Tuca Maia, um gato de sete vidas…

 

Meninos que vi crescer

Conheci Ronaldo Belo de Paula, o Tuca Maia já barbado, mas seu nome o precedeu em mais de dez anos. Em 1988, no decorrer do Campeonato Infantil de Futebol realizado pela LEPA, um dos dez que fazíamos por ano, fui procurado pelos dirigentes de três ou quatro dos clubes participantes alegando que o Corinthians do Jacaré tinha um “gato”. Todos eles informavam que o ponta direita baixote, troncudinho, veloz e bom de bola, era 72 e não 74 como exigia ao regulamento da Copa Infantil daquele ano. Verifiquei meus arquivos e lá estava a certidão do atleta; Ronaldo Belo de Paula, morador do Jardim Yara, nascido em 28 de setembro de 1974… Não. Os dirigentes estavam enganados. Ronaldinho o ponteiro veloz e mais encorpado que os colegas estava dentro da faixa etária exigida para o campeonato, não era Gato!

O Corinthians tirou pontos de vários adversários, mas não se classificou para as finais. Certa tarde eu estava assistindo um dos jogos da semi-final entre o Crac do Hailton Custodio e o Santos, do João Cavalo, no Estádio Siqueira Campos, quando Ronaldinho “Belo de Paula” se aproximou. Já não havia mais importância se fosse ‘gato’ ou não, mas abordei o moleque com cara de moleque e o questionei:

– Ronaldo, eu vi seu documento, você tem apenas 14 anos, mas continuo achando que você me enganou…

Ele deu uma risadinha marota, porém respeitosa e disse;

– Você viu a certidão de nascimento do Ronaldo Belo de Paula, meu vizinho… Eu sou o Ronaldo Fernandes da Silva, tenho 16 anos… !!!

Esta parece ter sido a primeira vez que Ronaldo Belo – que é mais feio que briga de foice na beira da ribanceira em noite de chuva, principalmente quando faz cara de choro – cometeu um delito e enganou alguém.

Em 2001, quando eu fui buscá-lo em sua casa no Jardim Noronha, para um ‘tour’ pelo velho Hotel da Silvestre Ferraz, ele já possuía extensa capivara. Só nesta ocasião descobri que conhecia seu pai, sua mãe, seus irmãos… Foi justamente essa amizade, embora não tão estreita, que me levou a tomar uma atitude impensável, utópica. Sua velha mãe me procurou na delegacia e pediu-me que desse ‘uns conselhos’ à Tuca, pois não agüentava mais suas desordens em casa. O filho morava com ela, tinha mulher e filha, mas continuava usando drogas e não respeitava ninguém.

Quando avistou a viatura na beira da rua e me viu sozinho no portão, Tuca Maia fechou a cara e entrou rapidamente em casa dizendo que ia trocar de roupa. Achei que ele não iria voltar. Depois de alguns minutos de espera, pensei:

– Ele já deve teve pulado o muro dos fundos e dobrado a serra do cajuru…

De repente ele apareceu com a habitual cara de choro de quando estava vencido. Fechando o zíper da blusa de moletom, perguntou;

– Onde o senhor vai me levar ‘seu’ Chips?

– Entre aí… Quero te mostrar uma coisa!

Parei na porta do Velho Hotel da Silvestre Ferraz, descemos da viatura e subimos as escadas. Eu na frente e ele atrás. Sua expressão facial não poderia ser mais feia! Seu cérebro nunca trabalhou tanto!

– Esse Chips é louco? Vai lá em casa me buscar sozinho, sobe a escada na minha frente e me leva pra cadeia sem tocar em mim?!?! Acho que ele nem está armado! – Pensava ele sem entender o que estava acontecendo.

Entramos. Passei de cela em cela. Encostava na grossa e fria grade de ferro remendada com solda, olhava para seu interior, mostrava presos dormindo nos colchonetes imundos, pilhas de roupas nos cantos… roupas nos varais improvisados, um emaranhado de fios elétricos desencapados emendados para todo lado… Ia para outra cela, repetia o ritual. Paredes riscadas, manchadas, mal rebocadas… Cheiro de mofo, de urina, de refluxo de vaso sanitário, cheiro de chulé, suor quente de muitos homens num pequeno espaço com pouca ventilação. Barulho de uma TV numa cela, de um radinho tocando rap na outra, um grupo de presos trançando um baralho ensebado num canto. Alguns o cumprimentavam;

– Aê Tucá, firmeza mano? Aê, sangue bão…? Ta de volta, irmão?

Outros fechavam ainda mais a cara soturna quando me viam a seu lado. Ninguém entendendo nada. Eu seguia sem dar explicações. Depois de completar o ‘tour’ pelo centenário, carcomido, sombrio e malcheiroso presídio, levei-o para a carceragem e o convidei a sentar-se na minha frente.

– Muito bem, Tuca… Você conhece melhor que eu estas celas, estes corredores, estas grades, esses companheiros de caminhada. O que achou? É um bom lugar para se viver? Quer morar aqui?

Entre carrancudo e amedrontado, quase tremendo, Ronaldo Belo ouvia cabisbaixo o curto questionamento, ainda sem entender.

-… Pois é isso que te espera! É aqui que você vai morar brevemente, se não mudar de vida!!!

Tuca levantou rapidamente a cabeça. O alivio era visível em seus olhos, em seu rosto. Então não estava preso? –Pensou.

Não. Não estava.

Se foi decepção ou não para a sofrida mãe de Tuca, eu não soube. Mas isso era o máximo que eu ou qualquer policial podia fazer. A velha estória de “aplica um corretivo no meu filho para ver se ele muda de vida”, se existiu, era coisa do passado. Coisa de policiais truculentos que faziam as leis com as próprias mãos. Isso não existe mais. Não na policia civil, pelo menos. Prender um cidadão, independentemente da sua vida pregressa, só se ele estiver cometendo um crime ou se o homem da capa preta mandar, depois de explicar porque. O Maximo que eu poderia fazer pela mãe do Tuca ou pelo próprio, era mostrar o seu futuro e adverti-lo. Pregar-lhe o sermão. Acatar ou não, é seu livre arbítrio. Ele não acatou!…

Na ocasião a capivara de Ronaldo Tuca já era extensa. Tinha 157, 180, 21, 129. Em 98 ele já deixara as marcas de uma lapiana no costado do traficante China. Naquele mesmo ano ele tentara mandar o desafeto Paulo Celso de Paula para a chácara do padre.

Em 2002, um ano depois do sermão do velho Hotel da Silvestre Ferraz, Tuca finalmente conseguiu assinar seu primeiro 121 consumado. Aconteceu numa noite turva na beira do turvo Rio Mandu no Jardim Yara. Tuca estava com amigos de copo numa frangada na beira do rio, quando desentendeu-se com o vizinho Alex Sandro da Cruz, tão ficha suja quanto ele e cravou repetidas vezes a faca de cortar cebola em seu corpo. Por um tempo dona Luzia ficou livre de suas brigas, dos seus chingamentos, do seu destempero, dos seus palavrões, de suas ameaças.

A. Flanklim era menino que vi crescer. Alguns anos mais jovem que eu, começamos juntos a carreira ao lado da lei. Eu de cá, ele de lá. Era um serralheiro de mão cheia, empregado do Tião Cueca. Só que nas horas vagas, na penumbra da noite, ele costumava cuidar do alheio. Tornou-se rapidamente especialista em furtos de toca-fitas. Retirava o vidro de carros populares, pegava o ‘TKR cara preta’ e se tivesse tempo recolocava o vidro no lugar sem danificar nada. Parecia mistério. Ainda jovem ele se bandeou para o Estado de São Paulo e caiu por lá. Viveu anos por conta do rico contribuinte paulista, na região de Campinas.

Em 2003 A. Franklin, já no final da pena, se transferiu para o velho hotel da Silvestre Ferraz. Um belo dia, enquanto eu anotava reivindicações no X 6, ele tomou a frente dos demais presos, estufou o peito, e disse que ‘agora era com ele’… Estava assumindo o comando dos ‘irmãos de caminhada’. Ouvi atentamente suas ponderações. Quando ele me deu a palavra, sem alterar a voz ou o humor, eu disse só o necessário…

– Ô  ‘cadeieiro veio’, fique a vontade no comando dos seus meninos… Vou tentar resolver tudo que estiver ao meu alcance, mas… No momento, o velho hotel está sob o comando do ‘policia veio’, aqui…

Não foi preciso esticar prosa. Nos três meses que pajeei os pouco mais de 80 presos, não tivemos sequer uma rusga. Convivemos como dois velhos amigos, cada um de um lado do rio. Se o velho cadeieiro tinha asas, jamais colocou para fora…

 

 

Dois meses depois que deixei o velho Hotel, A. Franklin, que devia poucos meses de cana à justiça, bateu à porta de São Pedro pedindo hospedagem eterna. Morreu espancado na cela externa sob o pretexto de que estaria abusando dos presos pés-de-couve.

Quem o matou?

Segundo boca pequena, Ronaldo Belo “Tuca Maia” de Paula foi quem o matou… Em troca de R$5 reais!

Curiosamente, Tuca Maia, com tanta bronca, nunca criou raízes na cadeia. A liberdade às vezes pode ser perigosa. Se a burocracia da justiça não consegue cobrar as dividas sociais, os parentes das vitimas, às vezes cobram.

Quem passou pela Augusto Gomes de Medela, entrada do Jardim Noronha, naquela noite fresca de 2004, deve ter notado um vulto sombrio encostado na parede do posto de gasolina. Mas não imaginou que um crime estava prestes a acontecer ali. Não imaginou que aquele vulto estava transbordando de ódio e sede de vingança.

Tuca Maia voltava do Jardim Yara na companhia da inseparável sofredora Eliane, sua mulher. De repente o vulto inquieto sacou o trabuco que trazia embrulhado num jornal, pulou na frente do assassino do filho e mandou bala.

Mas J. Franklin não queria matar. Não é de sua índole. No fundo, no fundo ele só queria entender porque Tuca tirara a vida do seu filho. Justo seu filho, que sobrevivera nas violentas cadeias paulistas, ser morto por um pé-de-couve na sua terra natal e ainda continuar livre!!!  J. só queria ouvir da boca do assassino, os motivos. Ou quem sabe, queria que ele se ajoelhasse e pedisse perdão. Talvez até chorassem juntos! O que J. não podia entender era a arrogância de Tuca… Não podia aceitar que ele continuasse belo e formoso bebendo as mesmas cachaças, fumando os mesmos baseados, promovendo as mesmas bravatas, ameaçando pessoas, enquanto seu filho, que ele esperou longos anos para trazer de volta, nunca mais voltaria para casa. J. Franklin precisava resolver este conflito. Enquanto interrogava o assassino com a arma apontada para ele, Tuca Maia passou sebo nas canelas e virou a esquina da Artur Ribeiro Guimarães. Em poucos segundos chegou à sua casa como um corisco, debaixo de uma saraivada de balas. A raiva, a magoa, a saudade do filho morto, a tristeza, embaçaram a vista, sacudiram o braço e fizeram J. errar todos os tiros… Tuca Maia, que vive desviando da justiça, conseguiu desviar das balas daquele vulto sombrio.

Perdi o contato com o filho de dona Luzia, Mas soube que ele não perdeu o contato com a delinqüência. Só TCO por agressões e ameaças à cara metade, Ronaldo Belo já assinou mais de 10 nos últimos anos. Embora tenha praticado delitos que, somados, poderiam lhe garantir cana pelo resto da torta vida, ele nunca criou raízes no hotel do contribuinte.

Tuca Maia voltou discretamente à minha pagina policial, nesta quarta feira. Plagiando o velho ditado que diz que “pau que nasce torto nunca se direita”, Tuca Maia chegou em casa no inicio da tarde, chapado ou mamado e desceu o borralho na filha M.G. de Paula. Enquanto podia correr a garotinha de 14 anos foi se refugiar nos braços da mãe que estava trabalhando – alguém nesta casa tem que trabalhar, né – Foi para a escola e somente voltou para casa a noite, quando a poeira parecia ter assentado. Parecia…

Tuca continuava mamado tentando arrancar o couro da filha. O genro Eliton Fernandes dos Santos tentou intervir e também acabou entrando na manguara. Sobrou farpas e espinhos até para cara metade, a inseparável Eliane Aparecida Gomes dos Santos, aquela que mesmo quando todos lhe viraram as costas, continuou levando seus chamegos para ele na prisão. Mesmo na presença dos homens da lei, Tuca Maia continuou ameaçando os familiares. Levado para a DP, o velho meliante de 38 anos, sentou-se mais uma vez ao piano e assinou o 129 e o 147 e foi morar no Hotel do Juquinha. Pelo menos por três ou quatro meses Tuca Maia vai dar uma folga para a família… Graças à intrépida senhora Maria da Penha Maia Fernandes e sua Lei 11.340.

… Até quando o gato terá sete vidas

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