O homem no colo da figueira!
Outro dia, depois de registrar os últimos lampejos do sol se deitando atrás do Morro das Onças, me despedi da bucólica vista da varanda do sítio, atrás da igreja, e rumei para casa. Ao ganhar a estrada vicinal, deserta àquela hora, parei por uns instantes olhando para o passado. Levado pela nostalgia, guinei à esquerda e segui na direção contraria da cidade, na direção ao interior do bairro dos Coutinhos. Segui lentamente, sem rumo, ouvindo uma ave aqui, outra ali, procurando um ninho para dormir, até que cheguei à encruzilhada da Tiririca! Eu pretendia ia mais adiante, quem sabe até o Canto do Mato conversar um pouco com o passado, mas, uma cena na encruzilhada da Tiririca me chamou a atenção. Já no crepúsculo da noite que turvava tudo à sua volta, vi a figura de um homem sentado no colo de uma figueira. No colo mesmo! As raízes rasas da jovem figueira formavam uma poltrona natural. O homem, grande, forte e sem camisa, usava apenas a calça ainda suja de terra da lida desde as primeiras horas do dia, arregaçada até as canelas. Na cabeça ostentava o velho e inseparável chapéu de palha de aba larga. Era o primo Geraldo. Parei para um centavo de prosa. A conversa esticou. Passou de um tostão, e logo a noite nos transformou em sombras na encruzilhada.
Geraldo “Pão” havia se levantado, como de hábito, no momento em que a corruíra, pulando de galho em galho na roseira abaixo da sua janela, começou a reclamar da claridade… por volta de cinco da manhã! Levantou-se, acendeu o fogão à lenha, fez o café, tratou das galinhas que já ameaçavam invadir a varanda em busca de milho, ajeitou algumas coisas no terreiro, juntou umas ferramentas de esticar cerca, colocou no embornal e voltou pra cozinha. Tomou uma caneca de café com leite, comeu bolo de fubá, acendeu o cigarro de palha e saiu empurrando a bicicleta morro acima em direção às Areias… Tinha que tratar de um gado de corte e curar bicheiras nalguns garrotes no mesmo pasto. Nesse dia não levou marmita, pois voltaria mais cedo para outra tarefa no lado oposto do bairro. Algumas horas depois voltou para casa, almoçou, tirou uma pestana na varanda da casa, fumou mais um cigarro, pegou o embornal de ferramentas e seguiu para o Córrego do Sapo. Passou o resto do dia consertando cerca de arame farpado.
Ao chegar em casa junto com o pôr do sol, bebeu uma caneca d’água, bebeu café morno na mesma caneca, pegou uma espiga de milho no paiol, descascou, debulhou, assanhou as galinhas, colocou a palha na algibeira e foi para a encruzilhada, se despedir de mais um dia.
Essa é a rotina do Geraldo “Pão”! Faz isso desde molecão… nos últimos cinquenta anos. Geraldo mora no que é seu, cercado de uma dúzia de galinhas, dois galos carijós e cinco cachorros de porte médio, todos adotados nas imediações.
Na juventude Geraldo frequentava a “Arvinha”, ponto de encontro dos homens do bairro, para atualizar os fatos do dia a dia. Por uns tempos frequentou também a “Vendinha do Vilino”, onde além do bate papo com os parentes – todos no bairro são parentes – tomava uns goles da cangibrina. Desde que se casou, há mais de trinta anos, o lazer mais longe que busca é na beira da estrada por onde passam poucos conhecidos…
Anos atrás, seguindo os passos da esposa, – é sempre assim: os homens vão aonde suas mulheres querem ir – mudou-se para Congonhal. Casa boa, moderna, bem localizada, cheia de plantas no quintal, invadindo a varanda. Faltava espaço para os bichos. Toda manhã depois do café com leite e bolo de fubá Geraldo montava uma bicicleta e ia trabalhar… na roça! nos Coutinhos e imediações, nos mesmos afazeres de sempre: consertar cerca, curar bicheiras de gado, roçar um pedaço de pasto…
Mais de uma década depois, levado de volta pela esposa, voltou a morar na roça… No bairro dos Coutinhos, há poucos metros do local onde nasceu, onde pode despertar toda manhã com o cantar do galo carijó.
À direita da encruzilhada da Tiririca, seguindo para a Grota Funda, tem poucos moradores. À esquerda são dezenas de casas e de moradores. A maioria é de descendentes de antigos fazendeiros. No entanto, hoje são urbanos, tem hábitos urbanos, trabalham na cidade e ‘apenas moram’ ali. Quase todos passam de carro, de moto, e nem notam a presença do homem sentado no colo da figueira! Ninguém tem tempo para conversar… para um centavo de prosa. E nem assunto. Todos têm uma mulher e dois ou três filhos em casa e uma tv na sala… ligada na novela!
Há poucos metros da encruzilhada, na beira da estrada, uma bela e moderna casa com alpendre na frente e varanda nos fundos, cercada de horta, galinheiro e pomar, sua esposa – quituteira de mão cheia – está sentada diante de uma moderna TV 40 polegadas vendo novela. Ele, no entanto, prefere estar ali, na beira da estrada, até o sol se deitar atrás do pasto do Zé Gominho, ouvir o canto triste dos grilos, ver a noite estender lentamente seu manto negro e esconder até as sombras. Se tiver sorte pode ser que o curiango, curioso, pouse a poucos metros dele e caminhe apressado, fingindo medo, na estradinha poeirenta até levantar voo novamente!
Entrado na casa dos setenta, Geraldo talvez o último homem da roça, tira da roça o seu sustento. Sustento para o corpo… para a alma!
Geraldo precisa ver o sol nascer lá no espigão…
Precisa mexer com bichos… – vaca, boi, cavalo, porco, galinhas, cachorros, gatos, paca, tatu. As vezes precisa dar um chega pra lá numa jararaca… ou pisar no pescoço de uma cascavel…
Geraldo precisa limpar o suor da testa com as costas da mão, sentar num toco qualquer, empurrar o chapelão para trás, sacar da cinta o canivete de cabo de osso, picar o fumo de rolo e fazer ele mesmo o seu cigarro de palha…
Por isso fica ali… até a noite esconder sua figura no colo da figueira. Até sua presença ser notada apenas pela luz tênue do seu cigarro de palha, qual vaga-lume no final do outono, e, talvez, pelo cheiro adocicado do fumo de rolo…
Geraldo precisa da poesia do entardecer… do frescor da noite… do cheiro da poeira da estrada… de alguém para conversar…
As pessoas pouco vão à casa dele… e ele pouco vai à casa delas. Mas pode ser que alguém passe a pé na estrada. Por isso ele senta no colo da figueira no fim da tarde, para ver as pessoas passarem, e quem sabe, trocar um dedinho, ao menos um dedinho de prosa, mesmo que seja apenas um:
– “Tarde”…
– “Noite”…
– “Bão”…
Esses são os curtos diálogos que travam, entre uma tragada e outra do cheiroso cigarro de palha, na beira da estrada.
Nosso encontro ali na encruzilhada foi uma mera casualidade. Depois de três anos morando em Belo Horizonte, absorto em saudosas lembranças, eu andava a esmo pela estrada da minha infância até esbarrar no raro espécime! Geraldo Pão ganhou o dia – e eu também! Conversamos até as estrelas dominarem o céu.
O personagem no colo da figueira não é ficção. Ele é de carne e osso… e de sentimentos puros, em sintonia com a natureza! Meus netos um dia saberão – através dos livros – que homens com esse perfil existiram até o apagar das luzes do século XX. Existiram. Não existem mais. Geraldo Pão é uma exceção. Nascido em meados da década de 1950, Geraldo, o último homem da roça, é feliz vivendo no século XX, sentado no colo da figueira. Ele não precisa do século XXI…