O ano de 1982 era ainda criança. Quando cruzamos a linha de ferro da Avenida Brasil, ao lado da velha estação ferroviária, o ‘chefe’ Adair, que seguia atrás do volante da Brasília verde, perguntou:
– Alguém pegou as algemas?
– Eu não. – Respondi.
– Eu também não. – Resmungou o Barbosinha ao meu lado. Paixão que estava no banco da frente emendou;
– Eu pensei que você tivesse pegado…!
Excetuando Marco Antônio Paixão, que havia assumido suas funções há poucas semanas, todos éramos da mesma turma da Acadepol e, portanto não havia hierarquia entre nós. No entanto havíamos ‘eleito’ tacitamente o colega Adair, o “Pezão”, nosso chefe. Talvez por ser o mais velho do grupo e pela sua bagagem trazida do exercito – fora sargento por cinco anos, antes de ingressar na policia civil em ’80 – Adair fez um pequeno gesto de desaprovação e insatisfação com a cabeça e entrou pela Vinicius Meyer para contornar o quarteirão e voltar pela Adolfo Olinto para a delegacia. Passava pouco das nove da noite. Nosso destino era a zona boemia, recém transferida para o Jardim Aeroporto e já com o pomposo nome de “Capim Gordura”…
A maior fonte de informação sobre crimes e criminosos daquela época era a Zona Boemia. Cafetões, cafetinas, prostitutas de todo tipo, ‘viadinhos’ assumidos e outros enrustidos disfarçados de serviçais se misturavam à eclética clientela. Jovens em grupos; comerciantes discretos; sozinhos ou em duplas, alguns deles barulhentos fazendo questão de exibir status de machões; homens simples da roça que ficavam uma eternidade olhando a distancia, esperando a coragem chegar para convidar a donzela para o ‘afair’! Pequenos grupos de arruaceiros mamados que estavam ali muito mais interessados em atracar com marmanjos do que com as mulheres de vida fácil! Recrutas do exercito que pela primeira vez, agora maiores de idade, se aventuravam a por os pés na mal afamada rua tentando perder a virgindade…! Tinha também os cidadãos bem sucedidos profissionalmente e frustrados no lar em busca da alegria perdida; advogados em surrados ternos, fingindo defender alguma causa – uns levavam até uma valise para reforçar a ideia de que estavam trabalhando! – desfilavam discretamente por ali em defesa da própria ‘causa’…! ‘Garanhões’ montados em seus cavalos, muito mais preocupados em montar e fustigar o alazão arreado do que ‘chegar o reio’ e domar uma potranca na cama! A “Zona” que já nascera batizada de “Capim Gordura” era local ideal para queimar a erva marvada, aspirar a fumacinha do capeta sem ser incomodado. Em meio a todo este burburinho de emoções e comportamentos, desfilavam sorrateiros meliantes de toda especialidade!
Na velha e sombria Davi Campista o perfume de Severina do Popote se misturava com o da cafetina Margarida Leite, da Casa da Paineira – assassinada pelo cafetão turco Faissal – com a Betty da Casa Rosa, com a Cristina Melão – por causa do par de seios que assemelhava à fruta rasteira nordestina – com a Bibi Sete Fôlegos – era capaz de fazer dezessete ou mais programas numa só noite, a cinco reais cada um – com o cheiro azedo de suor, desodorante Avanço e colônia barata dos amantes que ali aportavam em busca de amor… Ainda que falso, pago e efêmero!
O miúdo Vitinho, mais rebolante que uma cobra d’agua mal matada, era apenas o camareiro das mariposas lá no fim da rua. Mais tarde no Capim Gordura teria sua própria boate. Quando a Aids acabou com a prostituição ‘formal’, já no crepúsculo decadente da ‘Zona’, ele venderia maconha num hotel da Silviano Brandão.
Após uma demanda que durou anos, defendida principalmente pelo causídico das piranhas, Jorge Beltrão, finalmente a “Zona” da Davi Campista, no centro da cidade mudou-se para o famoso Capim Gordura. Ali, os pulguentos e fedidos prostíbulos e bordeis antes chamados de ‘casa da fulana’ ganharam o pomposo nome de “Boate”! Elas relutaram tanto para deixar o velho logradouro, receosas de perder a clientela, mas logo viram que a mudança fora um grande negocio. No local mais discreto, longe do centro, o comercio do amor ganhou clientela em quantidade e qualidade. Na velha Davi Campista qualquer grupinho de moleque, depois de abraçar umas loiras geladas, para ali seguiam em busca de uma morena quente. E chegavam a pé, a cavalo, em charretes, fusquinhas e brasílias e até em lotações de kombi. Compravam muito mais cachaça e confusão do que ‘amor’. A distancia de sete quilômetros do centro selecionou a clientela do Capim Gordura. Apesar da poeira, a rua larga bem iluminada e suas travessas; as casas grandes e novas afastadas da rua, tocando musicas de Joaquim & Manuel, Pedro Bento & Ze da Estrada, Leo Canhoto & Robertinho, Marcio Greick ou Wanderley Cardoso em meio a fumaça e luzes coloridas, davam um tom mágico ao lugar. Parecia outro mundo. O cheiro da cuba-libre, uísque Drurys, Campari, Menta e a tradicional Cangibrina, misturava-se ao perfume das donzelas. Algumas recém-saídas da puberdade pareciam ninfetas de revista. Olhar para elas misturava os sentimentos; vontade de agarra-las e… pena do seu futuro! Outras já traziam no rosto carregado de maquiagem, nas cinturas já sem contornos e nos seios caídos as marcas do tempo e do uso! Algumas já passadas de cinquenta primaveras usavam o sorriso largo e falso e os mais de ‘trinta anos de janela’ e lençóis encardidos para se dedicar à cafetinagem.
Esse ambiente de vícios e pecados era também um antro de banditismo. Todo bom bandido tinha uma mulher na Zona… Todo bom policial tinha uma ‘amiga informante’ na Zona!
Os meliantes daquela época eram mais espertos e corajosos; agiam sozinhos. Mas todo bandido tem necessidade psicológica de contar a alguém suas bravatas… De uma confidente! E achavam que as prostitutas, que como eles viviam à margem da sociedade, tinham algo a esconder. Tinham bons ouvidos e motivos para guardarem segredos. Santa ingenuidade! Só bandido mesmo para achar que alguma mulher consegue guardar segredos…! Bom para os detetives que conseguiam criar laços de amizades na zona. Ali poderiam beber qualquer tipo de informação do submundo do crime na fonte. O preço desta amizade? Bem, ia desde pequenos favores tais como afastar arruaceiros da boate, fazer vista grossa a algum achaque de balão apagado, cobrar alguma divida ‘esquecida’ por ou outro cliente… E até alguns momentos de cama! No nosso grupo da época teve colega que quase passou dos “momentos” e por um triz não mudou sua historia pessoal…
Mas essa já é outra historia…
Voltamos para a delegacia da Silvestre Ferraz para buscar as pulseiras de prata, pois policia na Zona sem um revolver no coldre e um par de algemas na cinta – com o perdão do trocadilho – está pelado!
Quando nos aproximamos do Hotel Dias, duas figuras soturnas passaram à nossa frente e desceram a Marechal Deodoro. Eram João Laerte e Damião, a famosa dupla de meliantes conhecida por “Cosme & Damião”, uma das primeiras que estrelavam nosso de álbum de figurinhas na Inspetoria de Detetives. Fazia algumas semanas que andávamos na sua sombra. Cosme e Damião eram amantes da famigerada maconha e além dos furtos independentes para sustentar o vicio, de vez em quando faziam uns ‘bicos’ na quadrilha do Monteiro, dono do Restaurante Bagdá. Este sim, peixe grande. Para aproveitar a viagem, pulamos da Brasília verde e descemos lentamente atrás deles, enquanto Adair contornava o quarteirão descendo pela contramão na Herculano Cobra. Quando a dupla deparou com a Brasília…
Esta é uma das 50 crônicas policiais – incluindo “A verdadeira Historia do Beco do Crime” “Os últimos dias de Fernando da Gata” e o Mistério do Coisa Ruim da Borda” – contidas no livro “ MENINOS QUE VI CRESCER! Para continuar lendo a historia de “Monteiro, o ladrão do Bagdá e seus quase 40 ladrões” e as demais, acesse www.meninosquevicrescer.com.br