Anos 70 – a década de ouro da humanidade

Neste dia tão especial para a minha cidade, permitam-me mais um centavo de saudosismo…

Quando o ano novo bateu à minha porta na Rua São João, ainda não havia luz elétrica nem água encanada dentro de casa. Torneira havia apenas uma no tanque de cimento no quintal sem cobertura. O fogão era a gás, infelizmente! O de 70 foi o pior inverno da minha vida, pois o fogão a lenha com o banquinho liso, de madeira, para sentar e esquentar os pés, havia ficado lá na casa de pau-a-pique na Vargem do Coqueiro em Congonhal. Para esquentar a vida, só mesmo os jogos da Copa do Mundo. Assisti a todos os jogos da Seleção Canarinho pela televisão preto & branco na casa do vizinho Danielzinho Marcondes. Na minha casa a TV, mesmo a p&b só chegaria no final da década. O melhor dos jogos era a comemoração! Um dos meus dez cunhados era mecânico na Mavesa e, em dias de jogos do Brasil, ele pegava um caminhão emprestado na firma… Depois do jogo saíamos para comemorar pela cidade! Um velho caminhão Chevrolet sem toldo, lotado de garotos, adolescentes e adultos!

Ninguém nunca caiu do caminhão. Ele nunca foi parado pela polícia e nunca recebeu uma multa por isso…

Passada a euforia da Copa do Mundo, vinham as trocas de figurinhas de jogadores, o “bate bafo” nas calçadas… Era hora de voltar às brincadeiras habituais de rua. De dia, quando não estava no Grupo Escolar Presidente Bernardes da Rua Bom Jesus, ou vendendo picolé da sorveteria do “Sô” Ferreira, estávamos na poeira da Rua São Pedro jogando bolinhas de gude, queimadas ou disputando os campeonatos de pipas e papagaios. No final da tarde quando o vento soprava mais forte, a rua se enchia de garotos para assistir e torcer pelo ‘time’ da rua de cima contra os laçadores da Rua Dom Lafaiete. Cada pipa que a rua de cima ganhava no laço – e sempre ganhava – era comemorada como se fosse um gol da seleção. Era uma festa sem tamanho fazer o “jaú” mergulhar por cima da rede elétrica, das casas do quarteirão, no espaço do vizinho, laçar a presa e puxá-la para o nosso território fazendo-a descer na nossa rua. O laçador não se importava em ficar com o troféu… O mais gostoso era ver a molecada correndo olhando pra cima até pegar o ‘jaú’ de plástico ou de papel, mesmo que ele se partisse em vários pedaços em suas mãos. No bairro da Saúde nos anos seguintes ainda vi parte dessa peculiar competição. Mas igual aos torneios da Rua São Pedro versus Rua Dom Lafaiete, nunca mais!

À tardinha o programa favorito daquele início de anos 70 era pendurar na varanda ou na janela de casa para ver o canudo de fumaça preta, cinza ou branca da Maria Fumaça. Logo depois de ouvirmos o primeiro apito avisando que cruzaria a BR 459, corríamos para a varanda a tempo de ver o trem precedido pela fumaça surgir atrás da igrejinha N.S. de Fátima. A fumaça cruzava a cidade em meio aos apitos e o choc-choc-choc das manivelas. Já na Avenida Brasil o trem começava soltar os espirros do freio e ranger nos trilhos até parar na velha estação na esquina da Dr. Lisboa.

À noite, depois do jantar e do “dever de casa”, naturalmente, começavam as brincadeiras de rua. Soltar Pião, Pique-esconde, chicotinho queimado, queimada até a hora de sossegar em volta da fogueira para contar causos de assombração.

Como tinha causos de assombração naquela época! Foi numas dessas ocasiões que me familiarizei com a história do Corpo Seco! Sem saber que aquele esguio senhor de bota de cano alto, que toda tardinha, já no crepúsculo, descia do Santo Antônio, virava a esquina da São João e descia em direção à sua casa perto do Asilo, era irmão do Corpo Seco dos nossos arrepios e pavores!

Nosso dia encerrava já ‘altas horas’ da noite… Por volta de nove e meia, quando muito dez horas! E tínhamos pelo menos três bons motivos para nos recolher!

Primeiro que lenha para fazer fogueira custava dinheiro! Era comprada do João Brunhara que a vendia em metros na Rua João Basílio. Vendia também os frangos, já que no nosso quintal não podíamos criá-los.

O segundo motivo é que nossas mães, depois de chamar três vezes para lavar os pés e dormir, não chamavam mais… Mas poderiam aparecer a qualquer momento, de surpresa, com um ramo de guanxuma, com a cinta de couro cru do pai ou uma varinha qualquer na mão e descer-nos o borralho!

O terceiro motivo era tão tenebroso quanto. Toda noite a “carruagem do diabo” descia do Alto das Cruzes levando os restos mortais do cemitério velho desativado em 1917 para o cemitério novo das Taipas. Era um barulho infernal de carroça velha puxada por cavalos fazendo os cascos levantarem faíscas no contato com os pedregulhos da rua, seguida por uma matilha inteira latindo, uivando e gritando. A carruagem fantasma descia sempre por volta de quatro horas da madrugada. Mas, vai que o cocheiro erra o horário e acaba descendo pouco depois das dez da noite!… Éramos cada um mais corajoso que o outro ali na rodinha em volta da fogueira… Mas com coisa do outro mundo era melhor não abusar, né?

 

     Quem nasceu por volta de 1960 e chegou à idade adulta na década de 70, é um privilegiado… Teve a melhor infância e adolescência dos últimos séculos! Ninguém viveu tanta pureza, tanta diversão, tantas aventuras e foi tão feliz quanto essa ‘galerinha’ que descobriu a vida na década de 1970, os anos de ouro da humanidade!

    Você é sex… sagenário? Então você viveu essa história!

     As outras 12 páginas dessa história de saudade estão no livro “Quem matou o suicida”. Adquira o seu e viaje no tempo! Só essa história já paga o ingresso.

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