A ultima batalha do Campeão

Conheci o Campeão na loja de motores do Camargo, na Tuany Toledo, em 1995. Na época ele ainda se chamava Pity… Devia ter uns cinco ou seis meses de vida. Pity pertencia à sua caçula Aline, que tinha quase a mesma idade proporcional dele, 5 anos. Ela havia ganhado o bicho mal saído das fraldas e deve ter pensando que ele ficaria eternamente seus treze anos do tamanho de filhote.

À medida que o esperto cãozinho ia crescendo, crescia também a preocupação em desfazer-se dele. O Camargo e a Bete, claro, pois se dependesse da Aline ela estaria com ele até seus bigodes pintarem de russo. Talvez até o levasse para Londres, onde mora hoje!

O bicho tinha um habito curioso e interessante. Adorava passear. A guia ficava sob o balcão da loja. Toda vez que a garotinha o convidava para dar uma volta na avenida, ele corria na frente, pegava a guia trazia até ela, esperava que ela pegasse na outra extremidade e saia segurando a guia com a boca, pela rua, belo e empertigado, puxando a garotinha…

Era um cachorro extremamente fiel, afável e educado, mas… Cresceu. No sobradinho do Camargo não havia espaço para ele, embora tivesse espaço de sobra no coração de Aline.

Levei para o sitio. Levei para agradar o amigo, pois eu tinha a cadela Nala, já madura e o molecão Nero. Além do que, como Camargo e família iam sempre ao sitio, Aline não se separaria do seu Pity.

Aconteceu que naquela semana meu vizinho Osvaldo perdeu seu Lulu… – Meus cães sempre se chamaram Nala, Atila, Nero, Califa, Iscar… Os do Osvaldo sempre eram rebatizados de Lulu, Totó, ou Campeão – Na roça, quem uma vez teve um cão, nunca mais deixa de ter um.

Pity caiu como uma luva na vida do Osvaldo. Saiu muito melhor do que a encomenda. Tornou-se seu amigo inseparável. Onde ele ia o cão ia atrás, quero dizer, na frente… correndo aqui e acolá, cheirando um arbusto, espantando um passarinho, levantando  uma perna ou outra e marcando o território, encarando um rival.

Tão logo chegou à casa do Osvaldo Pity foi rebatizado de Campeão. O nome Pity, servia para um cão da cidade, de uma menina. Agora ele era um cachorro brejeiro, da roça… Vigiava a casa, anunciava quem chegava ao portão e mandava esperar lá fora até o dono chegar. Punha para correr qualquer bicho que ameaçasse a segurança do sitio. Ia todo dia para o trabalho com Osvaldo e seu pai, a pé, dois ou três quilômetros. Enquanto eles trabalhavam na lavoura, Campeão fazia uma varredura no local. Espantava e perseguia lebres, ouriços, cobras, lagartos, onças, lobos e outros bichos. Quando se cansava deitava na sombra de uma planta qualquer e dormia o sono dos justos… e fiéis. Só acordava quando sentia o cheirinho de comida. Mas não avançava. Levantava a cabeça, esticava os olhos, quase lambia os beiços e esperava ser servido, no chão, sem frescura. Na volta para casa no final do dia, chegava sempre na frente dos donos. Se eu estivesse na cozinha de sua casa e campeão chegasse arfante e sorridente e estivéssemos falando mal do Osvaldo ou do tio Antonio, tínhamos que mudar de assunto, pois dentro de dois minutos eles entrariam pela varanda.

Eu mesmo fiz um portãozinho de vai-vem na tela da casa dele. Assim ele poderia sair do quintal para dar seus passeios diários sem precisar do Osvaldo.

Campeão se adaptou maravilhosamente bem à vida do campo, mas não esqueceu suas raízes. Toda vez que a antiga dona ia ao sitio e fazia-lhe uma visita, era recebida sempre com sorrisos, trejeitos e abanos de rabo. Comigo então, era uma festa especial!! Parece que ele passava a semana me esperando. Vinha me receber fora do portão, pulando igual uma gazela. Só parava para receber os cafunés. Deitava no chão, rolava, esperneava. Quando terminava o cafuné eu ordenava:

– Pronto, garoto… agora pode ir!

E ele voltava alegre e satisfeito pela mesma portinha de vai-vem que saíra e ia se deitar feliz na sombra da varanda.

A vida do Campeão era uma vida de campeão!!! Mas… mesmo um campeão tem desafetos. Campeão tinha dois no bairro… Um robusto viralatas ascendente da 15ª geração de pastor alemão do Tião do Candido e outro do mesmo porte, porém de ascendência mais próxima, da mesma raça, do Sr. Aleixo. Quando eles se encontravam na estrada era briga na certa. Do nada pegavam no tapa. Quero dizer, na cara, no peito, no pescoço… Não havia como separá-los. Cabo de vassoura, arbustos, chicote, balde d’agua fria… Nada esfriava a fúria dos dois contendores. Iam rolando na poeira, mordendo aqui, sendo mordido ali, latindo, ganindo e só paravam quando a energia ou o fôlego acabava. Passavam uns três dias acabrunhados pelos cantos, lambendo os ferimentos e logo estavam prontos para outra.

Presenciei uma destas brigas. Estávamos num mutirão de ‘conservação de estrada” quando o cão do Aleixo passou acompanhando seu Del Rey. Foi uma das lutas mais ferozes que já vi. Éramos mais de trinta homens de enxada na mão. Só conseguimos apartar a contenda quando alguém teve a feliz idéia de pegá-los pelas duas pernas traseiras e arrastá-los para mais de cem metros um do outro!!!

Esta valentia ainda lhe custaria a vida…!

Era uma ensolarada manhã de domingo, dia de clássico do campeonato brasileiro de 2002. Osvaldo foi ao pesqueiro do Jairo levar um recado e Campeão naturalmente foi na frente alegremente cantando, espantando borboletas, pássaros e grilos estrada poeirenta afora. Na encruzilhada das Onças, eis que ele encontra seu destino. Ali estavam não só o mestiço do Tião do Candido e o do Aleixo, seus inimigos mortais, bem como uma matilha inteira. O momento não poderia ser mais tenso e perigoso!!! Entre eles havia uma cadela viralatas no cio… Existe três momentos em que todos os cães viram bestas, voltam às origens… O pior é este, quando disputam uma fêmea no cio. Ficam incontroláveis… Campeão, jovem, forte, orgulhoso e viril, não sabia o risco que corria e mesmo que soubesse não recuaria. Naturalmente se apresentou à fêmea para fazer sua corte. Quando os dois inimigos o atacaram com ferocidade, os demais também entraram na briga. Só se via o bolo de cachorros rolando na poeira em meio aos latidos e ganidos. No primeiro ímpeto, Osvaldo pegou um bambu na beira da estrada e tentou intervir. Vã esperança!! Vinte homens com porretes e chicotes não dariam conta de separar as feras. Não se voltariam contra ele, não o atacariam deliberadamente, mas acidentes seriam inevitáveis. Iriam brigar até a morte ou enquanto tivessem energias. Fossem apenas cachorros brigando pela fêmea, talvez a briga não fosse tão longe. No entanto, entre os brigões assanhados estavam os dois mestiços, inimigos mortais de Campeão.

Osvaldo assistiu desconsolado por alguns instantes, mas quando viu seu estimado amigo perder as forças e começar a sangrar, não teve coragem de continuar olhando. Deixou o sangrento campo de guerra, totalmente impotente… Banhado em lagrimas.

Quando cheguei à sua casa, por volta de quatro da tarde, recebi a triste noticia. Campeão havia lutado bravamente como sempre, mas… havia perdido sua ultima batalha. Osvaldo não tivera coragem nem de resgatar seu corpo para os funerais.

O jogo já ia começar. Sentados na sala diante do empolgante Atlético x Coritiba, pareceu-me ver um vulto entre os arbustos perto da Igreja. Talvez fosse um gato se esgueirando ou quem sabe uma galinha…

Continuamos concentrados no jogo… No intervalo do clássico, quando a tensão baixou, ouvimos o balançar da cerca da portinha de vai-vem seguido de um gemido… Levantei no ato. Aquele portão que eu fizera só era usado pelo Campeão!

Era ele! Ou o que restara dele. Na verdade estava inteiro, mas, queijo suíço tinha menos furos…

Campeão levara algumas horas rastejando da encruzilhada das Onças até a casa do dono. Desde que passara na frente da igreja, levara mais de vinte minutos para rastejar os últimos vinte metros até o portão. Tomei-o nos braços e o coloquei no alpendre, no lugar que ele costumava cochilar nas tardes domingueiras enquanto assistíamos o futebol. Não tinha mais sangue. Mesmo que colocássemos, sairia pelos incontáveis furos. Não havia nada que pudéssemos fazer a não ser lamentar. Quando o jogo terminou, Campeão já não respirava mais. Ao menos morrera na casa do dono.

Campeão deixou descendência. Um filho e um neto, mas nenhum se equiparou a ele em educação, coragem, alegria e fidelidade.

Em 98 adquirimos o habito de acampar nas serras de Congonhal, uma vez por ano, em noites de lua cheia. É o que chamamos de ‘pouso no mato’. Distante da civilização, a poucos metros de matas fechadas, estamos sujeitos a visitas de lobos, onças, cachorros do mato, cobras e outros bichos nas geladas madrugadas de lua prateada. Era uma aventura impar, porém arriscada… Não para quem tinha a companhia do mateiro Campeão. Bem alimentado com restos de frango da ceia, Campeão passava a noite toda em volta das brasas da fogueira. Em ‘rosquinha’, fingia dormir, mas estava sempre atento a qualquer ruído ou cheiro que se aproximava. Diversas vezes acordávamos no meio da madrugada com seus latidos e ainda podíamos ver sob a lua branca, o lobo pardo se afastando em disparada em meio ao capinzal, perseguido pelo valente e fiel cão de guarda. Depois que ele morreu, nunca mais tivemos um pouso tão seguro.

Dez anos depois ainda é possível ver o esbelto e faceiro cão malhado levando sua pequena dona pela coleira para passear… Correndo e passando pela portinhola até se deitar à minha frente para receber os cafunés … Ou latindo forte e afugentando os lobos nas serras de Congonhal. As imagens do fiel amigo malhado ficaram gravadas para sempre na memória…

 

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