui ‘chamado de volta’ antes da hora, e como eu não fiz nenhum mal na terra, eu vou ficar morando aqui no céu?
– Não é bem assim… Lembra do que eu falei alguns parágrafos atrás! “Você passou um período na terra para crescer, para evoluir” … E o que você fez, além de sustentar o seu corpo, para crescer e evoluir? – perguntou São Pedro abrindo largamente os braços com as mãos espalmadas!
Sem respostas Catolicindo soltou o corpo na cadeira, desacorçoado, vencido. Depois de alguns instantes de reflexão, perguntou com voz sumida, muito diferente de quando chegara ali meia hora antes.
– Mas então, o que vai ser de mim?
São Pedro, com o mesmo olhar complacente de sempre, inclinou seu corpanzil avantajado para a frente, apoiou os dois braços sobre a mesa, tomou as mãos de Catolicindo e falou paternalmente.
– Como você não fez escolhas danosas, você vai voltar para uma escola no seu nível de aprendizado por aqui e entrar na fila da reencarnação. Tem pouco mais de 13 bilhões de espíritos na fila aguardando uma nova chance de reencarnar…
A mesma fonte que abastecia a piscina da Lili, hoje abastece o lago do Fórum!
Media quinze metros de largura por 25 metros de comprimento. Tanto o piso quanto as paredes laterais eram de cimento queimado, rústico, da cor de cimento queimado. A água, portanto, era turva. Quem abrisse os olhos no fundo enxergava apenas escuridão. A água batia no peito dos adultos e no pescoço dos adolescentes e das mulheres sempre mais baixas do que os homens. Do lado de baixo da piscina havia apenas um cimentado, também rústico, onde as garotas estendiam as toalhas para se bronzear. Do lado de cima dois lances de uma mureta. Era de onde os garotos mais afoitos pulavam espatifando água pra todo lado fora. Uma casinha de cangalha medindo quatro por quatro, dividida ao meio por uma parede, servia de vestiário. Uns deixavam suas roupas lá, penduradas num cabide cheio de pregos numa tábua. Outros preferiam levar suas roupas consigo para a beira da piscina – para evitar furtos.
Apesar do tamanho bem diminuto, não havia limite de lotação. As vezes tinha 40 pessoas. As vezes tinha 90.
Apesar de tão pouco espaço para tanta gente, sempre aparecia alguém com uma bola… e jogavam algo parecido com polo aquático!
Não havia salva-vidas. E muitos não sabiam nadar e, embora não houvesse salva-vidas, nunca teve acidente, pois a ‘fundura’ da piscina era toda do mesmo nível, bastava ficar em pé. Mesmo assim os mais medrosos não se afastavam da margem.
Para nadar na Piscina da Lili, todos pagavam o mesmo preço: Cr$ 5. O regulamento para frequentar a piscina era simples. Bastava pagar a entrada e usar maiô ou biquíni (mulheres) e calção (homens).
Funcionava apenas no domingo, pois toda a clientela da Lili trabalhava até sábado à tarde. Só sobrava o domingo para se divertir.
Dona Lili ficava na portaria, ou seja: no portão lateral da casa que ficava na beira da estrada, cobrando o ingresso, em cash naturalmente, a única forma de pagamento naquela época. Não havia ‘cano’, pois ninguém passava pelo portão sem deixar uma nota de cinco cruzeiros!
Além do Status de nadar na Piscina da Lili, para os homens havia uma diversão a mais, uma diversão perigosa e proibida: espiar as mulheres quando elas entravam no vestiário!
Os meninos faziam escadinha entre si e se revezavam para vê-las trocar de roupa – por cima da parede que dividia a casinha! Nunca viam nada, pois elas, acanhadas, ficavam sempre encostadas na parede e na maioria das vezes colocavam as roupas por cima do maiô ou biquíni sem tirá-los.
Mesmo assim aquela sensação de estar tão perto – e furtivamente! – de uma mulher seminua, era excitante para aqueles garotos cheios de espinhas no rosto. Mas tinham que conter a excitação e fazer silencio. Se fosse percebido seria punido. Dona Lili era chamada e mandava o ‘assanhadinho’ se retirar imediatamente. A punição durava duas ou três semanas, o tempo necessário para dona Lili esquecer o rosto do assanhado!
Era o ano de 1974…
No ano seguinte uma nova opção de lazer surgiu na cidade… e levou à falência a Piscina da Lili.
– E o corpo dele, vai ficar onde? – quis saber Leonardo.
– O vovô não precisa mais desse corpo. Por isso, depois das homenagens das pessoas queridas, ele será colocado numa caixa e levado ao parque onde ficam todos os corpos das pessoas que viajaram. Ele vai ficar lá até virar pó. Esse é o ciclo da existência. Agora eu quero que vocês voltem ao que estavam fazendo e continuem brincando. Daqui a pouco, quando a mamãe chegar, nós todos vamos voltar para a cidade, preparar as homenagens para o vovô.
Ao ficar sozinho na varanda, Luquinha sentou-se na cadeira ao lado do corpo de Chico Luca… e viajou. Não a viagem metafórica ensinada aos filhos. Mas uma viagem ao passado. Uma viagem que, para ele, começou naquele exato lugar. A casa era diferente … mas era naquele exato lugar que seu pai se sentava no final do dia e início de noite. Eram dali as primeiras imagens que tinha do pai. Tanto tempo depois ele continuava o mesmo… sereno e feliz! Sorrindo maroto com as bochechas… Luquinha sorriu também, com as bochechas, tentando imitar o pai. Não conseguiu. Acabou abrindo a boca e riu baixinho. “Você não tem conserto, meu pai! Consegue me arrancar o riso até depois de morto!”, falou pra si mesmo. Levantou o chapéu de Chico Luca, olhou seu rosto, tocou, mexeu nas suas pernas, nos seus braços. Tinham esfriado um pouco mais e estavam começando enrijecer. Experiente policial, vira muitos corpos sem vida. Na busca de elucidar crimes, trocara informações com médicos legistas muitas vezes, e pôde concluir sem margem de erro: seu pai havia parado de respirar bem próximo de nove da manhã, menos de uma hora antes de sua chegada ao sítio. Um pássaro amarelo pousou na comunheira do paiol e falou:
– “bem te vi”!
Luquinha tornou a cobrir parcialmente o rosto de Chico Luca com o chapéu e continuou sentado ao seu lado, conversando com as lembranças. Eram tantas! Conversava serenamente, como dois amigos, como se o pai estivesse ali, apenas dormindo.
*** “Chico Luca & Mariana”… – livro ainda em revisão.