O drama de Marlene

… Mãe de usuário de drogas!

 

Noite de autógrafos, durante lançamento do livro em 2014…

“A prisão de Gegê poderia não ser tão discreta e sutil quanto e de Pedrinho, por isso tomei algumas precauções. Levei comigo dois colegas. Fomos no carro de um deles. Gegê estava trabalhando com o pai no preparo da terra para o plantio de mandioca – pela primeira vez na vida – ao pé da serra, há três quilômetros do sítio. Como de hábito na roça, deveria voltar para casa por volta de quatro da tarde.

Chegamos antes das três e meia. Desci do carro e fui direto para a cozinha tomar café com ‘dona’ Marlene enquanto os companheiros se afastavam alguns metros da casa e escondiam o carro. Como previsto, Gegê chegou minutos antes das quatro. Enquanto o pai soltava os cavalos no curral ele entrou na cozinha. Puxou conversa econômica, ressabiado, deduzindo que eu não estava ali apenas apreciando os quitutes de sua mãe. Esperei dois minutos ou três – o tempo necessário para que os colegas se aproximassem da casa – e antes que Gegê se afastasse da cozinha, disse o que ele suspeitava:

 

– Gegê, o delegado está ‘precisando’ de você na delegacia. Vá tomar um banho… Você vai com a gente – disse eu em tom brando e firme.

 

Enquanto processava a frase “… com a gente”, o menino que vi crescer fechou a torneirinha do bebedouro, levou o copo à boca, sorveu o líquido fresco quase num só gole, deu dois passos em direção à porta, o suficiente para ver o carro do Freitas na frente da casa. “Um minuto antes ele não estava lá” – deve ter pensado. Gegê compreendeu que eu não estava só. Olhou como que a pedir socorro para a mãe! E foi ela quem perguntou já quase chorando:

 

– Ele vai ficar preso?

 

O que eu não dissera nos primeiros vinte minutos, para economizar lágrimas, tinha que dizer agora.

– Vai, Marlene… Saiu um mandado de prisão para ele e para Pedrinho. Mas eles são primários. Em poucos meses poderão voltar para casa e recomeçar uma vida nova – emendei fingindo indiferença.

 

Naturalmente era uma mentira deslavada que eu não poderia ter contado à mãe de Pedrinho, que conhecia talvez melhor que eu as leis penais. Mas a mãe de Gegê era pós-graduada apenas em quitutes de forno e fogão. Nada entendia de leis. Não adiantaria eu dizer a ela que aquela era apenas a primeira das condenações que seu filho receberia – cinco anos e meio, por roubo a mão armada a um posto de combustível há quase dois anos.

 

O tempo de privação da liberdade no cumprimento das leis do código penal, no entanto, seria o menor dos problemas que o jovem Gegê enfrentaria no velho hotel da Silvestre Ferraz. Ali ele teria que enfrentar as leis do cárcere, as “leis dos fora-da-lei”. Se até então ele era apenas um aventureiro desajustado familiar e socialmente, agora ele se ajustaria às leis do presídio. Leis criadas pelos próprios presos, muito mais contundentes, cruéis e rápidas do que as leis que tramitavam no Fórum. No velho hotel da Silvestre Ferraz como em qualquer outro hotel do contribuinte, não se protela processo ou execução de sentença. O julgamento é sumario e sem direito à defesa!

 

Os poucos mais de vinte minutos que fiquei na cozinha da casa simples e espaçosa de Gegê elogiando o bolo de fubá e o café de sua mãe, seriam suficientes para resumir os próximos quinze ou vinte anos de sua vida que eu previa de cor e salteado. Mas eu não poderia contar a ela que Gegê e Pedrinho, seu amigo de aventuras fora da lei, acabara de receber três condenações; uma do homem da capa preta, – que tinha data pré-estabelecida para terminar. Uma da sociedade, que poderia durar por toda vida. E outra do sistema prisional, que deixaria cicatrizes na pele e na alma também pelo resto da vida, ou poderia terminar numa madrugada qualquer, pendurado na ‘ventana’ ou no canto do pátio durante o banho de sol!

 

     Como dizer a ela que seu filho seria humilhado, aviltado, tatuado, seviciado, provavelmente violentado e extorquido nas próximas semanas?

 

Como dizer à singela e bondosa mãe que seu filho certamente pegaria sarna, micose, doenças venéreas… Talvez tuberculose! Talvez AIDS!

 

Como dizer a ela que o menino de 20 anos fugiria ou tentaria fugir diversas vezes, perdendo assim o direito à progressão de pena e que, durante as fugas, além dos riscos inerentes, ele voltaria a cometer outros delitos até ser preso de novo!

 

Como dizer que tudo isso retardaria sua volta… Que talvez ele nunca mais voltasse para casa!

 

Não. Não poderia dizer…

 

Era uma dose muito grande de angústia, de amargura e de tristeza para que ela sorvesse de uma só vez. Tinha que ser tomada aos poucos para não levar ao desespero… Para que o coração fosse criando anticorpos, e insensibilidade e pudesse resistir. Ainda que calejasse e endurecesse como uma pedra… Ou que se tornasse amargo como fel.

 

O pai, Roberto, com a pele queimada pelo sol na labuta no campo, combalido pela vergonha do filho perante os parentes e vizinhos, ainda tinha uma válvula de escape… Tinha os bois para cangar, as vacas para ordenhar, alguns cavalos para arrear e cavalgar e a terra, para ver a semente brotar…

Mas Marlene, não…  Ela só tinha o fogão para cozinhar, a casa grande e simples para limpar e o tempo… O tempo para vê-la definhar! Aliás, solidão e depressão já moravam com ela há muito tempo… Talvez antes mesmo de Gegê se desviar na curva da estrada e se bandear para as drogas…”

 

 

Estes fatos foram vivenciados há cerca de 20 anos. Foram escritos em 2013 para o livro “MENINOS QUE VI CRESCER”.

 

     Dez anos depois pouca coisa mudou. Marlene, a sofrida mãe de Gegê, viveu seu drama em silencio por muito tempo. Há cerca de um ano eu fui ao seu velório. Finalmente seu coração parou de bater… e de sofrer com o filho usuário de drogas!

 

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *