Quanto mais corria… mais os fantasmas se aproximavam
Juninho era filho único do casal Alcides e Marileia. Dono de um sitio ao pé da serra do cajuru, Alcides queria que o menino crescesse logo para ajudá-lo na lida com o gado leiteiro e as plantações. Marileia queria que o menino fosse pra na cidade, estudar pra ‘adevogado’! Como sempre, o desejo de Marileia venceu! Ao concluir o ginasial na cidade vizinha, Juquinha pegou o Gardenia e foi estudar na cidade grande. Nas férias voltava para visitar os pais, mas ficava dois ou três dias apenas. Mal descia ao curral. Não tinha jeito para a vida rural. Perdeu todo o contato com as coisas da terra. Ao final do Colegial, antes de ir para a faculdade, ele finalmente resolveu passar três semanas no sitio ao pé da serra do cajuru.
No final da primeira semana no sítio Juninho acabou arrumando um rabo de saia… Uma linda roceirinha que morava na entrada do sitio, a cerca de um quilometro da casa dos pais. No sábado à noite foi à casa dela, namorar. Acostumado com o ritmo da cidade, voltou tarde para casa.
Raspava meia noite quando se despediu da moreninha no alpendre da casa dela e pegou a estrada de volta para casa, a pé. Era noite de lua cheia. A noite estava morna e serena com algumas nuvens esparsas no céu. Pra quem vive na roça, parecia um dia. Podia-se identificar uma mula de um cavalo só pelo tamanho da orelha no pasto na beira da estrada. Não para Juquinha! Acostumado com as luzes brancas ou amarelas – e as vezes vermelhas – da cidade, para ele ali estava escuro. Os vultos de arvores ou mourões mais distantes da estrada lhe pareciam fantasmagóricos. Não via a hora de chegar em casa. De vez em quando uma brisa leve movimentava as nuvens encobrindo a luz da lua. Nestes momentos qualquer vulto imóvel próximo à estrada parecia assustador. Arrependeu-se de ter ido a pé para a casa da namoradinha. Principalmente de ter ficado até tão tarde… até a meia noite. Quando pequenino seu pai costumava contar causos de assombração. Era sempre depois da meia noite que os fantasmas saiam para assombrar os incautos.
Já havia caminhado quase metade do trajeto quando percebeu um movimento no pasto, à direita. Alguém estava acenando para ele. Arrepiou-se até a raiz dos cabelos! Fingiu que não era com ele e apertou o passo! Quando olhou novamente o aceno havia aumentado! Agora eram acenos coletivos! Parecia que eram várias pessoas, todas pálidas, acenando ao mesmo tempo. Acelerou mais o passo! Uma lufada morna de vento espatifou seus cabelos. Tornou a olhar na direção dos acenos. As figuras fantasmagóricas se agitaram! Pareciam se curvar para acenar… Pareciam dizer: “Espere por nós”!
Juquinha andou o mais rápido que pode… A brisa morna aumentou… os fantasmas acenaram mais forte… Juquinha desviou o olhar… – o que os olhos não veem o coração não sente, pensou. Começou ouvir passos tum-tum.tum no cascalho duro da estrada. – “Meu Deus! Estão vindo atras de mim”! – apavorou.
Disparou a correr. Piorou!
Quanto mais corria mais os fantasmas se aproximavam! O tum-tum-tum-tum parecia fungar no seu cangote! Desesperou! Felizmente já estava perto de casa.
Alcides acordou com gritos e socos na porta!
– Pai, mãe, socorro… me acudam! – gritava o adolescentão esmurrando desesperadamente a porta.
– O que aconteceu meu filho? – quis saber Alcides, quase atropelado pelo filho em desespero.
Juninho jogou-se arfante para dentro de casa gritando:
– Fecha a porta, pai… eles estão chegando! Não deixa eles entrarem!
Sem entender, Alcides fechou a porta. Tentou aguçar os ouvidos. Não escutou nada. Interpelou o filho.
– Voce ainda está ‘ouvindo eles’?
– Sim. Eles continuam correndo atras de mim. Não abra a porta!
Alcides puxou levemente o lóbulo inferior para frente, formando uma pequena concha com a orelha, para ver se ouvia alguma coisa. Silencio lá fora. Resolveu sair para conferir…
Apesar de estar acostumado com a noite, com a roça, com as coisas da roça, o que viu era surpreendente! Fantástico!
O vento havia dispersado as poucas nuvens negras. A lua cheia, à pino, reinava sozinha no céu e espalhava todo seu esplendor sobre o sítio. Podia-se ver com nitidez as restingas, os capões de mato, o jacarandá solitário no meio do pasto, à esquerda da casa o milharal pendoado balançando ao sabor da leve brisa… Parecia dia. Era possível distinguir um gato pardo de um gambá a cem metros de distância no meio do pasto, tamanha a claridade. Tudo no mais completo silencio. Podia se ouvir a respiração dos bezerros dormindo no curral a poucos metros da casa. Alcides coçou a testa enrugada precocemente pelos movimentos de proteger os olhos do sol, abriu os braços como quem pergunta “cadê a assombração”? e voltou para o interior da casa. Juninho estava acabando de tomar a segunda caneca de água com açúcar para se refazer do susto.
– E então filho? Me conta como foi que essa assombração apareceu.
Sentado no fundo do sofá, agarrado no braço da mae, ainda ofegante, Juninho contou rapidamente, com detalhes, o acontecido. Ao final o pai perguntou.
– E agora? Ainda está ouvindo os fantasmas?
– Só um pouquinho… bem longe. Acho que você conseguiu expulsá-los. Obrigado. – disse o garoto se levantando para abraçar o pai.
Ao retribuir o abraço do filho Alcides sentiu seu corpo quente, seu coração batendo ainda acelerado pela corrida inesperada, e esboçou um ligeiro sorriso para seus próprios pensamentos. Havia muito tempo que os fantasmas não apareciam por ali – pensou.
No domingo pela manhã Juninho levantou tarde, como sempre. Estava terminando o café quando Alcides entrou na cozinha e o intimou.
– Filho, venha comigo. Preciso te mostrar uma coisa na estrada na qual você passou de madrugada.
Juninho teve um pequeno sobressalto, mas nada disse. Seguiu o pai. Menos de um quilômetro depois pararam na beira da estradinha amarela de cascalho fino. Alcides apoiou o pé no fio de arame de baixo, apoiou os dois braços no fio de cima, olhou para a roça de milho pendoada a poucos metros da estrada e perguntou:
– Foi aqui que você viu os fantasmas?
Juninho olhou intrigado para o pai; para o milharal; tornou a olhar para o pai e disparou:
– Como é que você sabe que foi aqui?
Alcides baixou a cabeça, salivou, procurou as palavras e falou pausadamente:
– Filho… O homem da roça está acostumado com fantasmas. O homem da roça, que presta atenção no que tem à sua volta, ouve e vê muito fantasma. Principalmente da meia noite por diante…
Juninho continuou olhando para o pai, sem arriscar uma pergunta. Alcides continuou:
– Está vendo os pendões do milharal?
– O que são pendões?!
– São as flores… que desabrocham na extremidade do pé de milho. Este milharal, que foi plantado em agosto, está florido… cheio de pendões amarelos, dourados, perfumados, leves… Tão leves que qualquer ventinho consegue sacudi-los pra lá e pra cá…
– Espere!… Voce não está querendo me dizer que eram os pendões do milharal que ‘acenavam’ pra mim ontem à meia noite?!
Alcides olhou de volta para o tenro milharal, olhou para o chão, esboçou um sorriso, juntou os lábios e balançou levemente a cabeça na vertical como quem concorda. Juninho continuou incrédulo, como se estivesse vendo, naquele momento, um fantasma:
– Mas e os passos que eu ouvi correndo atras de mim?…
– Os passos não, filho. O barulho. O ‘tum-tum-tum’ que você ouviu era o seu próprio coração acelerado… quanto mais você corria, mais ligeiro o coração batia…
Juninho engoliu em seco. Desviou o olhar do pai, envergonhado.
No pequeno percurso de volta para casa, tentando descochar a vergonha do filho, Alcides puxou assunto sobre a faculdade… e concluiu para si mesmo: Juninho tinha jeito para ‘adevogado’.