Enterrados sem velório…
Não tem como esquecer aquela noite de fim de maio!
A noite estava mais escura do que qualquer outra. Das encostas e colinas as pessoas viam apenas as luzes tremeluzentes dos poucos carros que se arriscavam a subir ou descer a serra pela serpenteante estradinha para cruzar o caudaloso Rio das Antas. Aos poucos a estrada foi ficando deserta, até que ninguém mais passou por ali. Agora a ponte, as águas vermelhas e agitadas do rio, o cume das montanhas de todos os lados e parte do vale só apareciam quando os relâmpagos cortavam o céu. Era nesse momento também que as pessoas viam o tamanho do pavor: uma nuvem gigantesca pairava no alto, no nível dos cumes das montanhas que cercam o vale e o rio. Parecia uma nave gigantesca, do outro mundo, que as vezes se deslocava seguindo o curso natural do rio parecendo que ia seguir para o mar distante. Do nada, ao sabor do vento, a nuvem amedrontadora voltava para a escuridão da serra. De repente a nuvem começou a desintegrar … e o gigantesco diluvio caiu sobre o rio, sobre a serra, sobre as casas! Não só molhando, mas quebrando arvores, deslocando pedras, destruindo!…
A primeira vítima foi a energia elétrica. E o vale ficou totalmente no escuro. E ficaria assim durante 41 dias!
A segunda vítima da tempestade foram os cumes das montanhas. Arvores centenárias, gigantes, pedras há milênios intocadas se desprenderam dos cumes, das encostas e desceram montanha abaixo arrastando impiedosamente tudo que encontrava pelo caminho.
A terceira vítima foram os moradores daquelas encostas. Pessoas que estão ali há décadas, nos pequenos sítios, nos comércios de beira de estrada…
Só ali no Distrito de Tuiuti, no Vale do Rio das Antas, duas dezenas de vidas foram levadas ou soterradas pelos deslizamentos de terras.
O caso mais comovente aconteceu no alambique de um amigo meu, fincado ali na encosta do Vale do Rio das Antas desde o início do século passado.
Uma família, cuja casa corria rico de ser arrastada pela fúria da tempestade, abandonou a moradia e foi se abrigar no alambique, do lado de cima da estrada. Uma garotinha de 4 anos, que não tivera tempo de se agasalhar, passava frio. A funcionária do alambique se ofereceu para buscar um agasalho para ela em sua casa, a cem metros dali. O marido quis ir com ela pela trilha escura. Mas foi o pai, que também morava com eles, que a acompanhou. E foram ambos, a jovem e o pai buscar os agasalhos a poucos metros dali. Passados alguns minutos as pessoas que estavam no abrigo ouviram mais um estrondo. Correram na direção da casa a tempo de presenciar parte da tragédia. Um pedaço do cume da montanha havia se despregado e descera a encosta arrastando pedras, arvores, canaviais, cafezais e tudo que havia em seu caminho. A casa dos funcionários, a poucos metros do alambique estava no seu caminho. Os patrões e o marido da jovem chegaram a tempo de ver a casa ser moída e arrastada pela avalanche como se fosse um pedaço de cana. Em segundos a casa e tudo que havia nela desapareceu em meio à montanha de entulhos e escorregou para o traiçoeiro rio poucos metros abaixo da estrada. Os corpos da jovem esposa e do seu pai nunca mais foram encontrados.
Os proprietários do alambique e o marido viúvo continuam lá, tocando o centenário alambique artesanal, tocando a vida. Do canavial, do alambique, das janelas de suas residências ao lado, do deck, da porta da loja, de qualquer lugar se pode ver as cicatrizes na terra, o rio que continua seu destino silencioso, às vezes sereno, às vezes caudaloso escondendo seus segredos. Nalgum lugar do seu leito repousam os corpos da jovem esposa e seu pai. As águas seguem, a vida segue… mas nunca mais serão as mesmas!
Sete meses depois da revolta da natureza e da tragédia que ceifou vidas e sonhos, a vegetação rasteira começa cobrir de verde as chagas vermelhas da montanha ferida… Mas a cicatriz ficará para sempre, na montanha… e nalguns corações!