Vamos falar um pouquinho de Deus?
Então falemos de milagres…
Você conhece a expressão: “fulano escapou por um milagre”?
E você?
Você já ‘escapou’ por um milagre?
Passava pouco de dez horas de uma mormacenta manhã de segunda-feira quando cheguei ao pé da porteira no meio da serra. Fazia pouco mais de meia hora que eu saíra de casa pedalando minha pesada Mountain bike preta. Minha casa, lá na baixada, estava agora a quilômetros de distância. Encostei a bicicleta na porteira, me afastei uns metros, abri a braguilha, aliviei-me, peguei a garrafinha pet, sorvi generosos goles de água ainda fresca e fiquei por uns instantes contemplando o bairro distante lá embaixo.
Quando criança, dalguns pontos mais elevados do bairro eu fazia o inverso… Ficava uma eternidade olhando para aquela porteira branca, quase encravada no barranco vermelho feito à picareta e enxadão na encosta da serra. E pensava com meus olhos de criança: “Para onde será que vai aquela estrada”?
Há alguns anos eu havia descoberto que a velha, estreita, íngreme e pedregosa estradinha não ia a lugar nenhum. Na verdade, ia… Ia pouco além da porteira branca encravada no barranco vermelho. Ia a duas fazendas, a dos Alves e à dos Maximiliano.
Há muitos anos, no entanto, o êxodo rural havia expulsado as duas famílias dali. Agora a estradinha pedregosa levava a apenas um rancho e uma velha tapera onde vivia o ermitão Anselmo, para cuidar de um gado crioulo. Além da tapera, nos espigões acima, na divisa dos municípios de Congonhal, Pouso Alegre e Borda da Mata, ficavam as nascentes do Ribeirão Santo Antonio, que corta o bucólico bairro que me viu nascer.
Há anos o movimento de pessoas e de animais naquela estradinha tornou-se raro. Na verdade, ficou restrito ao ermitão Anselmo que, aos sábados, duas vezes por mês, com um embornal de lona pendurado no ombro, desce ao bairro cavalgando em pêlo sua eguinha castanha, para buscar pouco mais de que uma garrafa de suco de gerereba na vendinha. Mas deixemos a história do ermitão para outra ocasião, pois ela só, já paga outro ingresso!
Aquele lugar tão singelo, tão isolado e tão romântico das minhas lembranças pueris, tinha outro atrativo. Há cerca de cinquenta metros da porteira, o Ribeirão Santo Antonio despencava de quase cinquenta metros, formando uma linda cascata escondida entre arvores centenárias! Por um acesso bem mais fácil seguindo o curso d’água, eu já estivera ao pé da gelada cachoeira anteriormente. Dali, ao lado da porteira branca da minha infância, agora eu podia ouvir o dolente choro da cachoeira despencando em queda livre do alto da rocha.
Aproximei-me do barranco tentando ouvir melhor o triste lamento das águas límpidas batendo nas pedras duras e lisas e, quem sabe, avistar o véu branco balançando por entre os galhos das arvores.
Foi nesse momento que eu recebi… um inesperado empurrão!
Apoiei meus pés em um monte de pedregulhos quase encobertos por guanxuma, bem próximo da ribanceira, abri bem os olhos e tentei avistar a cortina d’água… Na verdade pensei fazer isso! Pois antes mesmo de inclinar ligeiramente o corpo, o corpo todo se foi! Partiu! Despencou no vazio!
Voou abismo abaixo!…
Meus pés deslizaram do monte de pedregulho como se desliza em uma poça invisível de sabão líquido na entrada da cozinha!
Tudo aconteceu como num piscar de olho…
Isso mesmo, ‘olho’!
Piscar de ‘olhos’ demoraria o dobro. Piscar apenas um demora metade do tempo!
E lá estava eu em queda livre num abismo de mais de cinquenta metros.
Não houve tempo para pensar no que havia acontecido!
No que estava acontecendo!
No que aconteceria!…
Só havia uma certeza: essa eu havia sentido nitidamente… um empurrão nas costas!
Antes mesmo do fim da queda eu já tinha uma pergunta formulada:
“Quem me empurrou”?
E antes de qualquer resposta… muito antes que eu me estatelasse nas pedras frias e disformes no pequeno poço escondido lá embaixo na mata… o milagre aconteceu!
Tão inesperado quanto o ‘empurrão’, o milagre aconteceu!… Eu estava parado, com os dois pés firmes sobre uma rocha, abraçado a uma arvore roliça e comprida cuja copa ultrapassava em muito o nível da estradinha pedregosa!
Parecia que a arvore havia sido colocada ali para conter minha queda. Parecia que a rocha havia sido colocada ali ao pé da arvore para apoiar meus pés!
Ainda abraçado à centenária arvore olhei para baixo à minha esquerda… O abismo continuava ali, traiçoeiro, silencioso, sombrio olhando de esgueio para mim! Se a arvore espigada não tivesse parado minha queda, certamente ele, o abismo, agora estaria com outra cor! E eu jamais poderia contar essa história!
Enquanto esperava minhas pernas retomarem a respiração, ainda abraçado a arvore, olhei para trás… A dois metros havia um barranco vermelho, carcomido pela erosão. Três metros acima estava a diminuta clareira por onde eu fizera o voo cego segundos antes. À minha direita, quando terminava a gigantesca rocha, começava uma pequena trilha batida, usada certamente por tatus, pacas e outros bichos que contornavam o abismo para descer em busca de água fresca. A estreita trilha em meio ao emaranhado de galhos e cipós desaguavam no pasto de capim braquiária há poucos metros dali.
Esperei alguns segundos abraçado à arvore, para ter certeza de que eu estava vivo… apalpei a bermuda para ver se não estava ‘molhada’, peguei a trilha, sai no pasto e voltei para a estradinha. Fui devagar, pois as pernas relutavam em me levar!
A estradinha pedregosa estava tão deserta quanto antes. Apenas um bem-te-vi na copa de uma arvore qualquer avisava: “eu bem te vi”!
Minha bicicleta preta continuava solenemente apoiada na velha porteira caiada de branco, à minha espera.
Parei ressabiado a uma distância segura do montinho de pedregulho, minha pista de decolagem, buscando uma explicação para o escorregão. Não encontrei. Eu havia mesmo sido empurrado! Mas por quem? e por quê?
A estradinha da minha infância, há décadas não leva quase ninguém para além da porteira, para as fazendas abandonadas. Nos últimos anos, só o ermitão passa por ali uma vez a cada quinze dias. Quando passasse por ali no sábado seguinte, ele veria minha bicicleta encostada na porteira, mas não tocaria nela. Pensaria que o dono teria entrado no mato para ‘fazer uma viagem’ e não daria importância à bicicleta. Quando voltasse da venda do bairro ao pé da noite, apesar da escuridão, acostumado com a tênue luz da lamparina, veria a bicicleta preta encostada no coiceiro da portaria. Mas não daria importância. Não era dele. Não era da sua conta. Dali a quinze dias ele voltaria a passar pela porteira. A bicicleta preta estaria no mesmo lugar acumulando poeira. Ele comentaria o fato na vendinha do ‘Vilino’. As pessoas ligariam os fatos e … eu finalmente seria encontrado! O legista teria dificuldade para me identificar na forma da lei. A arcada dentária e os longos cabelos começando a branquear, únicos que estariam intactos, certamente ajudariam na identificação…
Me velório certamente seria bastante concorrido e comentado!
Mas nada disso aconteceu. Pois ao ser empurrado para o abismo, havia uma arvore e uma pedra gigante logo abaixo, no lugar certo, para evitar que eu chegasse ao fundo do abismo…
Sacudi a poeira, montei a bicicleta preta e segui meu caminho pedalando solitário pela serra. Passei pela tapera do ermitão, subi à direita pelo que restou de uma estradinha vermelha por onde passavam cavaleiros e carros de bois meio século antes, dobrei o espigão e desci no bairro das Almas. Conforme o roteiro traçado, passei em Congonhal e só voltei para casa no final do dia. Enquanto pedalava por trilhas e antigas estradas desertas, eu ia pensando com meus cabelos dançando ao vento…
– Quem me empurrou no abismo da cachoeira?
– Por que a arvore apareceu no meu caminho para segurar minha queda?
As respostas demoraram anos para chegar…
A resposta à primeira pergunta foi surpreendente! E foi necessário um segundo milagre para que eu compreendesse o primeiro.
Em 2001 eu entrei embaixo da principal queda d’agua da ‘Cachoeira das Quinze Quedas’ para fazer uma oração. Ao terminar minha conversa e tentar sair de entre a pedras traiçoeiras e escorregadias, ouvi uma voz me ordenando que voltasse à posição anterior e continuasse a orar! A ordem se repetiu três vezes, o que me consumiu mais de cinco minutos. Foi o tempo necessário para que o perigo – literalmente – passasse… e eu pudesse continuar contando histórias! Essa história está no livro “Quem matou o suicida” com o titulo “Milagre na cachoeira”. Mesmo assim demorou alguns anos para que eu compreendesse que havia sido salvo por um milagre!
Quando, num momento de reflexão e buscas por respostas, eu compreendi o Milagre da Cachoeira, eu me emocionei muito, me arrepiei, agradeci…
Foi nesse momento de emoção que eu compreendi o primeiro milagre, o milagre do ‘empurrão do abismo’! Foi nesse momento que o ‘autor’ do empurrão me disse:
“Fui eu que te empurrei”!
– Mas por quê?
– “Você olhava para a frente procurando ver a cachoeira por entre as arvores e não viu o perigo a um palmo dos seus pés. Você estava entre a serpente e o abismo. A picada seria fatal. Quando ela armou o bote, a única maneira de tirá-lo dali era para baixo… Por isso eu te empurrei. Mas eu te empurrei na direção segura, na direção da arvore que reteve sua queda”!
Desde aquela conversa com Ele, tenho recebido muitas respostas… até mesmo para perguntas que não fiz. Desde então tenho percebido muitos milagres à minha volta!