CACHORROS & CACHORRADAS
Era o filho mais velho de uma ‘ninhada’ de três. Foi o ultimo a deixar o útero materno! O pai era um legitimo Pointer Inglês malhado cara de pidoncho. A mãe era uma gigantesca São Bernardo tricolor babona. E ele, para não deixar nenhum enciumado, nasceu com pelagem e cor do pai Bob e o porte gigantesco e dócil da mãe babona, Nick! Com quarenta e cinco dias já pesava dez quilos! Dormia na garagem com outros seis, sete ou até mais de dez da sua espécie. Logo depois da adolescência se tornou o rei do ‘quintalzinho’ de seis mil metros quadrados da Fazenda Nosso Paraizzo. O pai Bob era o primeiro que murchava a orelha para ele. Até mesmo o garboso pastor Belga Jack e o atlético Dog Alemão Rock Boy tinham que bater continência p’ra ele e pedir licença para circular pelo seu território! O Fila Tigrão, mais novo e ligeiramente menor, não falava um ‘au’ na sua presença.
Mas não era somente a desenvoltura, o porte gigantesco, a voz ensurdecedora que lhe chamava a atenção! Na intimidade do lar sua docilidade era impar. Tatiana que fez seu parto fazia o que queria com ele. Desde monta-lo até fazê-lo rolar no chão. Quando era necessário dar-lhe algum medicamento ou vitamina, ela abria sua bocarra e enfiava as capsulas lá no fundo da sua garganta com seu meigo bracinho branco roçando as fileiras de dentes alvos! Certa vez Atila pulou um alambrado de um metro e meio para ir caçar lebres e lagartos no brejo próximo e acabou cortando o bilau… Eu e a Tatiana o seguramos na maca e a Cris fez a sutura no pênis do gigante… sem anestesia. Era dócil demais…!
Porém como tudo nesta vida muda, nós também mudamos… de casa. Fomos morar no velho e assombrado casarão construído em 1936 pelo ‘bisa’ da Tatiana, Sanico Telles, há poucos metros do Inatel. Apesar de a casa ser imensa e um quintal também, não foi possível levar todos os cães. Só foram os ‘xodós’ Atila, o Tigrão e a Dominique. Ainda assim eles só podiam ficar na parte dos fundos do quintal. Acostumados com tanto espaço na fazenda, logo começaram ficar estressados. De vez em quando Atila e Tigrão se estranhavam e se pegavam! Era uma luta de gigantes. Literalmente. Invariavelmente Tigrão afinava e se deixava ficar estendido num canto qualquer esperando o perigo passar e Atila em cima dele. Seus rugidos eram ouvidos lá na Rua do Queima. Parecia um leão lutando e matando um búfalo com a imensa bocarra no pescoço do Tigrão. E eu pensando;
– Meu Deus, hoje o Tigrão não escapa! Vai ser impossível costurar o seu pescoço!
Eu ralhava, batia com chicote, cabo de vassoura, jogava baldes de agua fria, jogava com a mangueira e nada…! Atila só largava o pescoço e saia de cima do Tigrão quando ele amolecia o corpo parecendo morto ou quando o stress finalmente passava. E eu pensando;
– Deixe ver se ainda dá para salvar o pobre coitado!
E aí constatava o inacreditável! Não havia sequer um arranhão no corpo e nem mesmo no pescoço do Tigrão, apenas baba, muita baba do Atila! Ele não feria nem mesmo o macho na hora da luta!
No começo de 2012 mudamos para Pouso Alegre. Casa pequena, quintal pequeno, mas era mais fácil a Tatiana separar-se de mim do que do gigante Atila! Mas eu não ligava. Aliás, há muito eu havia me juntado ao inimigo… Eu não podia com ele, mesmo! Afinal tinhas suas vantagens… Caminhar com Atila pelas ruas do bairro Fatima – bairro mor em caminhadas – era uma festa. Era algo para se levantar o astral. Quem estivesse ao seu lado se tornava alvo das atenções. Era impossível as pessoas passarem por nós sem se manifestar. Os homens viravam o pescoço de longe e nada diziam, mas não deixavam, de olhar. O jeitão do gigante bocó realmente chamava a atenção. As mulheres inevitavelmente paravam para conversar, admiradas! Às vezes não era apenas com o cachorro, mas ele era o pretexto…! Certa vez uma loira me perguntou se eu podia dar-lhe o telefone… Do cão, claro!
– Nossa… Como ele é bonito!-… imenso! Quanto ele pesa?
– Oitenta e pouco…
– Que raça é essa?
– O pai é perdigueiro, a mãe é São Bernardo!
– Perdigueiro?
– É. É o Pointer inglês…
– Como é mesmo a raça São Bernardo…?
-… É aquele grandão peludo, que leva um corote no pescoço!
– Ah, o Bethovem…?
– Isso mesmo!
– Que idade ele tem…?
– Está com 7 anos…
– Nossa, mas ele parece tão cansado… O bigode já está branco…
-… É que cães desse porte vivem pouco… Por volta de nove anos somente!
– Ele é bravo?
– Só no quintal…
Quando alguma criança fazia cara de medo, eu pegava nas bochechas do Atila, fazia uns cafunés e chacoalhava pra lá e pra cá para mostrar que ele era bonzinho! Numa caminhadas de três ou quatro quilômetros, a ida não era fácil! Tinha que fazer força para segurar o gigante malhado querendo cheirar tudo, marcar território, encarar outros cães na grade das casas! A volta era moleza. Podia até soltar a guia que ele vinha caminhando lentamente, lado a lado, arfante, com a língua de fora, dando um banho de baba na rua… Se eu apertasse o passo ele ficaria pra trás. Também, quase noventa quilos…!
Como fora criado na fazenda adorava espaço. Não podia ver o portão da garagem aberto que logo saia pra rua, mijando aqui e acola, marcando território como todo cão. E tinha um serio defeito: Era desobediente! Se falássemos com ele de perto ele murchava a orelha e voltava de medo, balançando a cabeça com a boca aberta como quem diz;
– Eu só ia dar uma voltinha…! – Mas se falássemos um pouco mais de longe ele se fingia de surdo! Levantava a cabeça e saia num galope, que nem moleque, fazendo balançar o passeio do vizinho com seus oitenta quilos de pintas pretas e brancas! Lá ia eu pelo bairro correndo atrás com uma guia na mão! Um dia eu o perdi de vista e desisti de procura-lo. Fiquei sentado no portão esperando… Meia hora mais tarde ele surgiu arfante na esquina e voltou pra casa. Aos poucos fomos acostumando a deixar que ele desse um volta sozinho no quarteirão. Quinze ou vinte minutos depois ele estava arranhando o portão da garagem. Entrava, bebia alguns litros d’agua e se estirava numa sombra qualquer pra cochilar. O único perigo era matar alguém ao virar numa esquina… De susto.
Como todo cão, Atila tinha os ouvidos supersensíveis. Podia estar no fundo do quintal que latia e corria para o portão da frente se chegasse alguém estranho. Se isso é bom nos cães, tem também o lado ruim, naturalmente… Os cães tem pavor de foguetes, tiros e trovões! Quando ele ouvia estalos de foguetes corria desesperado em volta da casa procurando um buraco para esconder. Se achasse alguma porta aberta se enfiava murcho, cabeça colada ao chão dentro de casa. Se persistissem os estrondos era capaz de se enfiar no quarto até em cima da cama onde ficava tremendo igual vara verde! Quando estava naquele estado era quase impossível tirá-lo de dent
ro de casa. Ordenar que saísse era o mesmo que falar com um poste. Eu torcia para ele se deitar num tapete… Assim facilitava sua retirada puxando seu tapete! Certa noite em meados daquele ano, ao ouvir um foguetório qualquer ele correu desesperado em volta da casa procurando um esconderijo, como de habito, até que sossegou. Na manhã seguinte nós o encontramos ainda ressabiado dentro da churrasqueira!
Alguém se lembra qual time ganhou a Copa do Brasil de 2012? Eu lembro. Em 2042 ainda lembrarei daquela quarta feira de julho! Quando eu cheguei da minha pelada, tão logo abri a garagem com o controle, Atila saiu para dar uma volta. Deixei que ele fosse, até porque eu não conseguira mesmo alcança-lo. Depois de tomar meu banho, abri uma loira gelada e fui lá fora abrir o portão… Mas Atila não estava lá como de costume. Fui até a esquina esperando ver o gigante malhado surgir lentamente com a língua de fora, mas… Nada. Comecei ficar preocupado. Voltei pra casa peguei o carro e sai à sua procura! Revirei o bairro… Nem sombra do gigante Atila. Comecei ficar realmente preocupado, pois àquela altura eu já ouvira alguns foguetes que precediam a final da Copa do Brasil. Se ele estivesse por perto, ele voltaria desesperado para casa. Mas se estivesse longe, ficaria desesperado, poderia desguaritar…! Quando a Tatiana chegou da academia contei o fato e saímos em dois carros, cada um para um lado – o foguetório aumentando! Rodamos o bairro e adjacências até perto da meia noite e não vimos mais nosso xodó malhado, nosso ‘gigante bocó’ como carinhosamente o chamávamos! Falamos com vizinhos, ligamos para o ‘passiento’ de cachorro que o conhecia, para os vigilantes noturnos do bairro, deixamos todos em alerta para avisar se o vissem! Aquela noite em que o Palmeiras ganhou a Copa do Brasil de futebol será inesquecível… Não que eu seja palmeirense, não pelo titulo do Verdão, mas pelo foguetório que afugentara nosso ‘filho’ Atila! Imaginávamos mil coisas!
– Talvez ele tenha se escondido nalgum lote vago ao ouvir os foguetes – dizia eu tentando animar a Tatiana.
– Vai ver ele se assustou se perdeu a direção de casa. Deve estar andando pelo centro da cidade… Se ele não voltar a gente anuncia no Blog, no face… Ele não vai passar despercebido. – eu tentava acreditar.
– Alguem deve tê-lo raptado – dizia a Rayanne.
– É. Muita gente gostaria de tê-lo. Lembra que uma pessoa queria compra-lo?
– Lembro. O moço ofereceu três mil por ele…!
– Muitas pessoas já nos viram com ele, sabe quem somos… Não teriam coragem de ficar ele. Lembra que já devolveram a Dominique três vezes? – Se ele for arranhar o portão de uma casa por engano e o dono da casa não morrer de susto ao vê-lo passar por entre suas pernas e correr para dentro de casa para se esconder, fatalmente vai notar nosso telefone na coleira e vai ligar…! – Eu não queria acreditar que tínhamos perdido nosso ‘gigante bocó’. Quem iria notar minha presença caminhando pelo bairro sem ele?
Quando o telefone tocou às seis e meia da manha daquela quinta feira, Tatiana foi pegar o aparelho, a base dele, um ursinho de pelúcia e meia dúzia de bibelôs que estavam sobre o criado mudo, todos no chão! Tínhamos absoluta certeza que o telefonema àquela hora da manhã trazia informações sobre o nosso Atila. Só não sabíamos quais eram! Mas precisei de apenas alguns segundos para saber. Sem ter que perguntar … Bastou escutar o silencio da Tatiana e olhar para seu rosto mudando de cor e banhando em lagrimas sentada sobre a cama, o aparelho escorregando pela mão…! A voz fúnebre do outro lado do aparelho era do “passiento” de cachorro. Às perguntas atropeladas de Tatiana do tipo.
– Achou ele? Ele está bem? Onde ele está:
Ele respondera apenas…
– Acho que é ele… Na rodovia…
Olhando para o vazio Tatiana disse-me com a voz sumindo, vendo há quilômetros dali o gigante bocó correndo à galope atrás do seu carro, em meio a uma matilha de viralatas, pelo gramado verde e aparado do jardim da Fazenda Nosso Paraizzo, quando ela passava pelo portão eletrônico…
-… Na saída do Pontilhão do Baronesa, sentido Congonhal!
Em menos de dois minutos eu estava no local. Antes de vê-lo tinha certeza que era ele e era mesmo! Atila estava lá. Frio, inerte, silencioso, sem baba e sem aquele seu sorriso molecão! Não poderia ter o sorriso na cara, pois não tinha cara…! Não tinha cabeça! Não tinha nem a coleira! Do pescoço para trás estava intacto, sem um arranhão! Do pescoço para frente havia apenas uma mancha de sangue e de sebo espalhados na pista… Parte certamente seguira viagem entre as rodas da carreta que o atropelara. Ainda bem que fora uma carreta, pois se fosse um carro de passeio não seria apenas Atila que teria morrido ali naquela barulhenta e abafada madrugada! A única coisa a fazer era arrastar os quase oitenta quilos para o acostamento da via… Para evitar futuros acidentes! Tudo por causa dos foguetes…
Daqui a duas semanas começa a polemica “Cup FIFA of world” no continente chamado Brasil, num tapete ainda bagunçado que custou cerca de vinte e oito bilhões de reais!
Milhões de brasileiros vão comemorar as vitorias do Brasil…
Milhões de brasileiros vão comemorar as derrotas do Brasil…
Milhões de brasileiros vão comemorar as derrotas da Argentina!
Milhões de foguetes explodirão no espaço…
Milhões de cachorros ‘xodós’ de crianças e adultos procurarão desesperados um esconderijo…!
Quantos Átilas desguaritarão…!!!