Um amor de criança

      Se a pureza da menina não a levava ao céu… Leo foi levado! Ao menos às nuvens… Que prazer! Que alegria ao vê-la!

(foto ilustrativa)

Era início da tarde de domingo. Leo tomou bênção da avó, esperou alguns minutos até que seu pai entabulasse uma conversa com ela e seu tio, disfarçou, saiu de fininho da cozinha, subiu a tortuosa e apertada escadinha de madeira, atravessou a grande sala fazendo o assoalho de madeira ranger e saiu ao alpendre da “casa da vó”. Dali poderia avistar todo o movimento na estrada poeirenta a pouco mais de cem metros à sua frente, a melhor vista do bairro. Um cavaleiro passava a passo lento na estradinha a caminho da venda do Vilino, lá na curva da estrada perto do ribeirão, ou, quem sabe, a caminho da casa da namorada. Podia também ser alguém indo visitar a avó, como ele estava fazendo, como fazia todos os domingos depois do almoço. Não estava interessado em desvendar o destino do cavaleiro… O que interessava, o que o levara ali ao alpendre da ‘casa da vó’ naquele momento, estava um pouco antes da estrada, à sua direita, na casa de um dos patriarcas do bairro!

“Será que ela virá hoje”? pensava Leo, tentando identificar as pessoas sentadas ou brincando no pastinho em frente a grande casa de janelas enfileiradas.

Na “Arvinha” na beira da estrada já havia meia dúzia de pessoas espalhadas pela grama jogando conversa fora. “Arvinha” era uma pequena restinga de Sassafrás, Caneleiras e Figueiras, quase todas frondosas, que não impediam o alastramento da grama campeira e nem a visão à distância, e fornecia sombra e aconchego às pessoas na beira da estrada. Era o ‘point’ da época. Era ali que os homens do bairro se reuniam nas tardes de domingos para contar causos e atualizar as notícias da semana, tanto da roça quanto da cidade. Era parada obrigatória de quem passava à pé, a cavalo ou de bicicleta. Meia hora conversando ou apenas ouvindo a conversa dos adultos na “Arvinha” era suficiente para se inteirar de tudo que aconteceu nos pequenos sítios ou fazendas do bairro… ou das notícias da cidade.

Leo aguçou a vista tentando identificar o pai da garota entre os contadores de causos. Não. Não estava entre eles. Era cedo ainda… certamente o ‘sogro’ ainda estava conversando com o pai dele na casa grande.

Os pais de Aninha moravam no bairro vizinho, a quatro quilômetros do bairro dos Coutinhos. Todo domingo o pai dela e os irmãos mais velhos iam à missa das nove na igreja matriz de Congonhal. A cada quinze dias seguiam da igreja para a casa dos avós, no bairro dos Coutinhos, onde almoçavam e passavam o dia.

“Ela deve ter vindo, sim”… a semana passada não veio!, concluiu Leo otimista e esperançoso.

Desceu a escadinha de madeira e saiu à cozinha. Os dois tios solteiros estavam sentados no banquinho de madeira encostados na parede. No outro banco, de costas para a janelinha baixa que dava para o pomar, estava seu pai conversando com os irmãos e a mãe. Na taipa branca do fogão à lenha caiado de tabatinga estava vovó Ana, atiçando alguns gravetos no fogo, preparando sem pressa o café ralo e doce de sempre.

– Pai, vou fazer uma visita para a tia Candinha… – falou Leo. E sem esperar qualquer resposta, abriu o portãozinho de madeira da cozinha e saiu. Atravessou lentamente o pastinho, com os olhos grudados na casa do avô de Aninha, – para ver se avistava a pretendida – cruzou a estrada e entrou no terreiro da casa da tia.

Candinha e Antonio eram ‘tios dos dois lados’… Ela era irmã do seu pai. Ele era irmão da sua mãe! Apesar da afinidade que tinha com o casal de tios e do prazer em visitá-los, não criou raízes na casa deles naquele domingo. A visita, como sempre, fora um pretexto para se afastar do pai e se aproximar da Arvinha, de onde poderia ver sua amada. Por sorte seu tio já havia terminado os afazeres em casa, feito a barba domingueira, tratado das galinhas e estava pronto para ir ao ponto de encontro dos homens do bairro. Caminharam juntos os cem metros de estradinha que os levava à Arvinha. O tio, como de hábito, falando sem parar! E Leo, sem ouvir uma palavra, tentando desde longe avistar o ‘sogro’ ou a menina dos seus sonhos entre as tantas que brincavam na ponta da restinga, mais perto do quintal do avô.

Se o tio soubesse da paixão do sobrinho, ou se tivesse olhado para o seu rosto, teria visto o tamanho do sorriso estampado nos olhos dele tão logo se aproximaram da Arvinha. Sim, o sogro estava entre os homens do bairro sentado na grama encostado a uma arvore como os outros, contando e comentando os fatos da semana. Certamente ela viera também, pensou ele eufórico. Esticou os olhos além da Arvinha na direção da casa do avô dela… O coração disparou, os olhos brilharam! Embriagou-se de alegria! Quase babou quando avistou, de longe, sua pretendida jogando peteca com as primas próximo à casa do avô delas. Quê visão! Que doçura! Aninha tinha os longos cabelos pretos e lisos presos por uma Maria Chiquinha. Usava um vestido chita, com florzinhas verdes e rosas, predominando o branco… o que lhe conferia ainda mais pureza, e a deixava ainda mais doce!

(imagem ilustrativa)

Se a pureza da menina não a levava ao céu, ele foi levado! Ao menos às nuvens… Que prazer! Que alegria! Como era bom pousar os olhos na sua amada linda, faceira, esguia, delicada, suave… apaixonante! Como amava aquela garota! Com que ansiedade passava a semana esperando para vê-la nas tardes de domingo! Ah, como estava feliz! Dali a pouco, quando o sol baixasse, crianças e jovens iriam para a estrada namorar, jogar peteca, jogar queimada… Era quando poderia se aproximar da sua Aninha! Quem sabe numa brincadeira ou outra até se tocarem! Um toque furtivo na mão, um esbarrão, que o faria estremecer… e ficaria latente na pele e na memória.

Desfeita a tensão da incerteza e saciada a saudade de pousar os olhos na menina, mesmo que de longe, mesmo que ela não o tenha visto, mesmo que ela não soubesse do seu amor por ela! agora podia brincar com os amigos malungos, de preferência ali por perto. Assim perceberia o momento em que ela e as primas sairiam para as brincadeiras com outras amigas ao longo da estrada. Juntou-se a outros garotos que já estavam brincando nas arvores do “Valo” acima da estrada e ali ficou até o sol baixar.

Quando o sol ganhou ares bucólicos e baixou o suficiente para que as frondosas figueiras, caneleiras e sassafrás estendessem sombra na estrada, foram para lá. Desde o ‘Ponto’ – início da estrada vicinal que nasce na BR 459 – até a encruzilhada do Totó, um quilometro e meio bairro adentro, havia vários pontos de concentração de pessoas. Os homens solteiros passavam boa parte do dia na venda do Vilino. Os casais que namoravam há mais tempo e já haviam conquistado o sogro ou amansado a sogra, ficavam nos alpendres da casa da namorada. Os que ainda estavam começando a ‘se falar’ namoravam na sombra das figueiras e manacás à beira da estrada, à vista de quem passava, sentados nos barranco a pelo menos um metro um do outro. Crianças e adolescentes, que sequer cogitavam namorar, o máximo que podiam se aproximar dos seus pretendentes, era nas brincadeiras de queimada ou peteca no meio da estrada na sombra das arvores. Era assim todo domingo. Assim ficavam na estrada até que os pais, voltando da Arvinha ou da visita à amigos e parentes, passavam pelo local dos jogos a caminho de casa. Os pais não precisavam verbalizar… Os filhos sabiam que o domingo havia acabado, que era hora de voltar para casa. E os seguiam calados. Assim Leo passou mais um festivo domingo bem perto da sua amada.

Aquele foi mesmo um domingo especial para Leo. Jogaram queimada em times adversários. Ele, sempre que tinha a posse da bola, evitava ‘queimar’ Aninha. Ela ao contrário, sem piedade, talvez percebendo que ele facilitaria, jogava a bola na sua direção tentando ‘queimá-lo! Todas as vezes em que ficou no mano-a-mano com ela na disputa final, ele, cavalheiro e apaixonado, a deixou vencer.

Enquanto brincavam na estrada… namoravam! O namoro de Leo & Aninha – e certamente de outros tantos pretendentes  –, não passava de flertes inocentes, olhares languidos e apaixonados, assim, entre o desvio de uma bolada e um tapa ou outro na peteca.

Mas tudo que é bom se acaba!

E o alegre domingo chegou ao fim…

O sol dolente foi aos poucos se encolhendo, se avermelhando e… logo se deitou no alto do Morro das Onças. Ironicamente por onde Aninha passaria dali a alguns minutos, caminhando de volta para casa. Não tardou o pai e dois irmãos rapazotes surgiram na leve curvinha da escolinha do bairro. Os eufóricos gritos juvenis foram cessando, a alegria foi murchando, os sorrisos foram se apagando e… a saudade começando a fazer seu ninho!

Quando o pai e os irmãos passaram, Aninha distribuiu mais dois ou três tchau’s às amigas e os seguiu. Leo procurou seus olhos… achou! Tinha tanto para dizer, mas… só os olhos, brilhantes, falaram.

Pensou em fazer ao menos um aceno, ainda que acanhado… Mas suas mãos não se mexeram. Os olhos acenaram por ele… e disseram apenas: “Vai com Deus, Aninha… vou sentir saudade! Te espero na semana que vem”.

O sogro e os cunhados seguiram rápido a estrada movimentada, cumprimentando os passantes, todos pessoas conhecidas e parentes próximos ou distantes. Moravam no bairro vizinho, cerca de três quilômetros dali. Chegariam em casa já sob o véu negro da noite.

Leo despediu-se em silencio com o coração febril de amor, mas seguiu atras. Acompanharia a amada, como sempre, até a encruzilhada do Mourão Furado. Torcia para que o pai dela parasse para conversar com alguém na estrada, assim ele poderia passar bem pertinho de Aninha e lançar mais uma vez seu olhar apaixonado. E o sogro parou. Parou para conversar com alguém no caminho logo depois da encruzilhada, já era crepúsculo da noite que se avizinhava. A penumbra não permitia que o brilho dos seus olhos cor de mel cruzassem com os olhos castanhos de Aninha. Mas Leo via claramente o vulto da amada, sua silhueta esbelta, esguia, doce e meiga… seus cabelos agora soltos, o vestido chita agora turvo, de uma só cor. A saudade já havia feito seu ninho e começava coçar no peito…

Os próximos dias até o meio da semana seriam longos e sem cor e demorariam para passar. Chegaria a interferir no comportamento do garoto. Leo ficaria calado, taciturno…

“Porque ela tinha que morar noutro bairro, distante…”, reclamaria ele em silencio.

De quinta em diante, quando o domingo começasse a mostrar sua silhueta lá além da curva da semana, o brilho da felicidade surgiria no horizonte… invadiria os campos e ares… chegaria ao seu quintal e bateria  à sua porta! A alegria voltaria, a esperança de rever sua doce e meiga musa, colocaria de novo o sorriso no rosto de Leo. Era sempre assim… desde que descobrira que amava Aninha!

A figura doce e meiga da menina de vestido chita no crepúsculo daquele longínquo domingo de outono é, talvez, a última e mais afetuosa lembrança que o garoto Leo guarda da sempre bela Aninha.

As cenas deste amor puro e inocente… “amor de criança”, aconteceram nos idos de 1960.

Aninha tinha então 12 anos de idade…

O apaixonado Leo tinha dez!…

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