No proximo dia 10 de setembro, o COMAD realizará no Teatro Municipal, mais um Forum sobre drogas. Achei oportuno publicar a historia de Pedrinho e Gegê, dois meninos que vi crescer… em berços, senão esplendidos, em berços honrados, mas que se perderam na encruzilhada das drogas. É comum no desespero da luta contra o vicio dos filhos, os pais pergujntarem: “onde foi que eu errei?” A historia de Pedrinho & Gegê ajuda a responder…
MENINOS QUE VI CRESCER
Pedrinho & Gegê, assim nascem os nóias…
Pedro Carlos Damasceno estava completando mais um aniversario natalício. Este dia Pedrinho sempre esperou com ansiedade, pois era dia de festa, dia de receber presentes, cumprimentos dos amigos, dos pais, telefonemas dos avós e sempre rolava uma festinha, onde os coroas ficavam até tarde servindo churrasco para os amigos.
O garoto havia mudado muito nos últimos meses. Estava para pouca prosa. Ora abatido e quieto, ora agitado e revoltado. Pouco parava em casa e quando parava ficava trancado no seu quarto. Ele tinha três irmãos já adultos e embora morassem na mesma casa, quase não os via e pouco falava com eles. Não estava nem aí para a festinha costumeira que sua mãe havia encomendado ao Buffet. Nem a motocicleta 250 cc que seu pai havia lhe dado de presente antecipado o empolgava. Quando sua mãe ligou para seu celular, as onze da noite, no meio da festa, ele respondeu que estava chegando em casa. E chegou… por volta de cinco da manha.
Pedrinho, filho de um conceituado médico e uma atuante advogada, estava completando 16 anos e embora tivesse todo conforto material que um jovem precisa, ele estava insatisfeito, confuso, fora do seu mundo, sem saber o que queria.
E foi exatamente aí, aos dezesseis anos, na noite do seu aniversario, numa danceteria, que ele experimentou pela primeira vez, a famigerada maconha.
Ele já ouvira falar da droga. Sabia de alguns amigos que usavam. Tivera até convites discretos para usá-la, mas como conhecia teoricamente as conseqüências do uso de drogas, sempre se mantivera distante. Nesta noite resolveu experimentar. Numa rodinha de amigos, em meio aos agitos da danceteria, Pedrinho começou timidamente e alguns minutos depois já tirava largas baforadas da ‘erva marvada’, cujo cheiro característico se misturava ao perfume das garotinhas, ao cheiro das bebidas e suor da rapaziada que chacoalhava no salão. Disse aos amigos que estava se sentindo mais leve, mais solto, mas não sentia nada de especial como a pessoas diziam. Virou mais um gole da loira gelada e foi para o salão dançar. Mal sabia ele que a promissora carreira de advogado que pretendia seguir, naquele momento estava começando a dançar. Estava nascendo ali um viciado em drogas, um rosto a mais para ser folheado por inocentes vitimas no álbum da policia, um futuro hospede do velho hotel da Silvestre Ferraz.
Algumas horas depois, ao sair do baile, perguntou aos amigos se eles não iam acender mais um baseado. Foram de moto, ele e mais três amigos a uma pracinha deserta na madrugada, queimar mais um cigarrinho proibido.
No meio da semana um dos amigos da fumacinha ligou e perguntou se ele estava a fim de dar umas voltas e tirar umas baforadas. Pedrinho lembrou-se da sensação de leveza que sentira na danceteria, mas lembrou-se também de tudo que aprendera sobre drogas, principalmente que ela vicia e é proibida por lei e respondeu que não estava a fim.
Pedrinho passou o resto da semana sem falar com os amigos da fumacinha, preocupado com a primeira tragada da droga. Ao reencontrar os amigos na sexta a noite, deu um belo chute no traseiro da preocupação e queimou a erva como se fosse um velho viciado. No final da noite ganhou um pequeno patuá, colocou no bolso da jaqueta e levou para casa. Sua mãe encontrou acidentalmente aquele pequeno embrulho todo amassadinho com cheiro de erva. Sem saber o que era mostrou ao marido. O pai, que já conhecia a famosa Cannabis Sativa de Lineu, chamou o mocinho na chincha. Pedrinho não admitiu que estivesse usando drogas. Argumentou que maconha era coisa a toa, que poderia usar e parar de usar quando quisesse. Mas não parou. No dia seguinte procurou um amigo para pedir um baseado e dois dias depois comprou sua primeira baranga de maconha que deu para fumar o resto da semana.
A este pacotinho se seguiram muitos outros e agora Pedrinho dificilmente ficava um dia sem fumar. No começo ele comprava a erva com o dinheiro da mesada, mas agora não estava dando mais, pois seu organismo já se acostumara e a mesma dose já não lhe dava aquela sensação de leveza e o efeito durava menos tempo. Era preciso aumentar a dose e usar com mais freqüência. Pedrinho passou a visitar a carteira da mãe, do pai e até dos irmãos.
Quando se deram conta de que o garotão estava totalmente dependente das drogas, foi um Deus nos acuda, mas já era tarde. O ano letivo na escola já estava perdido, namorada… nem pensar, amigos… somente os da ‘esquadrilha da fumaça’. O bom, bonito, educado e promissor jovem, prestes a completar 18 anos, era agora um jovem magricela, mal vestido desleixado e inspirava medo a quem o encontrasse nas quebradas. De dois anos atrás ele mantinha apenas a motoca 250, cheia de arranhões, amassados e maltratada nas arrancadas para fugir dos homens da lei.
Para continuar alimentando o vicio, já que a mesada era pouca e seus pais já não deixavam mais dinheiro dando sopa e cuidavam para que ele não vendesse os objetos de casa, Pedrinho agora praticava pequenos furtos. Qualquer coisa que pudesse ser vendida ou trocada por um patuá da erva maldita. Já fora detido diversas vezes e levado para a Delegacia e depois de enquadrado, entregue em casa por funcionários do Conselho Tutelar, comissários de menores ou buscado na DP pelos pais, como manda a lei.
Os pais de Pedrinho, cada um com suas ocupações profissionais, não tinham mais tempo para pajeá-lo. Na verdade estavam desacorçoados com ele. Cansados de pregar sermões, de passarem vergonha, de buscá-lo na delegacia de policia, de vigiá-lo para que ele não furtasse os objetos de casa, cansados de interná-lo em clinicas de tratamento de drogados… Enfim, os pais estavam desistindo de Pedrinho. Mas não podiam expulsá-lo de casa. Resolveram comprar um sitio para ele. Assim o filho, ou assumia o papel de homem ou se entregava de vez às drogas e seu amigos viciados….mas longe de seus olhos, para não envergonhá-los. Afinal de contas, Pedrinho estava completando 18 anos e se caísse novamente nas malhas da lei, não seria mais entregue são e salvo em casa. Iria direto para o velho hotel da Silvestre Ferraz.
Foi aí que o menino rico da cidade conheceu o menino simples da roça que só queria ser feliz. Zezinho mudou a vida de Pedrinho ou Pedrinho mudou a vida de Zezinho?
Geraldo Jose Sobrinho, o Gegê, morava com os pais num pequeno sitio lá atrás da Serra do Cajuru. Seu pai, um caboclo já maduro, bom de serviço e de pouca prosa, trabalhava 365 dias por ano nas pequenas lavouras e na lida com a pequena boiada e algumas vacas leiteiras. A mãe, prendada dona de casa, não trabalhava fora, mas ajudava o marido e pouco tempo sobrava para Gegê. Apesar da pouca atenção que recebia dos pais, o garoto alto, franzino, sempre sorridente, parecia feliz. Era o retrato do bom menino.
O pai de Gegê, embora não refugasse trabalho, queria que ele estudasse e fosse trabalhar na sombra, num banco na cidade ou funcionário do governo, por isso o deixava por conta somente do estudo. Nunca quis que Gegê pegasse no cabo da enxada como ele.
Gegê adorava futebol, mas não tinha muita intimidade com a redonda. Mesmo assim seu principal divertimento eram as peladas às tardinhas, a semana inteira, no campinho do bairro. A escola ficava na cidadezinha próxima onde ia e voltava diariamente de ônibus escolar, por isso seu mundo era bastante pequeno. Pequeno e puro.
Mas ao completar 16 anos, Gegê começou a sentir uma inquietação. Começou notar a presença das garotinhas, percebeu que alguns meninos de sua idade iam para a cidade sozinhos ou em turmas fora do horário escolar. Começou ficar incomodado no meio dos meninos menores que brincavam com ele no campinho. Logo bateu a solidão. Naturalmente já ouvira a palavra adolescente, mas pouco conhecia seu significado, seu comportamento típico e suas conseqüências. Ele ainda não havia percebido….. Mas já era um adolescente.
… E foi neste momento de inquietação, de insatisfação, de busca, de descoberta, que Gegê descobriu Pedrinho… O novo amigo veio preencher o vazio de sua vida.
Gegê já tinha visto Pedrinho passando de moto na estrada muitas vezes mas nunca havia falado com ele. Tinha certa inveja dele, todo livre, leve e solto, de motocicleta para baixo e para cima, sem compromissos, sem horários, mas achava que ele fosse mais velho. Até que certo dia, voltando da casa de um amigo no bairro, Pedrinho parou a moto a seu lado e ofereceu carona na garupa. Gege aceitou a carona e antes de parar na encruzilhada de sua casa, recebeu novo convite de Pedrinho, para ir até seu sitio, conhecê-lo. Estava começando uma amizade que iria mudar para sempre a pacata e ordeira vida de Zezinho.
No sábado, como sempre, tinha festinha no sitio de Pedrinho e Gegê foi convidado. Disse aos pais que ia ao “encontro de jovens”, mas pegou outra direção e foi à casa do novo – senão único – amigo. No começo se sentiu um peixe fora d’água, no meio de outros dez ou doze jovens soltos e barulhentos, todos bebendo e alguns deles, inclusive o anfitrião, fumando maconha. Apesar de puro, ingênuo e puro, era inteligente e procurou entrar no ritmo. Divertiu-se, tomou coquetéis de frutas com bebida destilada e ficou alegrinho, até perceber que tinha passado da hora de voltar para casa. Drogas, embora usassem com naturalidade, ninguém lhe ofereceu e ele também ficou na dele.
Duas semanas depois, sentindo um vazio no peito, Gegê se lembrou dos momentos alegres que passara na festinha de Pedrinho e ao invés de ir para o campinho jogar pelada, foi para o sitio do amigo. Pegaram de prosa e passaram a tarde trocando confidencias. Entre outras coisas, falaram de maconha e naturalmente Pedrinho acendeu um baseado. Depois de largas baforadas ofereceu ao novo amigo. Gegê olhou desconfiado para o cigarrinho cheiroso, bem enroladinho. Seu sisudo pai fazia e fumava um parecido com aquele, mas usava fumo de rolo, que levava sempre na algibeira da calça e fedia muito quando estava sendo cortado e enrolado na palha seca de milho. O cheiro da fumaça do cigarro do seu pai o remetia sempre para a cozinha da casa de sua avó que ele conheceu ainda menino. O fumo do amigo Pedrinho tinha aparência de bosta de vaca, cheirava a erva esmigalhada pelos pneus pesados do trator nas manhãs de inverno e era enrolado em papel branco ou pardo, fino. A fumaça, ou que se sobrava dela, pois a cada baforada Pedrinho aspirava longamente, também tinha cheiro de erva queimada que ele não conseguia distinguir qual. Gegê pegou o baseado, olhou atentamente para o fio tênue de fumaça, para a cinza na outra ponta, sentiu seu cheiro. Era tão característico quanto o cigarro de palha do seu pai, porém muito diferente e misterioso. Resolveu experimentar o inocente cigarrinho. Pensou, pensou, tirou a primeira baforada e soltou lentamente a fumaça.
– “ Tem que tragar” – disse Pedrinho. Puxou outra dose da fumaça, aspirou e soltou lentamente. Comentou tentando disfarçar o mal-estar, como se tivesse engasgado;
– Esquisito… – Tirou outra tragada e sentiu um incomodo menor.
… Foi ali, sentado na grama, na sombra fresca de um frondoso fícus de seis ou sete anos, na beira da pequena represa, que Gegê, tentando descobrir novas sensações na vida, começou a dar novo rumo à ela. Gegê não ficou impressionado com o gosto da erva, não entrou em transe, não ficou doidão, mas esqueceu completamente do tempo e quando percebeu estava escurecendo. Naquele dia não foi à escola. Ao chegar em casa sua mãe quis saber onde ele estava e porque não viera se aprontar para a aula …
– Ahn… eu estou cansado – Respondeu de má vontade sem olhar a mãe nos olhos e foi para o quarto.
Gegê ficou uma semana sem ver e sem procurar o amigo, mas também não foi jogar peladas. Passou o tempo todo trancado no quarto, enfadado, folheando livros e cadernos, sem ver nada. Quinze dias depois, no inicio da tarde, bateu à porta de Pedrinho. Ele estava com dois amigos da cidade dando ‘uns tapas’ na erva e nem foi preciso insistir. Gegê foi logo entrando na roda como se fosse velho usuário. Parecia que ele havia ido ali especialmente para fumar maconha. Passou o resto da tarde com Pedrinho e os outros dois, mas voltou para casa a tempo de ir para a escola. Antes, no entanto, combinaram ir à cidade no dia seguinte fazer umas compras.
Era uma sexta feira. Apesar de achar que seu comportamento era normal, Gegê não queria que soubessem que ele estava indo para a cidade na companhia de Pedrinho, por isso foi esperá-lo no ponto de ônibus, embora morasse a meio caminho dele. Quando ele passou pulou em sua garupa e lá foi o menino simples da roça, em busca de aventuras perigosas e proibidas.
Percorreram ruas, lojas, praças e lugares comuns de Pouso Alegre, ao sabor do vento. Gegê foi apresentado a vários amigos e com dois deles foram a uma quebrada, onde queimaram um baseado. Antes de voltarem para a roça, Pedrinho tocou a motoca para o velho aterrado e na rua Maria Porfíria, uma das dezenas de “bocas de fumo” do bairro, comprou um pacotinho da erva maldita. Foi fácil. Ele passou em frente a casa de Zelão, deu uma acelerada na moto e seguiu em frente. Deu a volta no quarteirão irregular, voltou e parou ao lado da janela do traficante. Sem descer da motocicleta, pegou o embrulhinho, entregou duas notas de dez amassadinhas e saiu acelerando. Aquilo era rotina para ele. Voltaram para casa sem problemas.
Nas semanas seguintes, Gegê continuou a freqüentar a escola quase normalmente, mas foi varias vezes à casa do amigo. Durante o dia, nos finais de semana e sempre que se encontravam ‘dava uns tapas’ na erva maldita. Voltaram duas vezes à rua dos Nóias no Aterrado, para buscar a erva. Na segunda vez quem pagou foi Gegê.
Na terceira vez que foram visitar o traficante, Gegê tomou seu primeiro susto. Ele acabara de colocar no bolso uma baranga de maconha, quando viraram a esquina deram de cara com uma viatura da Policia Civil. Os homens da lei já estavam na sua sombra há algum tempo e haviam armado o bote. Pedrinho, experiente motoqueiro, calejado em fugas, fez uma manobra rápida empinando a moto e conseguiu vazar, mas Gegê caiu no meio da rua, nos braços da lei… Trocou a carona da moto pelo táxi do contribuinte. Ficou apavorado, sem saber o que dizer ou fazer. Interpelado disse que pegou carona na garupa do vizinho, sem saber o que ele estava fazendo, embora a droga estivesse em seu bolso.
Depois de sentar ao piano do Delegado e Tóxicos e Entorpecentes, foi levado por um comissário de menores até sua casa, atrás da serra do cajuru e entregue a seus pais. Se fazendo de vitima e ocultando o seu envolvimento com a droga, Gegê contou aos pais apenas o que o interessava. Quase nada mudou em sua vida, apesar do susto. Mas ficou vários dias sem ver o amigo que sumiu do bairro.
Aquela foi uma noite tensa em sua vida. Refletiu muito… Ficou claro para ele que estava sendo liberado somente porque era menor de idade e protegido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Mas se continuasse na companhia de Pedrinho a usar drogas, fatalmente perderia a liberdade assim que chegasse aos dezoito anos.
Durante os dias que se seguiram Gegê não viu Pedrinho e não sabia o que dizer a ele quando o encontrasse. Teve raiva dele por ter sido abandonado estatelado no meio da rua. Com o passar das semanas, no entanto, começou sentir aquela vontade de tragar um cigarrinho do capeta e soltar uma fumacinha. No domingo à tarde, sabendo que Pedrinho estava no sitio com uns amigos, resolveu visitá-lo e aparar as arestas. Bastou meia dúzia de prosa para fazerem as pazes. Logo estavam dando uns tapas na erva. Nas semanas seguintes voltaram varias vezes à cidade para buscar a maconha. Estavam mais espertos. Driblar a policia já não era mais problema. Mudaram para um fornecedor menos manjado. Afinal, ‘boca de fumo’ no Aterrado era como erva daninha; nascia e crescia mirrada ou não, todo dia.
A dificuldade maior agora era conseguir dinheiro para comprar a droga que já fazia parte do seu dia-a-dia. Gegê começou então visitar a bolsa da mãe, a guaiaca do pai e em poucos meses, tênis relógio, pulseira, rádios e outros objetos domésticos começaram a sumir da casa de Gegê e ir parar no mocó de Zelão, da Mara, do Jairzinho, Zetinho e outros distribuidores do ‘veneno’ no velho Aterrado. No começo os pais de Gegê também lhe deram apoio e tentaram afastá-lo do vicio. Mas logo desistiram e deixaram de se importar com ele. Em pouco tempo a casa e a companhia de Pedrinho tornaram-se rotina na vida do adolescente. À sua própria casa ele passou a ser visita. Visita privilegiada, que vinha para comer, dormir às vezes, pegar roupa limpa e passar a mão leve nalguma bufunfa distraída ou exigir dinheiro quando a mãe escondia. O pai, que nunca fora dado ao dialogo, ficara ainda mais arredio e distante do filho. Ameaçava não deixá-lo entrar em casa e entregá-lo à policia. Mas era sempre impedido pela mãe, chorosa, que embora sofresse com o distanciamento, com a mudança de vida do filho, sempre o protegia e mendigava-lhe juízo e obediência.
A mãe de Pedrinho fora minha colega de faculdade e os de Gegê eram meus conterrâneos, portanto eu não somente os vira crescer, como os vira nascer e inevitavelmente seguia seus passos. Apesar desta proximidade, só entrei na vidinha desregrada da dupla, estritamente como policial, quando os furtos à chácaras e sítios no bairro começaram a se alastrar. Passei a investigar e através da apreensão de rês furtiva em poder de traficantes, apuramos três dos furtos recentes à chácaras, realizados na calada da noite pela dupla Pedrinho & Gegê. Dois deles em parceria com outros delinqüentes. Ambos foram intimados, indiciados e liberados, pois não estavam em flagrante. Só poderiam ser presos quando e, se fossem condenados. Os furtos pararam, mas a erva marvada continuou fumegando até que…
Numa noite fresca de setembro, o jovem Zé Eduardo acordou no inicio da madrugada, com os latidos de Pitboy no quintal. Ficou escutando e percebeu que o viralatas foi aos poucos se aquietando, como se estivesse sendo adulado por alguém conhecido. Esperou ouvir as batidas na porta, pensando que talvez fosse seu cunhado, dono da casa, que havia ido para a cidade levar a esposa que estava nos dias de dar a luz – Ele estava dormindo na casa do cunhado para vigiá-la, por causa dos últimos furtos no bairro – Em instantes o rosnado de Pitboy foi substituído pelo ‘quic’ insistente da motocicleta que dormia fria no fundo da varanda lateral da casa. Pela fresta da janela de madeira, sob a luz cândida da lua cheia que já deitava, pode ver dois sujeitos tentando empurrar a Titan. Não conseguiu identificá-los, mas teve certeza; não era seu cunhado. Zé Eduardo estava ali para evitar que a residência fosse vitima de furto, para proteger o patrimônio da irmã e do cunhado, por isso não teve duvidas, pegou a espingarda cartucheira pendurada atrás da porta do quarto, abriu um palmo da janela e mandou fogo na direção dos ladrões. Atirou para o chão, mas as dezenas de chumbinhos ricochetearam no piso liso cor de pinhão da varanda, se espalharam e acertaram as pernas do vulto da esquerda. Ambos correram, porém Gegê, que recebera nove estilhaços de chumbo das nádegas para baixo, não conseguiu passar do portão. Caiu aos gritos e foi atacado por Pitboy, enquanto Pedrinho montava sua surrada Twister e dobrava a serra do cajuru. Eu o prendi as dez da manha do dia seguinte, placidamente nos braços de Morfeu, na casa dos pais no bairro Santa Lucia, depois que eles saíram para o trabalho, pois ainda estava em estado de flagrância pela tentativa de furto.
Apesar da extensa relação de crimes, nem Pedrinho nem Gegê tinham condenação, portanto eram ‘primários’ à luz da lei. E embora tenham sido presos em flagrante, ficaram menos de duas semanas vendo o sol nascer quadrado. Gegê, com a bunda ainda inchada e dormindo de bruços, voltou para a casa dos pais, pois precisava de repouso e pajem. Pedrinho fez questão de voltar para o sitio e desfilar pela estrada do bairro logo no primeiro dia de liberdade. Talvez quisesse provar alguma coisa aos moradores. Não se viram por algumas semanas.
Um mês depois de sair da cadeia, Gegê ganhou um presente; Uma motoca Titan 150 0k. Convertido de uma hora para outra em garoto bonzinho, ele garantiu que estava mudado, que queria começar vida nova e precisava da moto para trabalhar, nem que fosse de motoboy. O sisudo pai relutou em acreditar nele, mas todas as opções eram piores. Com a chorumela da esposa, comprou-lhe a lustrosa moto azul, financiada.
Começar uma atividade laborativa honesta não é fácil para ninguém. Pior ainda para quem nunca trabalhou e quase todas as pessoas que conhece estão à margem da lei. Ele bem que tentou por algumas semanas e talvez tivesse continuado tentando enquanto sua amizade com Pedrinho continuasse abalada. Mas o próprio Pedrinho foi quem procurou por ele numa festinha em casa de amigos. Tiveram uma discussão acirrada e quase pegaram no tapa. Gegê não o havia perdoado por te-lo abandonado com a bunda cheia de chumbo na porta da casa de Zé Eduardo, tomando mordida de cachorro nos calcanhares. Mas acabaram fazendo as pazes. Pedrinho contou que estava fazendo aviãozinho para Mara e que ele também poderia entrar no ramo com sua moto. Além de ter erva a vontade para queimar, ainda dava para livrar uma boa grana todo dia.
Aos dezoito anos, sem ter concluído o colegial, sem uma profissão definida, Gege conseguiu seu primeiro emprego, informal. Aliás, informal demais. Era muito simples. Ele só tinha que receber um telefonema, pegar a encomenda e levá-la ao endereço mencionado, receber a grana e voltar ao ponto da entrega. Nem tirar doce da boca de criança era tão fácil e simples. Pena que a encomenda entregue era maconha, crack, cocaína e outras drogas. A aventura de singrar as ruas de Pouso Alegre e das estradas das cidades próximas, diariamente desde o inicio da tarde até o final da madrugada, começou a ficar estafante. O ganho era razoável, mas não bastava abastecer o bolso, era preciso abastecer também o cérebro, a corrente sanguínea cada vez mais exigente e, maconha virou droga de ‘coroa’. Era preciso algo mais estimulante. Daí para a cocaína e o crack foi um pulinho. Conseguir grana para sustentar a droga mais cara é que seria um pulão. Eles tentaram, mas não era tão simples. Pedrinho era mais escolado e começou formar sua própria clientela. Gegê tentou seguir seu caminho e ambos se deram mal. Além de roubar a clientela dos traficantes do velho aterrado, começaram desviar o pagamento das entregas que faziam. Abrir ‘concorrência sem licitação’ e dar o ‘tomé’ no antigo patrão…não podia dar coisa boa!!! As conseqüências não tardaram. Os graúdos do trafico até que pegaram leve…. ninguém morreu. Um ciclista que passava atrás do Manduzao numa manhazinha de domingo, encontrou dois jovens semi-inconscientes, com marcas de espancamento por todo corpo. Eram Pedrinho e Gegê. O patrão do trafico fora bonzinho. Mandara dar a surra e tomar suas motos, mas poupara suas vidas. Pedrinho e Gegê jamais disseram o nome dos agressores. E voltaram cada um para a casa de seus pais, sem dinheiro, sem drogas e sem as motos.
Pedrinho passou sete meses numa clinica de tratamento e desintoxicação em Jaguariúna. Gegê ficou seis meses em Itamonte. Estavam tentando reescrever suas historias, sob as asas ainda mais sisudas e pouco confiantes dos pais, quando a justiça cobrou sua divida.
Duas semanas depois de voltar da clinica, Pedrinho passava os dias bem vestido pesquisando leis e digitando processos no escritório de advocacia da mãe. Não que ela precisasse do seu serviço ou que ele fosse de grande valia, mas era a maneira até então encontrada de manter os olhos em cima dele. Talvez ele se interessasse pelo direito e voltasse para a escola. Ele já havia experimentado o lado negro da lei. Quem sabe tomasse gosto pelo lado colorido…. Tarde demais. Ou cedo demais? Aquele estagio deveria ter acontecido antes de assinar vários B.O.s ou depois de quitar a divida correspondente. A oportunidade de mudar de vida chegara na hora errada. Havia ainda uma divida a ser paga…..E a lei não perdoa seus devedores.
Era uma manha fresca de inicio de maio, quando Pedrinho chegou acompanhado da mãe ao escritório de advocacia no centro da cidade. Ela sempre elegante e bonita, vestia um conjunto azul discreto. Ele vestia calça jeans nova, escura, camisa verde água de listras finas na cor da calça e uma bonita jaqueta imitando couro na cor do sapato marron. Barbeado, cabelos curtos, molhados e bem penteados. Trazia no rosto um ligeiro cansaço. Marcas de vários anos de vida desregrada que ainda não tinham sido recuperados nos últimos oito meses. Trazia também uma fina e longa cicatriz na testa, lembrança daquela noite atrás do Manduzao…. O olhar triste e serio brilhou freneticamente ao me ver sentado de pernas cruzadas na poltrona ao lado da mesa da recepcionista folheando a revista Veja no escritório de sua mãe. Nosso cumprimento de ex-colegas de faculdade foi afável porém curto. Fabiana deduziu o motivo da minha rara visita e interrogou-me com o olhar.
– … É, o doutor Sergio deu a sentença…. Vou ‘precisar dele na delegacia’ – disse eu pouco à vontade, olhando para Pedrinho que segurava uma pilha de processos. Qualquer outra mãe faria uma serie de perguntas, colocaria empecilhos, tentaria protelar, espernear… Mas Fabiana sabia muito bem que não poderia fazer nada pelo filho naquela hora e que eu também não faria nada diferente do que estava fazendo. Aliás, eu já tinha feito. Em qualquer outra situação eu teria ido com viatura caracterizada e levado comigo dois ou três colegas para cumprir o mandado de prisão. No entanto eu estava sozinho e com meu carro. Mais discreto impossível… Pedrinho, talvez por não ter exata noção do que o aguardava, mas também ciente da crua realidade, baixou a pilha de processos sobre a mesa da secretária e após um breve e silencioso abraço na mãe, acompanhou-me resignado, porém de cabeça erguida até meu carro ali perto. Fabiana demorou-se alguns segundos tentando ordenar que suas pernas a levassem para o interior de sua sala, tempo suficiente para que as lagrimas escorressem pelo seu bonito rosto. Foi a prisão mais fácil e ao mesmo tempo mais penosa que eu até então havia feito…
A prisão de Gegê poderia não ser tão discreta e sutil, por isso tomei algumas precauções. Levei comigo dois colegas e fomos no carro de um deles. Ele estava trabalhando com o pai no preparo da terra para o plantio de mandioca – pela primeira vez na vida – ao pé da serra, há dois quilômetros do sitio e como de habito na roça, deveria chegar em casa por volta de quatro da tarde. Chegamos às três e meia. Desci e fui direto para a cozinha tomar café com ‘dona’ Marlene enquanto os companheiros se afastavam alguns metros da casa. Como previsto, Gegê chegou minutos antes das quatro. Enquanto o pai soltava os cavalos no curral ele entrou na cozinha. Puxou conversa econômica, ressabiado, deduzindo que eu não estava ali apenas apreciando os quitutes de sua mãe. Esperei dois minutos ou três – o tempo necessário para os colegas se aproximassem da casa – e antes que Gegê se afastasse da cozinha, disse o que ele suspeitava;
– Gegê, o delegado está precisando de você na delegacia. Vá tomar um banho…. você vai com a gente – disse eu em tom brando e firme. Enquanto processava a frase “… com a gente”, o menino que vi crescer fechou a torneirinha do bebedouro, levou o copo à boca, sorveu o liquido quase num só gole, deu dois passos em direção à porta, o suficiente para ver o carro do Freitas na frente da casa. “Um minuto antes ele não estava lá” – deve ter pensado. Gegê compreendeu que eu não estava só. Olhou como que a pedir socorro para a mãe e foi ela quem perguntou já quase chorando;
– Ele vai ficar preso?
O que eu não dissera nos primeiros vinte minutos, para economizar lagrimas, tinha que dizer agora.
– Vai, Marlene… Saiu um mandado de prisão para ele e para Pedrinho. Mas eles são primários. Em poucos meses poderão voltar para casa e recomeçar uma vida nova – emendei fingindo indiferença.
Naturalmente era uma mentira deslavada que eu não poderia ter contado à mãe de Pedrinho, que conhecia talvez melhor que eu as leis. Mas a mãe de Gegê era pós-graduada apenas em quitutes de forno e fogão. Nada entendia de leis. Eu não poderia dizer a ela que aquela era apenas a primeira das condenações que seu filho receberia – quatro anos, por roubo a mão armada a um posto de combustível há quase dois anos – Em alguns meses ele receberia pelo menos outras quatro condenações por furtos, roubos e trafico de drogas. Seriam mais de vinte anos, que no frigir dos ovos redundaria e redondaria em seis ou sete anos atrás das grades.
O tempo de privação da liberdade no cumprimento das leis do código penal e de processo penal, no entanto, seria o menor dos problemas que o jovem enfrentaria no velho hotel da Silvestre Ferraz. Ali ele teria que enfrentar as leis do cárcere, as “leis dos fora-da-lei”. Se até então ele era apenas um aventureiro desajustado familiar e socialmente, agora ele se ajustaria às leis do presídio, na verdade leis dos próprios presos, muito mais contundentes, cruéis e rápidas do que as leis que tramitavam no Fórum. No velho hotel da Silvestre Ferraz como em qualquer outro hotel do contribuinte, não se protela processo ou execução de sentença. O julgamento é sumario e sem direito à defesa. Os poucos mais de vinte minutos que fiquei na cozinha da casa simples e espaçosa de Gegê elogiando o bolo de fubá e o café de sua mãe, seriam suficientes para resumir os próximos quinze ou vinte anos de sua vida que eu preveria de cor e salteado. Mas eu não poderia contar a ela que Gegê e Pedrinho, seu amigo de aventuras fora da lei, acabara de receber três condenações; uma do homem da capa preta, que tinha data pré-estabelecida para terminar, uma da sociedade, que poderia durar por toda vida e outra do sistema prisional, que deixaria cicatrizes na pele e na alma, também pelo resto da vida ou poderia terminar numa madrugada qualquer, pendurado na ‘ventana’ ou no canto do pátio durante o banho de sol. Como dizer a ela que seu filho seria humilhado, aviltado, tatuado, seviciado, provavelmente violentado e extorquido nas próximas semanas. Como dizer a singela e bondosa mãe que seu filho certamente pegaria sarna, micose e doenças venéreas, talvez tuberculose, talvez Aids. Como dizer a ela que o menino de 20 anos fugiria ou tentaria fugir diversas vezes perdendo assim o direito a progressão de pena e que durante as fugas, além dos riscos inerentes, ele voltaria a cometer outros delitos ate ser preso de novo. Como dizer que tudo isso retardaria sua volta … Que talvez ele nunca mais voltasse para casa…. Não. Não poderia dizer. Era uma dose muito grande de angustia, de amargura e de tristeza para que ela sorvesse de uma só vez. Tinha que ser tomada aos poucos para não levar ao desespero, para que o coração fosse criando anticorpos e pudesse resistir. Ainda que calejasse e endurecesse como uma pedra…. ou que se tornasse amargo como fel. O pai, Roberto, com a pele queimada com a labuta do campo, combalido pela vergonha do filho perante os vizinhos e conhecidos, ainda tinha uma válvula de escape, tinha os bois para cangar, as vacas para ordenhar, alguns cavalos para arrear e cavalgar e a terra, para ver a semente brotar. Mas Marlene…. só tinha o fogão para cozinhar, a casa grande e simples para limpar e o tempo… para vê-la definhar. Aliás, solidão e depressão já moravam com ela há muito tempo, talvez antes mesmo de Gegê se desviar na curva da estrada…
Enquanto se vestia no quarto Gegê ainda deu uma olhada discreta pela janela, talvez pensando numa possível fuga, mas ao ver Freitas encostado na pilastra da varanda, Fernandes conversando com seu pai na porteira do curral e ouvindo minha voz com sua mãe na cozinha, concluiu que a aventura tinha chegado ao fim.
O pai de Gegê não foi visitá-lo nas primeiras semanas, mas estranhou o tamanho da lista de compras que Marlene trouxe da cadeia. Aquilo dava para suprir as necessidades de uma família maior do que a dele durante um mês.
– O estado não fornece alimentação, material de limpeza e de higiene pessoal na cadeia? – Perguntou à esposa.
–Pergunte ao seu filho, Roberto – Respondeu Marlene, magoada por ele não ter ido com ela visitar Geraldo. O clima entre o casal só não era mais tenso, porque era de afastamento. Roberto passava cada vez mais tempo na lida da roça, fumando cada vez mais seu catinguento cigarro de palha com carapiá. Do sitio só saia agora para ir à igreja. Trocou a missa domingueira pela de sábado à noite, para andar no escuro, para ver menos gente e ser menos visto. A mãe de Gegê não acompanhava mais o marido à missa e nem reclamava sua ausência. Adquiriu o habito da bebida e passava os dias no quarto, entregue à depressão e ao definhamento físico e espiritual.
A rotina no sitio foi quebrada quatro meses depois da prisão da dupla Pedrinho & Gegê. Era uma noite abafada de fim de setembro quando Roberto acordou no meio da madrugada com latidos, gritos, ranger de molas e freios e o irritante piscar de luzes coloridas que entravam através da vidraça. Levantou assustado e ao abrir a janela sentiu o cano frio de uma ‘doze’ encostar-se ao seu peito. Era a policia militar procurando Gegê. Ele havia fugido pouco antes de meia noite e segundo os primeiros levantamentos no velho Hotel da Silvestre Ferraz com os companheiros que não conseguiram fugir, ele pretendia pegar o carro do pai para deixar a cidade. Outros quatro haviam dobrado a serra do cajuru com ele. Pedrinho não tivera tanta sorte. Muito pelo contrario. Tivera um tremendo azar. Ele fora o ultimo a subir no muro do presídio e levara um tiro de raspão no traseiro. Cair de volta ao pátio e fraturar a perna, no entanto, era o menor dos seus problemas…. a azeitona quente atingira a veia femural. Socorrer um preso ferido durante uma fuga de cadeia não é prioridade, especialmente quando há possibilidade de recapturar os outros fujões. Até que a guarda e os policiais que foram chamados, assumissem o controle do que estava se passando, Pedrinho ficou estirado no chão frio do pátio com o sangue escorrendo em jato pela principal veia do corpo. Poucos policiais sabem que um ferimento nesta região pode ser tão letal quanto no coração. A gravidade do ferimento somente foi percebida quando ele deu entrada inconsciente no PS, já com o cérebro entrando em falência. Pedrinho sobreviveu, mas nunca mais será o mesmo. Seu cérebro ficou vários minutos sem oxigênio e ele entrou em choque… Quando recobrou a consciência tinha perdido os movimentos do braço e da perna esquerda. Igualmente o lábio esquerdo não obedecia ao comando do cérebro; Era uma dificuldade imensa entender o que ele falava.
Gegê assistiu à barulhenta ‘operação à sua captura’, há poucos metros dali, num pequeno capão de mato. Ele chegara minutos antes da policia. Um dos seus colegas de ‘caminhada’ que saíra de alvará dias antes, havia lhe dado uma carona de moto até a casa de seus pais. Mas ele teve um mau pressentimento e embrenhou-se no mato ali perto, para ‘dar um tempo’ até a poeira baixar. Mesmo quando os policiais foram embora ele resolveu esperar o dia amanhecer para pegar o carro do seu pai. Esperou dois dias. Só na segunda feira, depois que viu seu pai se afastar do sitio no seu cavalo baio e manco, ele finalmente entrou em casa. Não tinha sede, pois no fundo do mato havia uma nascente de água cristalina e ele bebeu, mas estava tão esfomeado que antes de dizer qualquer coisa à sua mãe, correu para a geladeira e foi se servindo do que achou, sem pratos ou talheres, à moda primitiva.
O encontro entre mãe e filho, mesmo naquelas circunstancias, não foi nem comovente nem turbulento, pois ela o visitava toda semana. Ademais, ela vivia sob efeito ou de suco de gerereba ou de tranqüilizante… ou dos dois. Gegê, há anos perdera o afeto pela mãe. O clima, no entanto ficou tenso quando ele procurou a chave do carro do pai no local de costume e não a encontrou. Somente depois de alguns safanões na mãe, Gegê se convenceu de que ela não sabia onde estava a chave. Seu pai com certeza a havia escondido. Frenética e estupidamente o menino que vi crescer revirou o quarto do casal, jogando tudo no chão, até que ouviu o som oco de metal dentro da algibeira de uma calça bater ao chão. Tão insensível e indiferente quanto entrara na cozinha minutos antes, Gegê pegou alguns trocados e o talão de cheques que sua mãe guardava debaixo de um pedaço de veludo, no fundo de uma gaveta da cômoda, saiu pela mesma porta, entrou no carro e saiu acelerando sem dizer uma palavra de despedida. Quase dez minutos depois que o Uno verde desapareceu na curva do bambuzeiro, Marlene finalmente desencostou da janela e foi lentamente cuidar da tarefas de dona de casa. Calada, soturna, distante, sem lagrimas. Será que ela veria Gegê de novo?
Veria. Viu. Dois meses depois. Ele fora preso duas semanas antes em Poços de Caldas, num roubo a um supermercado, com outros dois comparsas. Um terceiro fugiu e os deixou a pé. O uno verde do pai, soubemos que havia sido vendido para um desmanche em Poços, para comprar armas e drogas.
O velho hotel da Silvestre Ferraz hoje é ‘museu’ mal assombrado. Muitas vidas se encerraram ali. Seus hospedes mudaram-se para o imponente e espaçoso Hotel do Juquinha que se vê da BR 459. Pedrinho & Gegê moram lá.
O jovem filho da advogada, agora com 24 anos, tem 5 condenações que totalizam 28 anos de cana. Como ele só tem metade dos movimentos, a família tenta convencer o homem da capa preta a conceder-lhe prisão domiciliar, pois ele não poderá mais fazer nenhum mal nem a ele e nem à sociedade. Gegê, 21 anos, menino ingênuo e sonhador que vi crescer jogando pelada até os quinze anos no campinho do bairro, também tem 5 condenações já transitadas, quase 26 anos para se hospedar no hotel do Juquinha. Mas tem outros três processos transitando na Justiça.
Este é o destino da maioria dos jovens que se entregam às drogas. O momento mais propicio para esta paixão é a adolescência, quando o garoto deixa de ser criança e começa perceber que é homem, que tem idéias próprias, quer independência, quer mandar no próprio nariz…. É também o momento em que os meninos precisam de muito mais do que casa, comida e roupa lavada….
Pedrinho e Gegê não tinham motivos para se perderam na encruzilhada da vida, porém, não acharam motivação para se encontrarem…
Airton Chips – 2010
Muito triste essa historia …mas você conseguiu passar para os leitores como começa a vida dos usuários de drogas, independentemente da classe social. E destacou que é do inferno que se vê o paraíso , mas dessa vez foi tarde , espero que muito dos que se iniciam nesse caminho, possam despertar desse pesadelo e mudar o fim da sua historia.
Pois é, Daniele…
E o pior, é que a historia é real!!! Conheço varias outras parecidas…
Abraços.
Todos os jovens deverião ler as historias que você escreve, quem sabe alguns desistam, pois o final é sempre triste.
Adoro seu blog. Continue sempre contando o que sabe. Abraços
Ogrigado Cintia,
Em 2004 sofri um duro golpe jornalistico. Perdi o gosto, me desiludi… Fiquei cinco anos sem escrever nada, mas reencontrei a motivação. Essa é a motivação! Mostrar historias de vidas perdidas por causa das drogas, na esperança que as pessoas leiam, reflitam, resistam e não se entreguem às drogas. Se cada 100 historia que eu contar conseguir evitar que um jovem experimente droga ou tirar uma pessoa das drogas, eu vou ficar muito feliz e motivado a escrever…
Abraços.
Parabéns Airton, não pare de escrever mais não…essa foi uma boa história da vida real que vc postou, mostrando que o consumo de drogas além de levar ao vício pode também levar a uma vida de crimes.
Leio seus posts quase todos os dias…gostaria muito que vc contasse uma história que vc prometeu há uns tempos atrás…a do “Corpo Seco”.
Aguardo ansioso por saber mais sobre essa história que escuto desde criança…
Obrigado, Mario Lucio…
A historia prometida está quase pronta. Sua publicação no entanto, tem algumas implicações, digamos, ‘familiares’! Estou procurando uma maneira de contar a dolorosa historia sem ferir ninguem. O desfecho vivido entre os anos 40 e 50 em Pouso Alegre, é surpreendente! Voce não perde por esperar…
Abraços.