Quando chegamos para o expediente da tarde naquela terça feira, o subinspetor Ângelo nos reuniu na inspetoria e deu a missão…
– O gerente da Útil me ligou… De manhã estiveram na imobiliária três caboclos querendo alugar uma casa no Foch. Eles são bastante estranhos. Estavam com uma maleta de dinheiro vivo… Queriam pagar os seis meses de aluguel adiantado! Pelo jeito são assaltantes de São Paulo querendo se esconder em Pouso Alegre… Eles ficaram de voltar na imobiliária às quatro da tarde para fechar o contrato! Estão num Del Rey ouro…! Adão, Luiz, Pezão, monte uma equipe e vão p’ra lá esperar por eles. Leve uns oito… Espalhem ali por perto, se misturem aos transeuntes, aos clientes da imobiliária e tomem cuidado! Use o fator surpresa… Evitem o confronto! Vocês aprenderam isso na Acadepol, não é?
Antes das três da tarde estávamos espalhados na Rua Dom Assis… No começo da rua estava o pequenino Romeu atrás do volante da “brasilinha verde”, pronto para engatar primeira e encostar na porta da imobiliária! Luiz Neves com seu jeitinho interiorano de Conselheiro Lafaiete e Munhoz com seu rosto sempre vermelho contrastando com seu óculos fundo de garrafa, estavam com pinta de somongós cada um numa esquina! O veterano Luiz Mendes, com seu jeito de Contador prestes a se aposentar e o jovem Barbosinha e seus cabelos enrolados, parecendo qualquer coisa menos policia, estavam dentro da bicicletaria do Santos Patrício, em frente, fingindo muito interesse numa Caloi Barraforte Circular! Encostado no balcão da imobiliária Adão com seu impecável traje social com a fralda da camisa para fora da calça jogava conversa fora com o Vanderlei, já bastante calvo! Eu e Adair Pezão estávamos sentados cada um numa ponta do surrado sofá, com o coração batendo acelerado, esperando ver três sujeitos entrar com uma maleta na mão e talvez um trabuco na cintura por baixo da camisa! Fazia um inquietante mormaço! Os ponteiros do relógio na parede do escritório pareciam estar parados! Até que o sino da Catedral – aquele mesmo que no Natal de 55 bateu desesperadamente anunciando a morte de Jacira no Beco Crime – deu quatro badaladas!
A pressão aumentou!
Os homens viriam ou não?
Será que descobriram que a arapuca estava armada?
Exceto as duplas, estávamos incomunicáveis. Adão, o mais veterano da “operação imobiliária” saiu à porta e conferiu… Cada um estava em seu posto.
A velha Rua Dom Assis estava quase deserta, cheia de vagas para estacionar. E nada do Del Rey ouro com três ocupantes chegar…!
Dona impaciência já estava nos cutucando, convocando-nos para uma mini reunião… Mas desfazer o laço da arapuca sem os pombinhos – melhor dizendo, sem os abutres! – seria muito perigoso. Se os suspeitos vissem um grupo de marmanjos na recepção da imobiliária, na rua ou mesmo na bicicletaria do Santos Patrício, certamente não iriam cair no laço! Além disso, havia o risco de uma troca de tiros! O jeito era massagear a paciência e esperar…!
De repente, sem nenhum aviso externo, o Del Rey ouro estacionou na porta do escritório da Útil!!! Os pouco mais de vinte segundos gastos para o trio descer do carro e adentar o escritório pareceram uma eternidade!!! Quando o trio encostou-se ao balcão a pergunta do atendente se confundiu com a ordem em uníssono…
– Mãos na cabeça… Vocês estão presos!!!
Ah, bons tempos aqueles em que o policial prendia o bandido para depois informar porque ele estava sendo preso! Não havia flagrante, não havia mandado, mas podiam prender, pois estava escrito na testa do suspeito que ele era bandido e tinha debito com a justiça!
Não demorou trinta segundos os outros cinco detetives estavam na recepção da imobiliária… E a Brasilinha Verde nos braços do Romeu, na porta! Antes que eles esboçassem a primeira pergunta para a prisão, já estavam com as pulseiras de prata apertando os pulsos. Foi tudo muito rápido… Rápido demais! Tão rápido que protagonizamos um tremendo ‘mico’! Mas acho que ninguém percebeu…!
Uma coisa que aprendemos claramente na Acadepol é que local de abordagem e prisão não é local para explicação e argumentação! Por vários motivos. E o principal deles é a segurança dos policiais e de quem estiver por perto. Por isso urgia sair do escritório da imobiliária.
Mas precisava ser tão atabalhoadamente…!?
Antes que o curioso ‘Vitinho’ dissesse Pindamonhangaba, o trio de assaltantes, sem fazer uma única pergunta, já estava no banco de trás da Brasilinha Verde com Romeu ao volante e Adair ajoelhado no banco da frente apontado o trabuco para o nariz deles! E desceram a Dom Assis em direção à delegacia. Nós seis embarcamos no Del Rey ouro dos bandidos… E aí aconteceu a trapalhada!
Não conseguíamos inclinar os bancos da frente para passar para os bancos de trás! Puxávamos, procurávamos os botões, de cima a baixo, um de cada lado e nada de os bancos inclinarem! Enquanto isso a Brasilinha Verde se distanciava levando três perigosos assaltantes de bancos com apenas dois policiais… Um ocupado com o volante e o outro ocupado em controlar o medo e o nervosismo!
E se um dos bandidos surpreendesse o Adair? E se na esquina da São João o restante da quadrilha estivesse de tocaia esperando a passagem da Brasilinha Verde?
Não. Não podíamos ariscar a deixar três assaltantes de bancos aos cuidados apenas de um detetive! Não havia tempo para descobrir como inclinar os bancos para sentar atrás! Embarcamos no Del Rey como deu… Pulando por cima do banco, por cima do motorista! Pelas janela… Adão, já apavorado, arrancou com o possante e acabou de ajeitar a carga no tranco! Uns por cima dos outros, deixando para trás uma embasbacada plateia sem entender patavina do que estava acontecendo! Ainda bem que não entenderam, pois, por um mistério quase inexplicável, o ‘espetáculo da Util’ reuniu dezenas de expectadores em menos de um minuto!
Embora seja centro da cidade, com vários pontos comerciais, a velha Dom Assis não tem tanto movimento assim. No entanto, tão logo a Brasilinha rangeu suas molas e freios ao lado do Dele Rey ouro, portas e janelas se empinhocaram de curiosos! Desconfio que o Vitinho ou outro funcionário da imobiliária, ao saber da ‘operação secreta’ deve ter vazado a informação para a vizinhança, recomendando naturalmente…
– Fiquem preparados… As quatro da tarde a policia civil vai prender uma quadrilha aqui no escritório! Não percam! É segredo, não contem para ninguém…! só para as crianças da creche…!!
Entramos na Silvestre Ferraz no exato momento em que Romeu estacionava a Brasilinha Verde na porta da DP. Estávamos todos inteiros. Alguns de nós de cabeça para baixo, mas inteiros dentro do Del Rey ouro!
Os três meliantes de caras fechadas foram levado direto para o gabinete do delegado regional onde finalmente soltaram a voz, numa conversa à boca pequena, só com a chefia! De lá foram para o corró e no dia seguinte desembarcaram em São Paulo. O boato que surgiu na delegacia é que eles desembarcaram mesmo… No meio de uma avenida de grande movimento como são quase todos as avenidas paulistanas, deixando os dois detetives que os escoltavam só com o cabo do guarda chuva na mão! Nunca conseguimos entender isso! Do escritório da Util – três quarteirões até a delegacia – nós jovens e sonhadores policiais viajamos até de cabeça para baixo para não perder de vista os perigosos assaltantes na Brasilinha Verde… No dia seguinte eles foram recambiados para outro Estado com apenas dois escoltas…!? E desembarcaram no meio – literalmente – da avenida com a viatura em movimento!!! Bem, deixemos este ‘mistério’ para a imaginação do leitor! Afinal, desde que o mundo é mundo, já existe caminhos – e pessoas – tortas! Voltemos ao ‘mistério’ de “como chegar ao banco de trás” do vistoso Del Rey Ouro…
Tão logo entregamos o trio de assaltantes armados apenas com sua maleta – recheada de cruzeiros, que daria para pagar o salario de toda a equipe aquele mês e mais o Decimo Terceiro – na porta do gabinete do delegado regional, corremos para a garagem, para descobrir como inclinar os bancos da frente do Del Rey. Antes chamamos o Sr. Nelson Wood, que era Vistoriador de veículos e mecânico, para nos auxiliar. Como já havíamos ‘apanhado’ do Del Rey e também para testar os conhecimentos do ‘seu’ Nelson mostramos o carro e falamos.
– Seu Nelson, o Sr. poderia inclinar os bancos da frente para que possamos sentar no banco de trás do Del Rey…?
Nelson Wood olhou para o carro com um olho só – ele era caolho, acho que era o direito! – meio ressabiado e muito singelamente perguntou!
– Mas porque vocês querem entrar pela frente e passar para o banco de trás? É alguém tipo de exercício, mandinga?
– Não, seu Nelson… É que é meio complicado pular por cima do banco, né!
– Ué…! E porque não entram pelas portas de trás? É só puxar a maçaneta…! – E dizendo isso passou a mão na lateral do carro e com um simples ‘clic’ escancarou o lado direito traseiro. Em seguida o esquerdo… Abriu os braços sujos de graxa olhou pra nós e fez uma pequena careta como quem pergunta:
– Qual o problema???
O Del Rey ouro dos assaltantes paulistanos era “quatro portas”!!!!!!!!!!!!!!!!!!
Ainda posso sentir o gosto salgado do suor escorrendo por entre os fios ralos do meu bigode de adolescente até parar nos meus lábios, mas não sei dizer ao certo se aquela interminável tarde de mormaço, de ‘gafe coletiva’, era final de primavera de 81 ou inicio de outono de 82…!
Naquele tempo, carro quatro portas era exceção!
Obs: Se você meu estimado leitor tiver uma foto da Útil ou da rua Dom Assis daquele época, envie-me para ilustrar a crônica!