Pessoas que deixaram rastros na minha terra…

ANSELMO COUTINHO

        À primeira vista, de longe, parecia uma cena corriqueira na roça: uma pessoa parcialmente debruçada sobre um pequeno córrego, bebendo água. À medida que foi se aproximando, no entanto, o retireiro foi ficando preocupado com a inércia do vulto com as pernas estendidas na beira da estrada. Quando chegou um pouco mais perto, percebeu que a pessoa não se mexia! Desceu ligeiramente tenso da bagageira e se aproximou. Ressabiado, torcia para estar enganado, mas já antevia o pior. Sim!… o homem estava sem vida! Metade do corpo, da cintura para baixo, estava estendida na estradinha roxa, dura, salpicada de cascalho. A outra metade do corpo estava imersa numa poça de água e lodo. Muito antes de o perito criminal da polícia civil chegar ao funesto local o retireiro tirou suas conclusões…

     “Ele deve ter se debruçado para beber água no arroio, e colocou o corpo um pouco para frente. Ao tentar se equilibrar com as mãos, elas afundaram no lodo e o corpo sem apoio se inclinou na pequena poça d’água… E ele se afogou em menos de um palmo de água e lodo”!

     Mais tarde o médico legista do IML de Pouso Alegre encontrou terra e areia na traqueia do morto e confirmou o ‘laudo’ do retireiro. O eremita havia, de fato, morrido asfixiado… por afogamento, numa poça d’água de menos de um palmo de profundidade!

     O pequeno arroio nasce no meio da serra, poucos metros acima da estrada, entre pedras e arvores e desce calma e pacientemente o terreno acidentado, serpenteando a restinga. Na beira da estrada, junto à cerca de arame farpado, há uma discreta barragem para evitar que a lâmina d’água atravesse provoque lama ou erosão no leito carroçável. Por ali passam diariamente uma bagageira transportando leite, e o gado durante o manejo, além de uma ou outra caminhonete que eventualmente vai à fazenda encravada ao pé da grota alguns metros adiante. Junto à minúscula barragem a água fria e cristalina se acumula formando um poço de pouco mais de um metro de diâmetro e menos de um palmo de profundidade, até escoar por um cano que passa por baixo da estrada, sem danificá-la. As escassas pessoas que passam por ali, se por acaso tiver um copo, ou mesmo com as mãos em concha, podem usufruir do precioso líquido para saciar a sede. Se não tiver a vasilha, a pessoa pode inclinar-se na borda da barragem e, bem ao gosto do homem do campo, beber direto no pequeno poço. Mas isso nem sempre é possível! É que, por se tratar da parte baixa do pasto e trilha natural do gado que desce a encosta, ao passar pelo pequeno poço, os cascos corroem o fundo, provocam lodo e sujam a água tornando-a temporariamente impropria para consumo.

      Esse lodo foi traiçoeiro… 

      Apesar de um amor platônico não correspondido, sequer revelado, Anselmo era uma pessoa feliz, de bem com a vida. Querido e respeitado por todos no bairro, ele esbanjava e irradiava alegria aonde chegava. Contador de causos, arrancava risos até dos mais sisudos sessentões de barbas longas da época. Nas carpinas de roça, nas roçadas de pasto ou nas tardinhas na “Arvinha”, nos idos de 1950, 60 e 70 – essa é outra história que daria um livro! – Anselmo roubava os holofotes com seu causos! 

     Com fala mansa e respeitosa, e forte sotaque português – característica marcante dos Coutinhos até a geração anterior à sua – escondia muito bem sua desilusão amorosa. E fez, para si mesmo, o clássico juramento de jamais levar alguém ao altar. Prometeu e cumpriu. Apesar da alegria que espalhou à sua volta durante os setenta e poucos anos, às vezes se permitia filosofar com o próprio destino num tom ligeiramente triste:

“Todos nós temos o direito de ter uma ilusão”!

     Anselmo Coutinho conheceu a orfandade de pai ainda jovem. Isso certamente consolidou sua promessa de não se casar. Como bom filho que era, dedicou-se a cuidar da mãe. Quando a queridíssima ‘tia’ “Bida” desencarnou, Anselmo viu-se completamente livre, sem amarras e sem ‘um passarinho para tratar’! E deu uma guinada na vida. Deixou a gostosa casa à beira da estrada, no centro do bairro dos Coutinhos, onde se costumava rezar terços comunitários, e mudou-se para a serra. Foi viver sozinho, cercado apenas de bois de corte, vacas crioulas que lactavam apenas para amamentar os filhotes, lobos, onças jaguatiricas, quatis, tatus, cascavéis e jararacas! Não é exagero. A fazenda do Maurinho fica a cerca de cinco quilômetros do centro do bairro, em um vale deserto – que se assemelha a uma bacia – no alto da serra junto às nascentes do Ribeirão Santo Antonio. A tarefa do Anselmo não era produzir… Era apenas manter os pastos limpos e cuidar do gado. E o alegre, extrovertido e boa prosa Anselmo Coutinho, por escolha, virou eremita! Viveu anos numa tapera de porte médio, da qual usava apenas dois cômodos: a minúscula cozinha – com um fogãozinho à lenha logo na entrada, tendo como moveis apenas uma prateleira rústica de madeira, feira por ele mesmo – e um quartinho, cujos moveis se resumiam a um varal de bambu onde pendurava suas roupas e um colchão estendido no chão. E viveu em paz, feliz. 

    Nós que amávamos Anselmo e apreciávamos sua companhia, nos preocupávamos com ele.

“Se acontecer um acidente com ele, se for atacado por um animal ou por uma cobra, ele não terá ninguém para socorrê-lo” – dizia um.

“Deus me livre! Se acontecer uma coisa dessas, quando a gente ficar sabendo, só vamos achar os ossos”! – dizia outro.

     Mas nada podíamos fazer. Era a escolha do Anselmo. E ele era muito feliz vivendo sozinho na serra longe de tudo.

     A desilusão amorosa de Anselmo – pela linda Clarice, do bairro vizinho – da qual menos de meia dúzia de pessoas sabiam, não mudou em nada sua índole ou seu comportamento. Anselmo ‘viveu a vida toda de bem com a vida’. Para isso ele contou com sua ‘outra’ paixão – paixão da maioria dos brasileiros! – … ‘Severina do Popote’! Nos finais de semana, ou prestes a saborear um torresminho ou virado de frango, ele abraçava com prazer a sedutora e estonteante… água que passarinho não bebe! rsrsrsrs… 

     Malungo e criado a poucos metros da casa do meu avô, Anselmo era amigo próximo do meu amado e saudoso pai. Não eram raras suas visitas à meu pai, tanto na roça quanto na cidade, apenas para contar causos, jogar conversa fora e alimentar a amizade.

    A fazenda na qual Anselmo viveu muitos anos – feliz – como eremita, ficava no caminho das mangueiras – ah, as famosas mangueiras… essa é outra história! À caminho das mangueiras, passei algumas vezes pelo rancho do Anselmo no alto da serra. Sabedor da sua paixão por Severina do Popote, algumas vezes levei a ‘estonteante’ para ele. Em nenhuma das vezes o encontrei nas imediações do rancho. Por isso eu sempre deixei as garrafas, envelhecidas em sassafrás, sob a taipa do fogão da sua cozinha – a porta do rancho, como quase todas as casas da roça, não possuía fechadura por fora. A porta ficava amarrada por um barbante ou tira de couro cru pelo lado de fora. Não tive oportunidade de conversar com ele sobre os ‘presentes misteriosos’ que às vezes apareciam na taipa do fogãozinho preto da sua cozinha.

      Duas vezes por mês, sempre aos sábados, Anselmo descia a serra para visitar amigos e parentes no bairro. Na volta, já no final da tarde, parava na vendinha do ‘Vilino’. O cavalinho castanho, tão pacato quanto seu dono, ficava parado defronte a venda na beira da estrada. Nem era preciso amarrá-lo. Bastava soltar as rédeas no chão. Essa era a senha para o simplório animal… O cavalinho sabia que seu dono estava por perto e que era preciso esperá-lo. E o pacato e cordato quadrúpede ficava ali, cabisbaixo, quase cochilando, ouvindo a conversa alta que geralmente sai das vendinhas nos fins de tarde. De vez em quando sacudia o rabo ou balançava a crina para espantar os mosquitos, enquanto esperava pacientemente seu dono…

     Ao pé da noite, depois de entornar algumas doses da cangibrina, com fatias de mortadela como tira-gosto, Anselmo montava o castanho e seguia passo a passo de volta para casa, para a serra, levando pendurado no ombro o embornal com meia dúzia de pães murchos, uma rodilha de linguiça de porco curada e uma garrafa de suco de gerereba…

     Presenciei estas cenas muitas vezes, quando jogava futebol no campo do Sergio, ao lado da vendinha do Vilino, na segunda metade dos anos 1990.

     Estas foram as últimas imagens que guardei do meu conterrâneo e saudoso amigo Anselmo Coutinho.

     Na manhã do dia 19 de março de 2.000 – dia de São José – um palmo de água cristalina, que descia brincando a serra, interrompeu a vida leve, livre e solta do eremita Anselmo Coutinho. Pessoa simples e nobre… que deixou rastros na minha terra!

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