Paulinho…. uma prisão para dar risada

MENINOS QUE VI CRESCER

Eram pouco mais de nove da manha quando embicamos a brasilinha verde na Cônego Vicente, entre a casa do Piula e a revendedora Somive, para cruzar a avenida Brasil. De repente avistamos do outro da lado da linha férrea nosso querido Paulinho montando uma bicicleta velha. Querido sim. Queríamos pega-lo para esclarecer o sumiço de um fusca, que segundo nossas investigações, ele havia desmanchado na garagem de sua casa na Manoel Matias no bairro Primavera. Há dias estávamos nos seus calcanhares, mas ele não punha sua cara redonda e muito menos seu corpo atarracado e rechonchudo para fora do portão. Nossas suspeitas deviam ser mesmo fundadas porque ao nos ver parados do outro lado da linha, Paulinho criou asas. Virou a esquerda e imprimiu toda velocidade que pode na magrela velha em direção a Dr. Lisboa. Teve inicio uma rápida e estonteante perseguição pelas ruas da cidade. Uma bicicleta velha na frente e uma Brasília com quatro detetives cheirando à Acadepol logo atrás. Paulinho virou a Dr. Lisboa, entrou pela Adalberto Ferraz, quebrou a esquerda da São Jose, desceu, subiu, virou a esquerda da Abreu Lima e chegou outra vez na linha férrea em 49 segundos mais ou menos sentindo o calor do nosso fungado na nuca. Impressionante a vantagem que uma bicicleta leva sobre um veiculo no transito urbano!! Ao chegar à estrada de ferro foi o fim da linha para nós. Nossa caça tinha três opções; tomar a direita margeando a linha em direção ao velho Vasquinho, seguir em frente e entrar no pátio do Pastifício Freitas, onde seria presa fácil ou naturalmente tomar a esquerda em direção a estação. Segui-lo só a pé. Ele escolheu essa, a mais difícil, pois logo no inicio existia uma cancela e ele caiu da bicicleta, ou melhor; a bicicleta caiu dele pois ele mal chegou a ir ao chão.

Policia de Brasília duas portas, o primeiro e único a descer fui eu e a perseguição agora era mano a mano, até porque o único ‘atleta fundista’ no grupo era eu. Agora eu teria a oportunidade de mostrar se a Acadepol havia mesmo me preparado para prender bandidos…  ainda que Paulinho não fosse assim tão bandido!

Enquanto os colegas voltavam pelo mesmo caminho na velha Brasília eu segui pela margem da linha tentando tirar vantagem do fato de que Paulinho havia pedalado freneticamente alguns quarteirões. Consegui alcançá-lo no obstáculo. Na esquina da Rua Pedro Adão, onde morava o pediatra Dr. Brás havia uma escada de seis ou sete degraus paralelos com a linha. Paulinho desceu como um foguete pela escada, eu desci como um meteoro… sem passar pelos degraus e caí em cima dele. Foi meu primeiro contato com Paulinho, mais precisamente com sua camiseta branca que nos próximos 20 minutos viraria tiras encardidas e suadas em minhas mãos.

A partir daquele momento eu aprenderia na pratica a teoria ensinada na academia de policia. Veria o quão distante uma estava da outra. Lá, o velho professor de defesa pessoal demonstrou que usando apenas dois dedos – polegar e indicador pressionando os dedos do adversário para trás, até uma donzela policial – hoje as temos em profusão na policia – é capaz de fazer qualquer brutamontes ajoelhar-se a seus pés ou caminhar curvado e indefeso ao eu lado. A grande diferença era que no tatame do galpão de instruções da academia da Oscar Negrão de Lima, o sujeito usado para demonstração da técnica era um aluno, também aprendiz e foi avisado que deveria ficar passivamente esperando o referido golpe, para aprendê-lo. Na rua, nenhum bandido suado, apavorado e com medo do pau de arara foi avisado desse golpe. E nós ficamos ali no pega-segura-escapa-mesolta-nãofiznada-souinocente … E a camiseta virando tiras!

Dias atrás eu já me vira numa situação parecida. Eu saíra com outra equipe para uma diligencia no Capim Gordura, fonte de toda boa informação policial – Bandido que se prezava tinha sempre uma amante na zona… a qual sempre o traia com um policial. – Antes passamos pela casa do pintor Antonio Carlos, que havia fugido da delegacia no dia anterior, para entregar-lhe uma intimação. Os colegas pararam a viatura ‘fria’ numa esquina acima da casa do moço no bairro N.S.Aparecida e disseram;

– Vá lá e entregue a intimação para a mulher dele. Se ele estiver em casa, traga-o!

Antonio Carlos estava em casa. Uma meia água de três cômodos, nos fundos. Embora fosse meu conhecido desde os tempos da sorveteria do Sr. Wagner Dorigatti, chegou meio ressabiado ate a porta para receber a intimação.

Eram outros tempos. Vivíamos sob a égide da Constituição de 67. Não precisávamos de mandado para prender suspeitos, desde que ele não estivesse dentro de casa, para evitar violação de domicilio. Gastei metade do meu estoque de perspicácia policial para trazê-lo ate a porta. Quando dei o ‘pulão’, literalmente, rolamos na poeira no corredor apertado defronte a porta. Levei a pior; sua esposa grávida e suas irmãs, amigas de minhas irmãs, todas conhecidas minhas do colégio Comercial São Jose, deram uma mãozinha a Antonio Carlos e o tomaram de mim. Não houve sequer um soco de nenhuma das partes. Houve esperneio, ‘esbraceio’ e gritinhos histéricos…

– Solta meu marido, solta meu irmão…!!

Eu só tinha duas mãos contra oito da família do pintor. Perdi o futuro preso. Quando voltei à viatura com minha camiseta de listras vermelhos, pretas e brancas – recém comprada pessoalmente por mim na rua 1º de Maio em São Paulo, com outras tantas que eu pretendia revender, pois pretendia mudar de profissão ou pelo menos ter um ‘bico’ para melhorar o salário policial – toda esticada e furada nas costas do contato com o cimento rústico do chão, os colegas quase me deram uma bronca;

– Porque demorou tanto…?

Eu não consegui cumprir minha missão com o pintor Antonio Carlos. Com Paulinho teria que ser mais eficiente. Mas, para não contrariar os ensinamentos da Acadepol e nem meus princípios, eu deveria usar apenas as mãos… Não os punhos!

Nossa labuta na beira da linha foi hilária. Ao ouvir as chorumelas do meu prisioneiro, uma senhora da ultima casa da rua saiu no alpendre com uma vassoura na mão e tentou resgatá-lo a distancia;

– Solta ele moço. Solta senão eu vou chamar a policia…!

O primeiro impulso foi responder ofegante:

– Chama logo minha senhora… e diga que é urgente!!! – E quase soltei mesmo… para rir! Mas me contive. O difícil era conter o preso esperneando e ‘esmaneando’ freneticamente para se desvencilhar de minha mãos, agora tão suadas quanto as suas! Neste momento surgiu lá no começo da rua, na esquina da São Jose, o Henriquinho Toledo, com a mesma cara e corpo de moleque que tem hoje, só que 30 anos mais novo. Henriquinho veio andando malemolengo, desconfiado em nossa direção. Subiu a escada e começou a puxar meu braço dizendo timidamente;

– Não briga não, moço, ele não fez nada…

Ele certamente nunca vira Paulinho na vida, mas com voz piedosa e quase chorosa, só faltou dizer ele era santo. Quase sucumbi ao infortúnio. Além de não conseguir aplicar a chave de braço e imobilizar meu investigado – de estatura física menor que a minha – como o velho instrutor da Acadepol ensinara com tanta parcimônia, quase recebendo aplausos, ainda me aparecia um rechonchudo filhinho de papai, de cabelos longos encaracolados dando uma de bonzinho, querendo libertá-lo!

Mas nem tudo estava contra mim. La do pátio do Pastifício Freitas o motorista Ze Carlos, que me conhecia de vista, pois morava em frente a delegacia e era companheiro de ‘jornadas’ – happy hour’ é coisa do século 21 – dos peritos Jadir, Tiãozinho e outros policiais mais velhos, no Lanxão, Waguinho Dorigatti e Lanchonete Tio Patinhas, na Comendador, também assistia a cena na beira da linha e resolveu intervir. Veio andando normalmente até nós, sem esperar que a contenda fosse durar todo seu percurso de quase duzentos metros. Quando o pacifico e bom samaritano Henriquinho já ia tomar meu prisioneiro, Zé Carlos estendeu o braço e falou com firmeza;

– Espere… Este rapaz é da policia.

Somente neste instante Paulinho, sem camisa e tão ofegante quanto eu, parou de espernear e deu o braço suado e arranhado a torcer. Já com a vaca morta, depois de uma eternidade de ofegante labuta, com o risco de ser ‘preso pela policia da vizinha’, ou ter o suspeito resgatado pelo Henriquinho Toledo, finalmente meus três colegas chegaram a pé pela linha férrea para me ajudar. Disseram que seguiram uma pista falsa em direção ao Aterrado, por isso demoraram tanto.

Paulinho era filho de um velho amigo com quem trabalhei quase dois anos antes de ir para o exercito e que nunca deixou de ser meu amigo. O menino que vi crescer na Manoel Matias ao lado da casa do meu tio André foi processado por furto de veiculo e valeu-se do beneficio jurídico do “sursis”, muito usado até a Carta Magna do Ulisses Guimarães, por isso não chegou a conhecer o velho hotel da Silvestre da Ferraz – que em 1981 já era velho, mas não abrigava mais do que 50 hospedes. Eu o vi poucas vezes depois da nossa labuta da beira da linha e até onde eu soube, Paulinho levou a serio a máxima de que “o crime não compensa”. Ele abandonou as trilhas do crime… parou de desmanchar fuscas.

E eu adotei outras técnicas de imobilização e domínio de meliantes suados e fujões… Mas continuei sem usar os punhos!

 

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