Ele tem 77 anos de idade. Estabeleceu-se como condutor de veiculo de tração animal em 1958 e apesar de há muito ter criado os seis filhos e conquistado a justa aposentadoria, continua conduzindo sua charrete, atualmente puxada pela dócil e pacata eguinha branca com nome de Rainha. Há mais de cinquanta anos transportando comerciantes do mercado municipal, donas de casas com suas sacolas de verduras e legumes e turistas saudosistas, João Barreiro tem muita historia de ‘taxista’ para contar.
– Meu pai era charreteiro… Eu já nasci charreteiro. Ainda moloque comecei trabalhar com charrete. Tive ponto aqui perto do mercado, na Dr. Lisboa, depois voltei para cá. Na época a cidade tinha cerca de 3o mil habitantes e mais de 60 charretes – conta com saudade o velho charreteiro.
– O que você viu que mais te chamou a atenção nestes 50 anos?
– Conversei até com assombração… Certa vez eu estava voltando para casa, era umas onze horas da noite, quando dobrei a Remonta para chegar na Vendinha, um homem de branco emparelhou com o varal da charrete e continuou correndo ao lado do cavalo, a galope. Ele estava vestido de branco, de chapéu… Eu conhecia ele. Era o Helio, gente boa… tinha morrido há vários anos. Como ele não saia de perto da charrete eu perguntei: “ Ô Helio, você está precisando de reza? Ele não respondeu mas largou o varal da charrete e subiu num barranco na beira da estrada. Eu rezei o Pai Nosso e o Salve Rainha… De repente ele foi evaporando, virou uma pomba branca e saiu voando… Nunca mais vi! – Conta João, como se tivesse ‘vendo’ o vulto branco ao lado da charrete, naquele longínquo inicio de anos 60.
– Outra vez eu estava levando uma senhora para casa, no São João, com uma menina de uns seis anos no colo. Elas estavam voltando do medico… De repente a menina deu um suspiro e amoleceu no colo da mãe. Parou de respirar. Morreu na minha charrete!
Alguns anos depois ele se viu envolvido em mais uma historia tétrica… de charreteiro!
– Eu tava aqui no ponto, perto da oficina do Toquinha, quando o oleiro Pedro Olegário chegou e pediu para levar ele no Aterrado para socorrer um empregado dele, que trabalhava no olaria. Ali só havia a avenida principal, sem calçamento e uma meia dúzia de beco que acabava de repente na vargem. Antes nós paramos na funeraria Ferraciolli e ele comprou um caixão!!! Depois nós paramos num barzinho perto da ponte, ele pediu duas pingas, bebeu uma e ofereceu pra mim beber também. “Eu não costumo beber em serviço, falei pra ele. Mas ele insistiu… Beba, você vai precisar”!! O Aterrado estava todo alagado. A enchente estava começando baixar. No olaria chegamos com a água pela cintura… Com muito jeito colocamos o morto no caixão. Fazia 8 dias que ele tinha morrido, mas a água gelada conservou seu corpo… Nãoa tinha cheiro – ruim – nenhum. O difícil foi trocar a roupa e lavar ele… Estava todo duro. Aí eu lembrei de uma coisa que meu pai me contava… Se você precisar mexer com um morto, converse com ele, peça licença… Eu comecei conversar, ele foi amolecendo, ficou mole… Eu e o ‘seu’ Pedro demos banho e levamos ele para o necrotério, na charrete.
João Barreiro passou mais de cinqüenta anos conduzindo a trote lento seu veiculo… Poderia passar mais cinqüenta, com os olhos brilhantes e marejados contando suas historias na esquina do centenário mercado na Duque de Caxias!
– Hoje eu trabalho poucas horas por dia. Um carreto custa entre 7 e 10 reais. Chego aqui onze horas da manha e cinco, cinco meia vou embora tratar da Rainha. Se ela faz necessidade aqui no ponto, na mesma hora eu recolho o estrume. Nem dá cheiro. Ainda tem fregueses que pede para levar em casa, para passear pela cidade. O Paulinho Toureiro – morto há vários anos – foi meu freguês muitos anos. Mas o bom mesmo era quando a zona – boemia – era ali na David Campista! As madames – prostitutas – toda tarde vinha no mercado e depois nós íamos levar elas para casa. As vezes a gente saia passeando pela cidade. Elas gostavam de andar de charrete e pagavam bem…
– Qual a maior alegria?
– Tudo era alegria… Acho que a maior foi criar meus filhos tudo honesto, com meu trabalho e ter tanta amizade…
– … E a maior tristeza?
– Não tem. A vida é muito boa… – Ele responde sem pensar mas desvia os olhos de mim, olha para o vazio e acrescenta:
– Acho que a maior tristeza é que isso está acabando. Já tentaram acabar de uma vez com as charretes. Mudaram nós de lugar muitas vezes, fizeram pressão… Eles acham que nós estamos enfeiando e sujando a cidade! Nas cidades turísticas como São Lourenço, Poços de Caldas, ainda tem um tanto de charrete. As crianças de hoje não sabem o que é isso… – E com uma pitada de revolta acrescenta:
– Charrete faz parte da historia de Pouso Alegre, é tradição… não pode acabar!
Mas está acabando!
Nos ultimos dez anos apenas João Barreiro de 75 e Tião de Melo, de 62 anos, estão em atividade, preservando a tradição. Ele conviveu com o pai também charreteiro Chico Barreiro, Dito Poteiro, Sebastião Daniel, Pé-de-Vento, o charreteiro das madames, todo arrumadinho, perfumado e de óculos escuros, o Guarda Louças, aquele que levou o corpo de Jacira, quando seu namorado Jesus Damasceno a matou, dando origem ao Beco do Crime e tantos outros. A maioria já foi se encontrar com o “Helio da Remonta” a muito tempo!
A tradição das charretes de Pouso Alegre está por um fio… ou dois. Há mais de dez anos nenhum novo charreteiro se estabeleceu na praça…
Recentemente o prédio do antigo fórum na Praça Senador Jose Bento foi tombado pelo Patrimônio Histórico e Cultural. O centenário Mercado Municipal também acaba de ser tombado pelo mesmo instituto, como Patrimônio Imaterial do Município.
Este é um bom momento para que a Secretaria Municipal de Cultura valorize e incentive os dois últimos charreteiros do municipio, João Barreiro e Tião de Melo e incentive novos charreteiros à continuar a centenária tradição das cherretes.
Se nada for feito agora para preservar a tradição, em poucos anos charretes e charreteiros só vão existir na memória e aqui… no blog do Airton Chips.
thanks for sharing such wonderful information…keep posting more such articles…http://www.descontoaocubo.net
O pai do Hélio era funcionário da Remonta (Sr. José Inácio) e vizinho de meu pai (Itamar) e a morte do Hélio foi por suicídio.
Cidamar
MEU AVÔ PATERNO,SEU ZÉ CAIXA D\’AGUA LÁ DO SANTO ANTONIO, TBEM FOI CHARRETEIRO MUITOS ANOS,MEU PAI,O PAULINHO BORRACHEIRO OU CAIXA D\’AGUA COMO MUITOS O CONHECEM, SEMPRE CONTA HISTORIAS SOBRE AQUELA ÉPOCA E DE MEU AVÔ.
Olá Miriam, acho que conheço seu pai e conheci seu avô…!
Tempo bom aquele das charretes! Vivi parte daquele tempo bucólico, onde quase todo mundo era honesto, solidario e puro… Deixou saudade…!
Abraços.
CHIPS,DESCOBRI A POUCOS DIAS QUE O FAMOSO CHARRETEIRO PÉ DE VENTO ERA MEU PARENTE TBEM,PARECE QUE IRMÃO DO MEU BISAVÔ DITO PINTO QUE MOROU MUITOS ANOS NA ANTIGA RINHA,VC LEMBRA DELES?
ABRAÇOS.
Olá Miriam,
Conheci muito o charreteiro Pé de Vento, sempre bem trajado com seu impecável óculos escuros! Existe outra particularidade a respeito dele que talvez você não conheça… Foi ele quem levou a menina Jacira, assassinada pelo namorado Jesus Damasceno no Beco do Crime para o IML, em sua charrete, no Natal de 1955!
Leia : \”A verdadeira historia do Beco do Crime\”.
Abraços.