A enchente das goiabas…

 

E o ultimo mergulho do Catimbau

A chuva caiu mansa a semana inteira. Lentamente as águas frias e sujas foram enchendo o leito do rio Mandu e subindo até sair penas margens ribeirinhas, preenchendo os espaços vazios, os buracos, as depressões, a várzea. Na madrugada do sábado finalmente a chuva parou de cair. Agora só rolava. Rolava lentamente procurando lugares que ainda não haviam sido alcançados. Tudo em redor da cidade estava alagado. A vargem do Aterrado parecia um mar. Até a chácara do Pedro Artur, à esquerda, na direção da Vigor, a qual havia recebido centenas de basculantes de terra anos antes, estava ilhada. Para se chegar às fazendas ao sul da cidade, depois da vargem, só de canoa. As famílias que moravam no Aterrado e na vargem haviam sido retiradas de lá dias antes, pelos caminhões do exército e da prefeitura. Estavam alojadas na Rinha. Demorariam dias para voltar para casa. O sábado amanheceu ensolarado e fresco. A tarde esquentou. Alguns nadadores de rio foram até a ponte do Aterrado nadar como sempre faziam por ocasião das enchentes. Desta vez, no entanto, nenhum deles se arriscou. O movimento lento das águas era assustador. Levados pelas águas serenas, de vez em quando passava por ali, boiando sob a flor d’agua um tronco de arvore podre, um pedaço de armário, um trapo qualquer, um cavalo ou um porco sem vida dividindo o espaço com as goiabas parcialmente comidas por passarinhos. Era a última enchente do ano, a famosa “enchente das goiabas”! Os jovens acostumados a belos saltos ornamentais de cima da ponte formavam grupinhos, conversavam, comentavam, desafiavam, ensaiavam, mas ninguém se aventurava a entrar na água.

Em dado momento perceberam a figura do Catimbau …

O moço surgiu do nada, entre as pessoas que contemplavam a enchente, com seu jeito sempre taciturno e calado. Decerto viera da cidade, da Rinha onde devia estar arranchado desde o meio da semana. Caminhou lentamente até metade da ponte. Apesar de solitário e discreto, não conseguiu evitar os olhares curiosos.

– Será que ele iria nadar naquela enchente? Será que ele teria coragem de saltar naquele dia? – interrogavam-se as pessoas com uma ponta de inveja.

Catimbau olhou para o oeste, de onde surgia o rio Mandu algumas braças atrás do campo do Vasquinho. Atravessou a pequena ponte… olhou para o leste, para onde ele descia reto até fazer a curva no fundo da Vigor. Olhou para a chácara ilhada mais à direita. Lentamente tirou a camisa de tergal esverdeada, pendurou na mureta da ponte, verificou se não se aproximava numa canoa, afastou-se de costas até a outra extremidade, tomou posição de largada, correu, saltou para a mureta, encostou os dois pés, aproveitou o embalo e… saltou no espaço! Saltou mais para a frente do que para o alto. Saltou longe de encontro às águas amarelas do rio mandu… As pessoas – naquele sábado ainda não eram tantas como de costume por ocasião das enchentes – e os nadadores de rio ficaram olhando, alguns admirados, outros perplexos com a coragem; outros com olhar de censura pela irresponsabilidade! Alguns torcendo para o aventureiro se dar mal! Outros torcendo para que os anjos o protegessem … E catimbau desapareceu!

Ele havia pulado contra a correnteza. Era natural que submergisse rio abaixo, debaixo da ponte, ou do outro lado. Algumas pessoas correram do lado de baixo esperando vê-lo surgir ofegante e buscar a margem.

Mas… nada!

De repente… aplausos!

Catimbau surgiu longe dali. Surgiu a poucos metros da margem direita do rio, quase no quintal da chácara do Chiquinho de Freitas. Saiu à rua, voltou para a ponte, caminhou até sua camisa, jogou-a no ombro e foi embora, tão solitário quanto chegou, deixando atrás de si um emaranhado de minhocas tontas zanzando na cabeça das pessoas.

Quase nada se sabia sobre Catimbau. Certo dia um rapazinho pardo, franzino, média estatura apareceu na Olaria do Chico Derige. Chegou ressabiado, sondando à distância. Sentou-se num toco podre de um ingazeiro ali perto e ficou um longo tempo observando os oleiros trabalharem até que se aproximou de Chico Derige e perguntou:

– Precisa de camarada?

Chico não precisava de empregado. Muito menos de um garoto franzino que certamente não teria força para misturar uma masseira de argila. Aquele menino com certeza não conseguiria virar uma forma de tijolo cru sobre a bancada. Ele, no entanto, havia notado a presença do menino sentado no tronco observando de longe a rotina. Quem sabe o menino não seria útil nas pequenas tarefas? – pensou. Sem tirar os olhos dos tijolos que empilhava começando a base da caieira que teria que queimar na noite seguinte, perguntou:

– Onde você mora, menino?

– Se o sr. der emprego, vou morar aqui.

A resposta surpreendeu Chico. Ele interrompeu por um instante o que fazia, percorreu o garoto de cima a baixo, olhou ao seu redor e tornou a perguntar.

– Sua família… de onde você vem? Já passou pelo Regimento?

– Não. Não tenho idade… Mas eu não vou servir a pátria. Família tenho não.

Chico Derige continuou seus afazeres como se não tivesse ninguém ali. Quando terminou de trançar os tijolos queimados na base da caieira, voltou a perguntar:

– Qual o seu nome?

– Catimbau.

– Catimbau de que?

– Só catimbau… minha mãe falou.

O velho oleiro coçou a cabeça branca, ajeitou o chapéu de palha e falou:

– Pago três cruzeiros por semana. Se quiser ficar aqui vai ter que fazer o seu rancho e a sua comida.

Catimbau descontraiu o rosto pardo e magro, esboçou um sorriso e falou fazendo uma ligeira mesura:

– Deus lhe pague, patrão.

Estava empregado.

Os anos passaram. Muitas enchentes das goiabas haviam se passado. Catimbau continuava o mesmo. Estava mais alto e mais encorpado. Mas só. Pardo, olhos escuros, fundos, cútis queimada pelo sol. Cabelos lisos e longos escorridos, cortados por ele mesmo com faca. Parecia um ‘indinho’! No entanto os traços fisionômicos: queixo, nariz, boca, sobrancelhas delicadas eram de branco, filho de branco… ou branca, europeu.

Essa era, talvez, a sétima ou oitava enchente das goiabas que expulsava Catimbau do seu ranchinho na olaria do Chico Derige. A mudança para a Rinha era fácil: saía de casa com a água pelas canelas e uma pequena trouxa de roupas nas costas. Só isso. Enquanto esperava a enchente baixar, de manhã, andava taciturno pela cidade. Perambulava pelo mercado. Era comum vê-lo sentado no fundo da catedral do São Bom Jesus com os olhos pregados na cruz. À tarde passava horas sentado na grama no Alto das Cruzes olhando de longe os movimentos da enchente, esperando o momento de voltar para casa. Dali podia avistar apenas a comunheira da olaria onde morava, mergulhada imóvel no mar da baixada do Mandu. Quando a chuva parava e o sol abria a porta ele descia para nadar na enchente, na ponte. Era ali que dava seus shows de saltos ornamentais nas águas amarelas que desciam das serras da Borda para se unirem ao Rio Sapucaí. Ninguém saltava tão alto, com tanta desenvoltura. Parecia parar no espaço. Ninguém ficava tanto tempo submerso quanto ele. Às vezes saltava para longe, as vezes para o alto… as vezes mal tocava a água e tornava a emergir tal qual uma tabarana em dia de Piracema! Às vezes desaparecia nas águas e ficava uma eternidade submerso, causando tensão e suspense até surgir distante do local onde mergulhara. Mulheres, sempre mais sensíveis, com a demora do nadador, levavam a mão à boca e exclamavam já com os olhos nadando:

– Ohhh… desta vez ele morreu!!!

No domingo seguinte Catimbau voltou à ponte do Mandu. Não chovia há mais de trinta horas. As águas haviam parado de subir. Mas não baixara. Demoraria mais de uma semana para voltar ao nível normal deixando apenas o cheiro indelével de sua passagem. O entorno da ponte estava abarrotado de gente. Pessoas nas janelas vizinhas, na sombra da arvores nas margens. Muitas se protegendo do sol sob suas coloridas sombrinhas. Era dia de festa, festa de gala. Muitos homens usavam ternos… mulheres desfilavam seus vestidos longos. Vários barcos de aluguel levavam quem quisesse para passear na enchente. Nadadores de todos os cantos da cidade estavam ali, dispersos ou em grupinhos, usando trajes de banho, buscando coragem para saltar na água, para exibir seus dotes.

Catimbau chegou discreto como sempre. Usava a costumeira indumentária: bermuda de brim cru da cor da terra com a qual fazia tijolos, cortada a faca nas canelas, e camisa verde-água, encardida. Os pés, que nunca foram apresentados a nenhum tipo de sapato, com as solas grossas e calejadas, tocavam livremente o concreto sujo da ponte. Parou à distância olhando para a plateia. Talvez buscasse alguém! Caminhou lentamente para o vão da ponte. Alheio aos olhares curiosos se dirigiu até a mureta do lado de baixo, observou o movimento das águas, o entorno rio abaixo, atravessou os poucos metros e parou na mureta do lado de cima. Tornou a observar. Seus movimentos estavam mais lentos e pausados naquela tarde. Parecia estar se despedindo… À sua esquerda os galhos dos chorões brincavam com a correnteza. Catimbau olhou para aqueles galhos que resistiam à força das águas. Ele e aqueles galhos tão pequenos e frágeis tinham algo em comum: podiam brincar o quanto quisessem com a correnteza que jamais seriam vencidos… A menos que quisessem se deixar levar! Virando-se para sua direita pousou seus olhos tristes na imensa plateia nos barrancos, nas janelas… Homens, mulheres, donzelas… Todos estavam ali para apreciar o espetáculo da natureza… a natureza dos homens! Apoiado na mureta da ponte, Catimbau deixou os olhos vagarem na plateia… Parecia procurar alguém, talvez um rosto conhecido. Ou então… se despedir daquela gente, daquela enchente, daquele rio que tão bem conhecia. Nesse momento recuou de costas até a mureta de baixo… alongou os braços, as pernas, o tronco… parecia que ia saltar. Caminhou decidido até a mureta de frente, parou, olhou para as águas, recuou novamente, aqueceu, tomou posição de corrida, atravessou a ponte e subiu com um movimento só na mureta, juntou os pés e … saltou no espaço! Saltou muito alto. Mais alto do que jamais havia saltado. Parecia que ia subir para o céu. De repente, quando o impulso acabou, Catimbau dobrou o corpo, por um instante ficou na horizontal, depois tornou a esticar e desceu quase reto em direção às águas. Desceu quase tão lento quanto havia subido! E com os braços estendidos tocou na água. E desapareceu!

Durante vários minutos a plateia permaneceu imóvel… esperando ver Catimbau surgir nalgum ponto do rio, no meio da enchente. Mas ele não surgiu. Seu corpo nunca mais foi visto.

Uma semana depois os desabrigados da enchente das goiabas, a maior daquela década, começaram a voltar para casa.

Um dos moradores da baixada do Mandu não voltou. No casebre de um cômodo só, habitado por Catimbau, preso à linha do telhado Chico Derige encontrou um minúsculo saco plástico amarrado pela boca. Dentro dele havia uma fotografia, aliás, duas… uma colada no verso da outra. Ambas as fotos eram de mulheres, ambas lindas, apaixonantemente lindas, brancas. Uma, séria, aparentava uma senhora de meia idade. Outra, sorrindo, uma menina na adolescência.

O detetive que investigou o caso do sumiço de Catimbau, com base nos seus parcos conhecimentos freudianos, sugeriu que a bela mulher madura poderia ser sua mãe. A outra, de sorriso doce e angelical, inatingível, deveria ser um amor platônico… causa do seu último mergulho na enchente das goiabas no Rio Mandu.

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