Maneco, o Crack e a Sarjeta

Tão rápido quanto foi ao céu… ele chegou ao fundo do poço!

Anos atrás fui levar meu carro para um Recall em Campinas. Enquanto aguardava o serviço, saí andando pela cidade e fui parar no hall da estação rodoviária. De repente um sujeito com aparência e indumentária de mendigo parou na minha frente, olhou-me por alguns segundos e meio timidamente falou meu nome. Fixei o olhar na sua fisionomia, fiz uma rápida busca pela memória e o reconheci… Era meu amigo Leo, o qual eu não via há mais de quinze anos. Sentamo-nos num dos bancos e encetamos uma prosa. Conversa vai, conversa vem, Leo passou a contar-me a triste história de um amigo de adolescência. Calejado com mais de trinta anos no meio policial, antes que ele chegasse ao meio, deduzi o final da história. Embora os jovens somente deem ouvidos aos coroas depois de passar pelas mesmas experiências, não custa nada colocá-las nestas poucas linhas. Dizia ele:

– Conheci o Maneco no final da adolescência. Durante vários anos seguimos os mesmos caminhos até que eu fui trabalhar no garimpo no Pará. Ficamos mais de cinco anos sem nos ver. Quando voltei à Campinas encontrei meu amigo trabalhando numa farmácia no centro da cidade. Reatamos a velha amizade e curtimos bons momentos juntos durante muitos meses, até que eu fui morar em Poços de Caldas. Dois anos depois, ao visitar os familiares em Campinas, encontrei o Maneco na mesma farmácia… Ele era o gerente!

– Bacana… – falei, contente com o sucesso do amigo do meu amigo.

– Vai vendo como são as coisas – disse Leo, e continuou. Dois anos mais tarde estive novamente com o Léo… Ele havia se tornado sócio da farmácia!

– Caramba! – exclamei.

– Um ano depois, quando tornei a voltar à Campinas, Leo era o único dono da grande loja de medicamentos e perfumarias no centro da maior cidade do interior de São Paulo. Com a morte do pai, a mãe o havia ajudado a comprar a outra parte da farmácia.

Apertei o queixo, arregalei os olhos e balancei a cabeça, admirado com o rápido sucesso do amigo do meu amigo. Mas continuei em silencio, aguardado o desfecho da história. Leo se calou por um instante. Parecia ter chegado no alto de um morro. Agora tinha que descer. Verificou os freios, contraiu as rugas do rosto como quem vai comer uma comida que conhece e não gosta, e recomeçou a história do Maneco.

– De Poços mudei para o Recife e alguns anos mais tarde voltei em visita à Campinas mas, não tive tempo de rever meu amigo. No entanto, soube que ele havia vendido uma parte da farmácia. Um ano depois voltei a morar definitivamente em Campinas e fui procurar o Maneco. Não o encontrei. Ele havia vendido o que restava da farmácia e ninguém deu notícias dele…

Olhei admirado para Leo. Ele respirou fundo e continuou a narrativa.

– Meses depois encontrei meu amigo. Ele estava trabalhando numa pequena farmácia perto da rodoviária… era empregado! Maneco não era mais o mesmo. Seus 42 anos pareciam 60! Sua barriga, antes saliente de homem rico, agora parecia mais a de um conterrâneo do Chico Anísio, recém-chegado do nordeste. Seu rosto que antes era corado e juvenil… agora parecia uma máscara pálida e descorada. As conversas antes alegres e altruístas… agora eram pouco mais que resmungos ou, às vezes, uma interminável repetição das mesmas malfeitas frases. A moto e o carrão esportivo se reduziram a um gol 93, com aparência de 84. As roupas, além de bregas e simplórias, traziam dias de uso e um indisfarçável e indefinível cheiro de sabão e amoníaco queimado…

Tornei a arregalar os olhos fingindo surpresa. E interrompi a narrativa.

– O que aconteceu com ele? Azar na Bolsa de Valores? Jogo de carteado? Farras com mulheres?

Leo esboçou um pálido sorriso, balançou a cabeça na horizontal e foi direto ao ponto.

– Maneco havia mergulhado até o pescoço nas drogas. Começou com a irresponsável e sorridente cannabis sativa e de repente pulou direto para a pedrinha bege fedorenta, sem fazer estágio na farinha do capeta. A droga, os fornecedores, os advogados, os amigos da onça em poucos anos tiraram dele a farmácia, os carros, as economias… Mais rápido do que subiu Maneco desceu. Perdeu tudo! Os poucos amigos se afastaram… Mal sobrou um restinho da dignidade pessoal – concluiu Leo desviando o olhar para que eu não visse sua tristeza… ou vergonha!

Olhei para ele em silencio, procurando uma palavra de consolo, até que perguntei:

– Você, alguém… tentou ajudá-lo?

– Maneco não se sentia em dificuldade. Não queria ajuda. Ele achava que a qualquer momento poderia parar de usar drogas e se levantar… Mas nunca mais se levantou… – tornou a falar Leo sem olhar pra mim.

Fiquei alguns instantes em silencio, com pena da tristeza do meu amigo Leo. Com pena do amigo do meu amigo… que parecia um só! Até que perguntei:

– Você tem visto seu amigo Maneco?

– Dois meses depois, quando voltei à farmácia perto da rodoviária, ele não estava mais lá. Havia sido demitido. Sumiu. Quase um ano depois, numa madrugada fria, ao passar ali perto fui interpelado por policiais. Eles queriam que eu presenciasse um arrastão de desocupados. Eram mais de 15 mulambentos maltrapilhos e fedorentos, parecidos com aqueles que rondam o mercado municipal da Duque de Caxias, bem piores que os antigos frequentadores do muquifo do João Natal. Entre os nóias estava o meu velho amigo Maneco. Depois da triagem na delegacia de polícia, como ele não tinha nenhum crime e foi liberado, eu me prontifiquei a levar Maneco até a casa de sua mãe. No trajeto, quase mudo, fui pensando em como contar a ela onde encontrei seu filho. Desnecessário meu constrangimento. Na sala da casa simples do bairro de classe média, a abatida e resignada mãe contou que fazia três semanas que não via o filho, mas aquilo já era rotina. “De vez em quando ele volta pra casa, trazido pela policia ou por um amigo da família, sempre nesse estado que você está vendo”, contou Noêmia.

– A sofrida idosa, viúva, contou também que três ou quatro dias depois Maneco saía de casa novamente, modesta mas decentemente vestido, com alguns trocados no bolso, prometendo voltar em duas ou três horas… E voltava semanas depois naquelas circunstâncias – concluiu meu amigo Leo, com os olhos tão baixos que quase encostavam no chão.

Após meia dúzia de palavras minhas, de pesar e consolo, Leo continuou a triste história do amigo.

– Contrariando as estatísticas que dizem que o crack mata em poucos meses Maneco vivia na constante nóia há quase sete anos. Na verdade, sobrevivia, vegetava nas imediações dos lixões e viadutos de Campinas. Policiais, amigos ou conhecidos da família já não o levam mais para casa.

– Ele não procura a mãe? A mãe dele não o vê mais? – perguntei.

– De vez em quando… Agora, quando o coração aperta demais, dona Noêmia toma um táxi e roda pelas ruas periféricas da cidade para matar a saudade do filho. Às vezes o traz de volta… para tê-lo por três ou quatro dias. Outras vezes leva uma marmita de comida e uma muda de roupa. Do banco traseiro do táxi, debaixo de um viaduto qualquer, entrega a marmita ao filho e às vezes fica alguns minutos observando melancólica e letargicamente o filho comer. Não tem mais palavras … ou lágrimas. Somente uma silenciosa prece à Deus para levá-los… ou ele, ou ela, pois já não pode mais mudar o destino do filho.

Ao concluir a história do amigo Maneco, Léo virou o rosto… para que eu não visse seus olhos!

 

A história de Maneco, um jovem de berço, que tinha de tudo que o dinheiro pode comprar e que o homem pode conquistar, até conhecer a pedrinha bege fedorenta, me comoveu, mas não me surpreendeu. Nem me surpreendi ao concluir, no silencio do meu carro de volta para casa, que o ‘nóia’ Maneco, era fruto da imaginação de Leo. A triste e verídica história, era a vida do próprio amigo Léo que a contava!      

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *