Salinho… O meliante de Silvianópolis

     Ele foi o terror dos moradores do Morro… Mas talvez nem o irmão se lembre mais dele!

      Quando cheguei para trabalhar em Silvianópolis, em 1985, a cidade quase tri-centenaria, de seis mil habitantes, tinha dois meliantes! Um já estava preso. Era o Carlinhos Negão, condenado a 1 ano e meio de cana no regime aberto, por ter furtado um bípede cantante do galinheiro do seu vizinho!

        O outro era Jose Gonçalo Alves. Este vivia de ‘quebrada’, furtando uma casa ali, outra acolá… Procurá-lo na casinha humilde que dividia com a mãe viúva e o irmão mais velho – acanhado com o seu comportamento – numa ruela com as costas voltada para o pasto do Waltinho Borges, no bairro do Morro, era inútil. “Salinho” como era conhecido passava boa parte do tempo no mato, dormindo embaixo de arvores… Ele só voltava para casa depois que a poeira do ultimo furto estivesse completamente assentada. Agia sozinho e sorrateiramente. Seu ‘modus operandi’ lembrava um pouco o famigerado Fernando da Gata – Os últimos dias de Fernando da Gata! – A diferença gritante é que ele era um autentico pé-de-couve, enquanto o bandido cearense era brilhante… só lidava com jóias! Além do que, ele não tinha intimidades com os dobermans e nem molestava suas vitimas. A estatura baixa, por volta de 1,63, corpo levemente atarracado também lembravam o marginal que aterrorizara Pouso Alegre tres anos antes, até morrer com uma bala no peito nas margens do Rio Sapucaí no bairro Pouso do Campo. A cor branca encardida puxando para o pardo, os cabelos levemente castanhos, lisos escorridos e maus cuidados contribuíam para sua fama de bandido. No caso de Salinho o mais correto seria… bandidinho!

        O habitat natural de Salinho, além do bairro do Morro, era o bairro Água Limpa – de baixo e de cima – onde além de praticar seus pequenos furtos, tinha também sítios e fazendas onde ele podia se alimentar e dormir durante suas fugas. Se o laço apertasse era só esperar o ônibus da Santa Cruz na beira da MG 179 e dobrar a serra do cajuru em direção à São João da Mata ou Poço Fundo, até a brasa esfriar.

       Um dos últimos furtos – talvez o ultimo – do bandidinho Salinho aconteceu justamente no bairro Água Limpa de Cima. Neste ele foi mais ousado. Usou uma faca de cozinha para ameaçar e roubar cerca de cento e oitenta cruzados e um radinho à pilha de um lavrador que vivia só – Meu salário na época acho que era uns quatrocentos e cinqüenta cruzados! A policia militar registrou o B.O., rodou pelas estradinhas poeirentas além do Morro, mas não achou nem o rastro de Salinho…!

       Dez para as cinco daquela tarde embarquei no monobloco da Santa Cruz, o ônibus mais limpo e confortável da região naquela época, no bar do Sinésio.- ‘Santana do Sapucaí’, nos seus quase trezentos anos de existência, nunca teve uma ‘estação rodoviária! Sentei como de habito na primeira poltrona, abri a revista Placar, cruzei as pernas e me entreguei à leitura. O ônibus desceu a praça principal, contornou a igreja matriz, subiu a Avenida Rio Branco e logo estávamos na rodovia vicinal que Francelino Pereira havia inaugurado no dia 01 de setembro, cinco anos antes – Eu estava lá zelando pela sua segurança! Um quilometro e meio depois, o ônibus branco e bordô parou no Bico de Pato… Afastei os olhos da revista para ver quem estava atrasando minha viagem e… Surpresa! O viajante solitário era… “Salinho”. Vestia calça jeans encardida e surrada, camisa de tecido riscadinha de branco e marron, tênis pardo, o velho cabelinho escorrido há dias sem lavar e levava na mão direita uma sacolinha de napa encardida, com alguma coisa dentro!

– Tomara que ele não tenha me visto e embarque… – Pensei, escondendo o rosto atrás da revista placar.

       Não vira. Entrou meio sorrateiro e foi sentar-se lá no fundo. Esperei uns dois minutos até o ônibus ganhar velocidade e fui fazer companhia ao meu ‘amigo’ Salinho. Ele estava olhando pela janela, talvez se despedindo do bairro Água Limpa, onde umas dez horas antes havia roubado o velhinho lavrador. Sentei calmamente ao seu lado, puxei a sacolinha para o lado de cá, olhei! Havia uma camiseta dobrada, uma faca de cozinha por baixo e um radinho à pilha. Era o radinho do lavrador! Quando o toocador veio até a poltrona cobrar a passagem puxei o distintivo do bolso, mostrei a ele e disse sem nenhum alarde…

– Quando chegarmos na esquina da União Operaria em Pouso Alegre, pare o ônibus por favor… Nós vamos descer ali!

       Ele só deve ter entendido o recado depois de ter conversado com o motorista, um negro já idoso, o mesmo que todo dia me trazia de Silvianopolis no final da tarde sem nunca me dirigir a palavra, embora conversasse com quase todos os passageiros durante a viagem. Fizemos os 34 quilômetros em silencio. Salinho tentando entender como fora cair na arapuca… E eu saboreando minha Placar…

       Quando o ônibus parou na Bom Jesus, a poucos metros da União Operaria, levantei, peguei Salinho pacificamente numa chave de braço, peguei a sacolinha com parte da rês furtiva e a faca usada no crime, com a mão direita e seguimos para a DP a um quarteirão dali. Não olhei para trás, mas pude sentir um ultimo olhar do motorista e do cobrador do ônibus tentando entender o que se passara;

– O baixinho embarcou sozinho no ponto do Bico de Pato… Como é que o detetive sabia…? – Deve ter pensado o motorista.

– O que será que ele fez…? – Estaria indagando o jovem cobrador.

       Deixei o meliante pé-de-couve na 13ª DRSP com um breve relato dos fatos. Nunca mais o vi. Mas soube que ele não chegou a criar raízes no velho hotel da Silvestre Ferraz!

      Uns meses depois, Cabritinho, o irmão mais velho de Salinho, começou rondar a delegacia de policia de Silvianopolis. Quando viu que eu estava sozinho, criou coragem, se aproximou e perguntou com a timidez de uma donzela de 16 anos – daquela época!

– Por acaso o meu irmão não está preso aí, não…?

        Salinho havia saído de casa há quase uma semana e não dera mais noticias… Com certeza havia aprontado alguma!

        Não. Salinho não estava preso. Não no velho Hotel da Julio Correa Beraldo, pelo menos…

        Na semana seguinte, Cabritinho voltou à delegacia. Desta vez foi direto à minha sala – a única na verdade que servia à policia civil – Esqueceu a timidez e foi direto ao assunto….

-… Ele não apareceu por aqui, não seu Chips? – Perguntou com visível preocupação. Será que o Sr. não podia telefonar para delegacia de Pouso Alegre pra saber se ele está lá? Sabe como é, né? Não é nem por mim, mas coração de mãe…! É uma caridade que o Sr. faz…

        Ele pediria ‘pelo amor de Deus’ de joelhos se fosse preciso. Mas não seria… Eu fiz a ‘caridade’! Telefone de três dígitos… tinha que pedir linha à telefonista! Mas tudo bem. Salinho não estava preso em Pouso Alegre. Nem em São João da Mata e nem em qualquer outra cidade que Cabritinho pediu que eu ligasse! Salinho havia sovertido!! Salinho era a pedra no sapato, a vergonha da mãe e do irmão simplório, mas continuava filho e irmão. Depois da terceira resposta negativa que obtive não me lembro de qual delegacia, se respondessem que ele estava lá, preso, acho que Cabritinho abriria um largo sorriso, agradeceria com mesuras e sairia correndo para avisar a mãe no Morro. Mas ele não teve essa alegria. Nunca mais teria…!

         O tempo passou e Salinho foi caindo no esquecimento.

        Algumas semanas depois finalmente Salinho foi encontrado. Estivera o tempo todo há pouco mais de um quilometro da casinha de sua mãe… Num dos lugares que era seu habitat natural, poucos metros adentro de um capão de mato na divisa do pasto do Waltinho Borges. Um pescador que voltava de uma pescaria no Ribeirão Santa Barbara o encontrou.

– O bonezinho, a camisa, a calça… até o chinelo de dedo… É ele mesmo, seu Chips! – Admitiu com cara de choro o irmão Cabritinho.

       Além das roupas, talvez o cabelinho liso escorrido também servisse para identificar Salinho! Os ossos estavam todos espalhados na minúscula clareira, perto dos trapos destruídos por aves de rapina e outros bichos…

        Nunca soubemos quem ou de quê morreu Salinho. Talvez uma cobra, um enfarte fulminante, quem sabe…!?

        E por longos anos Silvianopolis ficou sem um meliante sequer para contar historia, pois Calinhos Negão, depois de cumprir sua pena trabalhando de dia na agropecuária agrícolas do Heleno e dormindo à noite na cadeia, nunca mais roubou galinha do vizinho. Poucos anos depois abraçou Severina do Popote e morreu afogado no Tanque.

        Salinho com sua mão leve e sorrateirisse impar, marcou época no bairro do Morro em Silvianópolis. Hoje, quase 28 anos depois que sua alma e seu pequeno corpo ‘desencarnaram’, comido por bichos num capão de mato no bairro Água Limpa, talvez nem o irmão Cabritinho se lembre mais dele…!

0 thoughts on “Salinho… O meliante de Silvianópolis

  1. Gostei muito da forma que foi contada, estilo Gil Gomes. Uma ótima idéia p/ os domingos, já que durante a semana nem nem deve sobrar tempo pra elaborar com tal capricho né, parabéns!

  2. Coincidentemente estou na cidade de “Santana”, e conversando com alguns amigos comerciantes, dizem se lembrar de ambos, porém com uma diferença, O Carlinos Negão embora supostamente só mais um “ladrão de galinhas” ele era mais chamativo, pois adorava utilizar pulseiras, anéis e correntes, e também tinha uma paixão tremenda pela Severina.do Popote…como diz nosso amigo Chips, E o outro que teve um fim como se fosse um bicho do mato, o Salinho, era digamos “Bem relaxado” quanto ao zelo pela aparência, porém talvez seria o mais “aplicado na arte do crime” não conheci nenhum dos dois, mais são figurinhas que ainda não caíram no esquecimento dessa pacata cidade, que tem mais histórias do “arco da velha” para serem relembradas.
    Mais Salinho deve ter tido surpresa por ter uma companhia para viagem de Santana á Pouso Alegre foi algo que até imagino, como se fosse um dos passageiros, talvez tenha sido uma das viagens mais demoradas do Salinho em sua curta vida, ao menos estava bem acompanhado pelo Sr. Chips.
    Não sei como eram as coisas exatamente naquela época, pois ainda estava na barra da saía da minha mãe ou perturbando o meu avô na lavoura de café, ou andando atras da minha avó no terreirão de café, hoje está tudo diferente, não sei se é para melhor ou pior, ao menos não tinha tantas Drogas como hoje, e nem jovens ostentando luxo, graças ao dinheiro sujo do tráfico, vejo meninos e meninas de 10 anos de idade com ambição muito grande, e querendo as coisas para ontem, roupas de marca,acessórios caríssimos, e brinquedos que custam uma verdadeira fortuna se comparados para quem brincava de por palitos de fósforo em alguns legumes para imitar animais e brincar de fazendeiro, e com tocos de madeira ou embalagens fazer carrinhos de brinquedo, quantas vezes não me machuquei por causa disso…pena não ter gostado muito de estudar, mais nunca envergonhei meus pais,hoje não me falta nada, mais é duro ser honesto no Brasil….mais vale a pena!!

    • Olá Francisco,
      Era assim mesmo! O Carlinhos com aquela bocarra e seus adornos chamavam a atenção mesmo. E Salinho passava despercebido…
      Quanto ao comportamento social, a galera daqueles tempos, com muito menos agito era de fato criativa e sabia curtir a vida sem ‘estragá-la’! Bons e divertidos tempos…
      Abraços.

  3. Fez-me viajar no tempo, tentando imaginar esta situação de tempos atrás.
    Parabéns.
    Todo povo que valorizou suas histórias, viu sua cultura florescer com força.

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