Moravam numa casa simples no meio da subida da rua 09. Não havia muros na frente e nem nos fundos. Nas laterais os muros dos vizinhos serviam de divisa. A primeira vez que fui à casa deles levar-lhes uma intimação, mesmo que fosse necessário entregar-lhe pessoalmente, teria que entregar à sua avó, pois antes de descer da viatura ouvi o ranger de um sofá velho e o tropel de alguém correndo em direção ao quintal. Dona Bê ligeiramente confusa e aborrecida atendeu a porta e perguntou em tom desacorçoado; “Pra quem é desta vez?”. O ‘convite’ da Delegacia de Orientação a Menores, para esclarecer mais um furto na vizinhança, era para Zinho e Fonfon, pois a vitima não tinha certeza qual era qual.
Foi assim que conheci W. e E.R. Pereira, os irmãos de vida desregrada e curta, no charmoso bairro conhecido por “Nem”… nem Pouso Alegre, nem santa Rita. Construído nos anos 90 com toda infra-estrutura, com ruas largas, asfaltadas, bem iluminadas, bem arborizado, escola municipal, moderna, igrejas, à margem de uma rodovia federal, agora com moderno trevo de acesso – falta apenas um campo de futebol e um ginásio poliesportivo – supermercados e muitos botecos, o bairro Cidade Jardim tem tudo a ver com o nome e faz inveja a dezenas de cidades do Estado de Minas em qualidade de vida e bem estar social. Com centenas de famílias honradas, honestas, ordeiras e cumpridoras dos seus deveres, que vieram realizar seus sonhos da casa própria e ter um cantinho para descansar após o labor, vieram também os desocupados, dissimulados, gatunos sorrateiros, larápios, traficantes, aviõezinhos e nóias para atormentar a vida dos pacatos cidadãos.
Em 2004, dois deles conheceram o fim trágico da maioria dos adolescentes que enveredam pelas sendas do crime, e escreveram uma página negra na jovem história do Cidade Jardim. Os garotos, na flor da idade, provaram do próprio veneno que espalharam pelas ruas do bairro desde a puberdade. Zinho, 18 e Fonfon, 19 anos, eram figurinhas carimbadas na Delegacia de Orientação a Menores da 13ª DRSP. Furtos, roubos, brigas, ameaças, uso de drogas, tiros em via publica e até estupro faziam parte de seus currículos desde os treze anos. Embora sem estabilidade financeira, sempre gostaram de enxada de cabo longo… para ficarem longe do trabalho. Suas ocupações eram a cama, sempre nas quebradas da noite depois que as ruas ficavam desertas, sopas em pratos fundos, sombra e água fresca, comida quente e chamego, e “o que é seu é meu… e sai de baixo senão leva porrada”. Os irmãos viviam sob a tutela da avó, de expressão ranzinza e amarga e de um tio quarentão que parecia ter mais o que fazer do que cuidar de sobrinhos mal educados. Vieram de São Paulo. Os pais, nunca soubemos ao certo que destino levaram. Más línguas diziam que eram separados, outros diziam que haviam morrido no crime na capital paulista e outros afirmavam que tanto o pai quanto a mãe estavam hospedados em hotéis do contribuinteem São Paulo, por roubos e trafico de drogas. A avó que sempre acompanhava os pequenos meliantes nas audiências no gabinete da delegada Maria Inês Xavier, se limitava a dizer – com poucas palavras – que o filho e a nora estavam trabalhandoem São Paulo.Aliás, assistimos a metamorfose do humor e comportamento de dona Bê. No inicio ela comparecia às audiências, recebia os puxões de orelha dos netos, tentava explicar, justificar… prometia mais rigor e vigilância na educação dos pupilos e quase pedia desculpas pelos mesmos. Foi se transformando. Mais adiante entrava muda e saia calada do gabinete da delegada. Limitava-se ouvir e concordar com acenos de cabeça. Já estava desacorçoada com os netos delinqüentes e desistira de fazer qualquer coisa para muda-los. Para transformá-los em homens de bem. Toda semana um novo B.O. era registrado pela PM contra os irmãos Zinho e Fonfon. Se não conseguira torcer os netinhos enquanto ainda eram pepinos, agora não torceria mais. Alguém os quebraria…..
No dia 12 de julho Zinho completaria 18 anos. Idade crucial para os meliantes. A partir daí, se caísse de novo nas malhas da lei, não teria choro nem vela e nem fita amarela, seria cana. Depois dos 18 não tem mais ‘procedimento especial de menores’, não tem mais audiência com o promotor da infância e da juventude, nem com o juiz apenas para receber um ‘sabão’ e ‘passar a mão na cabeça’. A partir dos dezoito todo cidadão brasileiro é imputável, responde criminalmente pelos seus crimes – em tese, pelos menos. Talvez por isso Zinho tenha sumido. Desde o dia 10 ele não aparecia em casa para as atividades habituais de comer, beber, dormir… e dizer palavrões, grosserias e ameaças a quem quer que lhe fizesse alguma ‘cobrança’, a começar pela avó. No principio a família sentiu certo alivio. Não tinha policia e nem vizinhos aborrecidos batendo à sua porta. Até porque o pequeno meliante não tinha compromisso com nada e ausentar-se de casa por dois ou três dias sem dar satisfação era rotina. Mas com o passar dos dias os familiares, especialmente o parceiro de feiúra, Fonfon, que sabia muito bem o mato em que lenhava, começou a preocupar-se. Teria Zinho sido preso? Será que algum dos seus muitos desafetos teria ‘acertado seus passos’? Teria ele entrado em conflito existencial devido a maioridade ou se arrependido dos seus crimes e se pendurado na ponta de uma corda num galho de uma arvore? Quem sabe tivesse arrumado um emprego como um cidadão mortal comum, temente a Deus e quisesse fazer uma surpresa para a velha avó, aparecendo em grande estilo no final do mês, com o salário no bolso e um abraço no rosto para dizer; “Vó, criei juízo. Agora sou um homem de verdade e vou te dar um pouco de alegria e conforto”!!! Será??? Ou quem sabe uma mulatinha qualquer tivesse se enrabichado com ele e o chamado na chincha…? Dizem que a mulher poe o homem nos trilhos… Como as ultimas conjecturas eram pouco prováveis, o melhor mesmo era procurá-lo, ainda que sua ausência fizesse pouca faltaem casa. Afinal, se ele não se importava com ninguém, havia quem se importasse com ele. Passaram a procurá-lo. Delegacia de Policia, hospitais, casa de pseudo-amigos, de inimigos, IML…
Eu estava licenciado do trabalho policial e por isso não sabia do desaparecimento do garoto que vira crescer. Da janela do escritório do jornal ao lado da delegacia vi o perito Luiz Cláudio manobrando a viatura, saindo para cumprir mais uma missão. “Encontraram um corpo boiando no Rio Sapucaí, perto da Alpargatas”, disse ele. Aquela era a noticia mais quente do dia. Parei tudo e peguei carona na viatura. Ao passar por uma curva do rio, numa ilha, um canoeiro havia avistado um corpo em posição de gorila enroscado numa galhada. No barco do pescador fomos até o cadáver que boiava plácido, só de bermuda e já bastante decomposto nas águas sujas do rio. Viramo-lo apenas para as fotografias, pois era quase impossível reconhece-lo e a única lesão que pudemos constatar antes do estomago sair pela boca, foi um pequeno orifício no meio da testa. Mais tarde o legista Vitor Romeiro confirmou que a causa ‘mortis’ fora o único tiro à queima roupa, típico de execução, cuja marca vimos ainda no rio. Noticia ruim viaja no lombo do vento na velocidade da luz e poucas horas depois os familiares de Zinho chegaram ao IML para ver se o corpo do rio era dele. Era.
As investigações dos colegas da Homicídios esclareceram rapidamente o crime do rio. Mas isso somente aconteceu depois do enterro de Fonfon. Excetuando a avó e os tios, e aquelas pessoas que tentavam incutir alguma coisa de frutífera na cabeça e no coração dos irmãos Zinho e Fonfon, todas as demais pessoas do seu convívio eram do submundo do crime. Fonfon, o meliante mais velho, 19 anos, não tardou a descobrir o assassino do seu irmão. Mas Bandido que é bandido não entrega o algoz para policia… ele mesmo cobra a divida. Mal enterrou o irmão no sábado, Fonfom tratou de ir à forra. Passou a ameaçar o suposto assassino, por telefone e foi pessoalmente à sua casa ali mesmo no bairro. Não morreu no dia do enterro do irmão porque não o encontrouem casa. Namanha seguinte, um domingo ensolarado, foi esperar o algoz do irmão na esquina da rua 10 com 24. Quando Lagartixa e Eraldo passaram pilotando uma Brasília em direção ao campo do Chaves, pulou à sua frente e começou o discurso. Quando quis sacar a arma já era tarde. Foi lento. Recebeu um tiro nas axilas e caiu no asfalto ainda fresco da manhã. Para ter certeza de que não teria aborrecimentos, Lagartixa desceu da Brasília, se aproximou do corpo agonizante e atirou na cabeça, mesmo ‘modus matandi’ do irmão dele uma semana antes. Zinho sepultado no sábado, Fonfon morto no domingo e sepultado na segunda.
O assassinato do menino no rio fora mais covarde e glamouroso. Enquanto o bairro crescia em população e noticias policiais, os irmãos órfãos cresciam em malfeitorias e maldades. Aos 18 e 19 anos Zinho e Fonfon eram os lideres do crime no Cidade Jardim. Liderança é uma posição sempre cobiçada. No caso do crime, para assumi-la, basta eliminar o líder. Além disso, os franzinos irmãos, o que tinham de truculência verbal, lhes faltavaem inteligência. Eramburrinhos, desonestos e presunçosos demais. Davam bandeira e podiam comprometer a honra dos criminosos do bairro. O melhor era eliminá-los. Isso seria brincadeira de bandido. E foi brincando que Zinho morreu uma semana antes do irmão. Foi com um grupo de amigos – da onça – nadar no rio Sapucaí, há duzentos metros abaixo da BR que corta o bairro, sem saber que sua morte já estava arranjada. Em dado momento, quando saiu da água, o desafeto o esperava no barranco e o mandou de volta. Quando ele ficou de pé, a meio metro dele Lagartixa apontou a 9mm e puxou o gatilho. Nem precisou jogá-lo ao rio. O impacto da bala fez o serviço. Enquanto o grupo de meliantes voltava para o bairro, de corpo e alma lavada, sem peso na consciência, o corpo franzino e desnudo do jovem Zinho ‘que vi crescer dando-lhe conselhos nunca ouvidos’, descia lentamente as águas barrentas do velho Sapucaí até enroscar-se numa galhada na curva perto da Alpargatas. Seu aniversario de 18 anos não teve bolo e nem o tradicional parabéns. Foi comemorado em silencio, por lambaris, piabas e mandis, ali naquela curva deserta de rio, margeando uma pequena ilha. Semelhantemente à historia dos irmãos Mazinho, assassinados por Max Peter em 2000 no Chapadão, a paz voltou ao Cidade jardim. Depois da morte precoce dos irmãos R.Pereira, o jovem bairro sumiu das paginas policiais. Dona Bê também pode reencontrar a paz…
Airton!
Que fim levou o tal do Lagartixa?
Sdç!!
Paulo,
O Lagartixa continuiou no caminho do crime, especialmente o da droga. Foi preso recentemente com no trafico e está hospedado no Hotel do Juquinha. Pelo assassinato dos irmãos ele ainda não foi condenado.
Paulo, complementando a informação, o Lagartixa está preso desde o dia 14 de outubro do ano passado. Ele era um dos 25 membros da “quadrilha da Mara” presa pela policia civil de Pouso Alegre naquela ocasião.
Abraços.